Com Cancioneiro, Francesco Petrarca lança as bases do lirismo universal

 

 

Certa vez, o poeta James Wright saudou Walt Whitman como "nosso pai", identificando talvez uma ancestralidade irrecusável a todos os poetas pós-Whitman.

Se tal assertiva procede, então com mais razão podemos denominar o poeta toscano Francesco Petrarca como "nosso pai primordial", aquele que instaurou em seus versos primorosos a noção mais titanicamente universal de um eu lírico.

O impacto de sua obra talvez já não seja perceptível, visto que a tradição ocidental a absorveu completamente. Porém, para apreender a sua força lírica em toda a singularidade é preciso considerá-la em seu tempo, a Idade Média, olhando para trás e atentando-se, no âmbito europeu, aos trovadores provençais, que o antecederam, e mesmo aos seus contemporâneos do dolce stillo nuovo, como Dante e Pistoia, para entender como Petrarca representa um passo adiante na consolidação de um lirismo universal, essencialmente por conta de seu Cancioneiro, que a Ateliê e a Unicamp trazem agora em edição integral e bilíngue, na tradução de José Clemente Pozenato.

O templo absoluto de Eros, construído em devoção à mítica Laura, amada imortal do poeta, esse Cancioneiro é a fonte vital de onde os poetas (em especial os da Renascença) beberam para modular os próprios versos:

 

Não tenho paz nem posso fazer guerra;

E temo e espero, e ardo e ao gelo passo;

E voo para o céu e jazo em terra;

E nada aperto, e todo o mundo abraço.

 

Esta prisão não abre nem me cerra,

Nem em si me retém nem solta o laço;

E não me mata Amor, nem me desferra,

Nem me quer vivo, nem me arrasta ao passo.

 

Vejo sem olhos e sem língua grito,

Clamo por perecer e ajuda imploro;

A outrem amo e me odeio a mim.

 

Sustento-me de dor, chorando rio;

A morte e a vida por igual deploro.

A este estado por ti, Senhora, vim.

 

É assombroso como este poema, composto no século 14, já preludia os jogos de paradoxo e antítese da estética barroca; o leitor experiente irá reconhecer ainda aqui, no aspecto formal e no conteúdo, a fonte de inspiração do soneto camoniano "Tanto de meu estado me acho incerto", uma paráfrase da lira petrarquiana, cujos tercetos constam abaixo:

 

Estando em terra, chego ao Céu voando;

Numa hora acho mil anos, e é de jeito

Que em mil anos não posso achar uma hora.

 

Se me pergunta alguém por que assim ando

Respondo que não sei; porém suspeito

Que só porque vos vi, minha Senhora.

 

 

O templo e seu ídolo

 

A princípio intitulada Rerum Vulgarium Fragmenta e impressa em 1470, a obra é, sobretudo, um monumento à Madonna Laura, que o poeta conhece em 6 de abril de 1327. A união é impossível pois ela é casada com o marquês Ugo de Sade.

O fruto dessa paixão traduz-se em espantosos 317 sonetos, 29 canções, 9 sextinas, 7 baladas e 4 madrigais; há aí inclusos poemas de cunho circunstancial e encomiástico, mas mesmo nesses se entrevê o implacável "Signor mio" (o Amor) cujo domínio imprime profunda ambiguidade na alma do poeta, como quando festeja a capitulação de um amigo em resistir a tal domínio:

 

Nem mais feliz (…) que eu, vendo-te depor a nua espada

Que fez ao Senhor meu tão longa guerra

 

Mais tarde, o próprio poeta refugia-se do jugo, sobre o qual deplora:

 

Fugindo da prisão de Amor, que fazia

Comigo tudo o que lhe era de agrado

 

Nesse território onde o Amor é onipotente, o eu lírico agiganta-se num páthos tão avassalador que se impõe, em sua dor, ao sofrimento universal:

 

Era o dia em que o sol escurecia

Pesaroso da morte do Senhor(…)

E, desatento aos golpes de Amor,

Segui, de mim seguro: e minha dor

Na dor universal assim nascia.

