Em Violeta Velha e Outras Flores, Matheus Arcaro

envolve o leitor com o aroma de seus contos.

 

 

 

Atualmente, no país, um gênero que tem contado com bons praticantes é o da narrativa curta, mais especificamente o conto. É, por certo, um alento ao leitor brasileiro, embora não haja indícios de que os literatos nacionais tenham transcendido aquela herança incontornável do conto moderno e que, segundo Harold Bloom, se cifra na influência de duas vertentes: o conto elíptico de expressão enxuta (Tchecov e Hemingway) e o de tessitura fantástica (Kafka e Borges).

Ora, os extremos se tocam, e outras vias também se insinuam no horizonte; é nesse entrecruzar de caminhos que se situa Violeta Velha e Outras Flores, livro de estreia de Matheus Arcaro, em exuberante projeto editorial da editora Patuá.

A obra conta com vinte e dois contos de curta extensão (até mesmo um miniconto) que carregam esteticamente a herança dos grandes pilares do gênero. Dentro desse conjunto há uma divisão em seis grupos que parece concentrar-se mais no componente temático (o grupo um, por exemplo, onde sobressai a questão da infância) que no formal.

O livro, em seu caráter intimista e de abordagem não raro delicada (ainda quando toca em temas incômodos, como em "A fúria sem som"), já se entrega no próprio título. As estórias têm em comum esse imergir na consciência dos personagens, a quem o autor mal disfarça uma forte simpatia e afeto, ambos oriundos da natureza dos dramas a que estão inseridos. Aliás, estes tangem de perto o próprio auto, como é o caso do arco final do livro, dedicado a questões metafísicas e de liberdade existencial.

A despeito da divisão deliberada a que o autor estrutura a obra, o resenhista enxerga uma divisão mais profunda, de teor estético, e que cinde o livro em dois momentos.

Num livro de contos com um número tão considerável deles, e ainda tão variado formalmente, uma ameaça que sempre se avizinha é a da irregularidade. É natural que possa ocorrer numa obra primigesta, e no caso presente, até onde se pode pedir regularidade em peças tão autônomas esteticamente, a questão reside no uso dos recursos expressivos de que o artista lança mão.

Os oito contos iniciais, tão distintos entre si, estão aquém do que se presencia após o conto "Até que a morte nos separe" (embora, em termos de insight, harmonizem-se com o todo). São contos que tornam patente as influências do autor. Em "Casulo rompido" há a remissão à Clarice Lispector e Guimarães Rosa com suas narrativas sobre a infância e sua experiência adâmica com a existência; em "Maquinando", o fluxo de consciência joyceano corporificando adequadamente, em seu ritmo frenético, sem pontuações, o tráfego de pensamentos e reflexões do homem urbano etc. Inicialmente, o leitor já entra em contato com um escritor afeito às questões humanas mais pertinentes.

Em outro nível, no entanto, e muito mais elevado formalmente, está os contos que se seguem ao "Até que a morte os separe" (contos, aliás, curiosamente menos variados em sua forma); salvo engano, o conto supracitado pode ser tido como um divisor do livro e, quiçá, a obra-prima do volume. Em sua estrutura se condensam todos os atributos que particularizam o estilo narrativo de Matheus Arcaro e que, a partir dele, se consolidarão: início e desenvolvimento progressivos e sugestivos, sem revelar demais, como quem vai despindo aos poucos a casca que revela, ao fim, a polpa fresca do fruto; uma construção lapidar dos parágrafos e, por consequência, da prosa como um todo, com um tino para construir metáforas e comparações que deleitam a mente:

 

"Cláudio chega arrastando os olhos pelo chão (...). O acre da boca se intensifica quando pensa que a estabilidade da ponte entre Clarice e ele era apenas aparente. Por não atravessá-la com frequência, só via a regularidade do pavimento; não percebia a estrutura se corroendo sob os gestos e sorrisos complacentes".

 

Neste como em outros trechos, Arcaro tem nadado contra a corrente, rebelde à famigerada cartilha da "escrita enxuta" que tem pasteurizado a prosa moderna, prescrevendo fórmulas do "bom gosto" que devem ser seguidas indiscriminadamente, independentemente do que o conteúdo pede. O autor, no entanto, entrega-se luxuriosamente às metáforas, dir-se-ia mesmo proustianamente, convicto desse caminho cheio de excesso. Em não raras vezes ele consegue harmonizar conteúdo e forma, e os efeitos saltam à vista.

No conto supracitado tem-se, desde o título ambíguo, a indicação exata do drama de um casal de idade prestes a romper os laços matrimoniais definitivamente. As metáforas, o ritmo e as imagens envolvem o leitor do início ao fim do conto.

Em "À beira do abismo", um delírio kafkiano sobre a solidão, um homem em sua cama vê-se ilhado no cume de um rochedo, nele refletindo sobre sua vida e escolhas. Em "Sentido", os caminhos da liberdade, tema caro ao autor, se materializam com tom existencialista num monólogo dialógico envolvendo um homem e uma mulher. A identidade do ser é, sobretudo, essencial à vida; o tema de "Reencontro" é, com algumas nuances, esse mesmo, o personagem principal — um palhaço de propaganda urbano — iluminando-se subitamente após suscitar o riso que tanto rareia na metrópole.

A relação enviesada entre pai e filho contorna "Em nome do pai" e "Violeta velha", enquanto que em "Noite nua", "Alice", "A cura" e "Visita", as patologias, sejam físicas ou psicológicas, entrelaçam-se às da alma, envolvendo crença, razão, autoconsciência e dúvida. Também a esse conjunto pertence o conto "Festa",

Em suma, Violeta Velha e outras flores é um livro de envergadura. A obra não chega a harmonizar, em sua miscelânea estética, todas as partes, mas ressalte-se ser este um livro de estreia e, em que pese tal ponto, é extremamente positivo o fato de Matheus Arcaro haver consolidado um estilo que, por sua própria natureza, refina a percepção do leitor e o deleita com suas lapidadas (em sua maioria) metáforas e comparações evocativas.

Se vai sobreviver ao escrutínio do crítico supremo — o tempo —já é outra questão, mas é certo que tem predicados que não embotarão.

 

 

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O livro: Matheus Arcaro. Violeta Velha e outras flores.

São Paulo: Patuá, 2014, 150 págs., R$37,00

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junho, 2016

 

 

 

Clayton de Souza é escritor, autor do livro Contos Juvenistas (Patuá, 2013) e colaborador do Jornal Rascunho.

 

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