Em meio aos cem poemas que a autora Clara Baccarin reúne neste volume, há um que se intitula "Sentada na encruzilhada" do qual extraímos o verso acima por ser dos que melhor transmitem uma das inquietações básicas da autora.

Todo poema é autônomo enquanto unidade rítmica e semântica, mas está intimamente imbricado no conjunto de poemas aqui apresentados. Num amálgama de observação, memória, inspiração e imaginação, são abordados temas como a criação poética, o amor, a agonia dilacerante da solidão e a "leveza" existencial (um de seus temas mais caros). Em uma poética de variadas facetas, a autora recria em determinado poema fatos marcantes que remaneja na memória, sugere e alicia-nos ao propor enigmas existenciais, e em outros ainda, denuncia a doença da violência, sobretudo aquela violência moral a que estão manietados os sem esperança de nosso mundo transtornado.

Em cada um dos poemas há aquela espécie de "tomada" de apreensão parcial dum todo que flui da poeta. Esse todo é a unidade literária da obra, que implica mundividência, ambas coligadas e interdependentes. Esta mundividência engloba o ser que pensa, com todas as suas faculdades — visão em totalidade do mundo subjetivo e do objetivo. Ocorre de um lado, a ordenação do caos cósmico numa unidade coerente com a harmonia desejada pela artista; de outro, a integração do eu numa ordem universal de que participa como o centro de sua própria poesia.

Outro ponto a merecer destaque: a forma. A oscilação das formas dos poemas, e a maneira como estão dispostos no livro, concorrem para o ritmo da leitura. Há os de formatação mais tradicional (estrofes, rimas, etc.),  outros curtos, de enfoque certeiro, direto ao núcleo, cuja fórmula seca e rígida os aproxima do Haicai. Isto acaba por transmitir ao leitor a agradável sensação de que o verso busca novas configurações e definições. Refiro-me à leitor — em sentido amplo, e não apenas o leitor especialista, ou leitor crítico. Também por isso há lugar assegurado para a emoção produzida pelo texto, a emoção como um dos objetivos do texto. Inútil referir exemplos. São muitos. Vale conferir.

Há nessa encruzilhada terrível em que nos encontramos, esta escritora que mesmo ao falar dos insondados labirintos do sujeito e cantar o sentimento de um eu que se isola como centro do universo afetivo, o faz através de uma linguagem de assumida simplicidade, que coletiviza este eu, que o identifica com o homem comum. Nessa escrita estrita, precisa, onde o menos diz mais, segue perseguindo as diferentes maneiras de dizer verdades. Manifesto desejo de um melhor existir, de um futuro possível.

Depreende-se do conjunto de poemas reunidos aqui, em suma, o demasiado amor de Clara Baccarin pela vida. E como o transmite? Compondo poemas que não quebram o silêncio de onde vieram.

 

 

Dois poemas de Instruções para lavar a alma

 

 

Poesia resistência

 

 

Morre um poema no passo aflito

No corpo cansado, na cabeça tumultuada

Nos dias exprimidos, na expressão contida

Nas emoções engolidas no café da manhã

No amor deixado de lado

 

Morrem poemas nos smartphones

Que nos despertam a cada dois minutos

No zumbido das televisões

Nas chuvas de notícias sem sentido

 

Morrem poemas

Na intolerância política

Nos sorrisos dissimulados

Na falta de abraço

No cinza dos olhares

Nas obrigações dos laços

 

Morrem poemas na ausência de diálogo

Nas segundas intenções dos gestos

Nas prosas dos elevadores

No sapato apertado

No desconforto dos comportamentos

 

Morrem poemas nas repetitivas danças das cidades

Na hierarquia dos corações

Nas camadas de gelo das relações

Morre um poema no sexo fast food

Nos amores líquidos

No estresse do trânsito

Nos quinze minutos de almoço

Nas histórias dos jornais

Morrem poemas nas importâncias no mundo

 

 

 

 

A saudade matou os tomates

 

 

A saudade se espalhou como rameira no meu quintal

Matou os tomates, as alfaces e até as minhocas

 

A saudade deitou na minha cama,

Puxou meu cobertor, adentrou meu travesseiro

E não me deixou dormir

 

A saudade bugou a internet

Viralizou em todas as páginas, browsers e monitores

Da rede mundial de almas

 

A saudade grudou no céu da boca,

Costurou as cordas vocais, entupiu os canais linfáticos

Se hospedou como anfitriã

 

A saudade virou protagonista de novela

Sabe fazer comercial de pasta de dentes

Sabe o resultado do futebol

 

A saudade baixou em todos os seres

E em todos os olhos que olho

Vejo a sua encarnação

 

A saudade bafejou na minha nuca

Tirou as minhas coisas e me jogou na rua

Num sopro de morte, gelou até as pontas dos pés

 

A saudade encheu de buracos o meu estômago

Atravessou a pele, esfarelou o osso

Entrou no meu copo de vinho

E na fumaça expelida pelos meus pulmões

 

A saudade se espelhou nas janelas e vitrines

Nos rios, nos pingos d'água

E no meu próprio reflexo

 

A saudade virou presidente, juiz e deputado

A saudade faz leis, e me manda para a cadeia

E defende a pena de morte

 

A saudade escreveu mandamentos

Em cada uma das linhas

Das minhas impressões digitais

 

 

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O livro: Clara Baccarin. Instruções para lavar a alma.

Belo Horizonte: Sempiterno, 2016, 130 págs., R$30,00 + frete.

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março, 2016

 

 

Krishnamurti Góes dos Anjos. Escritor e pesquisador. Autor de Il Crime dei Caminho Novo (romance histórico), Gato de Telhado (contos), Um Novo Século (contos),  Embriagado Intelecto e Outros Contos e Doze Contos & Meio Poema. Tem participação em 22 coletâneas e antologias, algumas resultantes de prêmios literários. Possui textos publicados em revistas literárias no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último livro, publicado pela editora portuguesa Chiado, O Touro do rebanho (romance histórico), obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional - Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ, em 2014, na categoria Romance.