 

Nesse universo, Laura é a força motriz que fecunda variações de um mesmo tema e também a semideia que incorpora a tradição da dama cristã virtuosa, guia do poeta à virtude, mas que também o atrai à consumação carnal, tal as figuras mitológicas — embora Laura, em seu recato e altivez, seja por vezes comparada à Diana, deusa da castidade.

O "louro" é outra imagem recorrente, tanto aquele que fora Dafne, a amada do deus Apolo, como o laurel que consagra os poetas. A metáfora é expressiva, porque em Laura reside a esperança artística contra o ocaso:

 

Se eu aqui me demorar

Pode ser que o gentil renome dela

Eu consagre com esta exausta pena

 

E de fato, Laura representa uma nova noção do feminil na literatura; não é ela a Beatriz dantesca, esta quase a quarta pessoa na Trindade Divina. Em paralelo, Laura é mais real, o eixo de elevados anseios espirituais conjugados ao apelo material do desejo.

A obra expressa sutilmente tais nuanças, sendo dividida em antes e depois da morte de Laura. Num primeiro momento sua pintura divide espaço com a imersão no universo interior do poeta; descida pungente que vai se acentuando mais com o envelhecer dele (disso os versos fazem direta menção) e com os pressentimentos da morte dela. O ápice é quando formalmente a razão é obliterada, num jogo de contrastes do qual o soneto acima é bom exemplo.

Mas a esperança e o enleio à beleza ainda se fazem presentes. Após a morte de Laura, a melancolia reina, restando as lembranças e a indiferença pela vida:

 

Mas tu, nobreza que do céu me chamas,

Pela memória de tua morte e dores

Pedes que eu despreze o mundo de vez

 

É nesse momento que Petrarca refina o recurso alegórico, tão presente em Dante, e que é o esplendor da canção CCCXXIII, onde a morte de Laura é representada em seis distintas visões.

Afora o tema central, a obra segue os rumos da vida do poeta, registrando seu exílio em Valchiusa por oposição à corte papal de Avignon e o turbulento ambiente político da época, entre as tradicionais casa aristocráticas da Itália.

 

 

A tradução

 

Questão espinhosa a tradução de poesia. Por definição o fenômeno poético se materializa na transcendência da linguagem, explorando todos seus recursos, e submeter esse trabalho de ourivesaria a outra linguagem é temerário. O problema se eleva se o escritor é eminente.

Petrarca é um poeta de muitos recursos. Não raro recorre ao trocadilho (como em "Laura" e "l'aura", isto é, "aura", em português), o que dificulta muito, além de outros recursos estéticos:

 

Verdi panni, sanguigni, oscuri e persi

(Verdes panos, onde rubro tingidos)

 

Aqui a assonância se perde, o que por certo é inevitável. Em outros poemas o encadeamento das rimas é modificado, e não raro o tradutor apela para a ordem inversa.

Mas em que pesem tais contratempos, o trabalho de Pozenato é um digníssimo feito. O leitor poderá constatar, nessa edição bilíngue, como a fluidez se mantém, as dificuldades sendo contornadas com brio. O trabalho editorial não fica atrás, ilustrado inclusive com belas gravuras de Enio Squeff e contando com notas explicativas em todos os poemas.

Assim, essa edição do Cancioneiro deve ser saudada pelo leitor brasileiro que nela encontrará não apenas um momento vital para toda a tradição poética ocidental como também motivos de sobejo para aquietar as ânsias do poeta:

 

E se esta rima não cair no abandono

Por nobres intelectos consagrada,

Terá teu nome aqui memória eterna

 

 

 

[Publicado originalmente na edição nº 184 do jornal Rascunho]

 

 

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O livro: Francesco Petrarca. Cancioneiro. Trad. José Clemente Pozenato

São Paulo: Ateliê Editorial, 2014, 536 págs., R$112,00

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junho, 2016

 

 

 

Clayton de Souza é escritor, autor do livro Contos Juvenistas (Patuá, 2013) e colaborador do Jornal Rascunho.

 

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