Sabemos todos da simples definição grafada em dicionário: solidão é próprio daquele que se sente só, isolado, solitário. A despeito dos que sofrem de misantropia, viemos ao mundo para viver em sociedade. Nada somos sem o outro para nos descobrir. Se desde nossa existência aprendemos realmente a conviver, é outra questão. Inconteste, a solidão causa desconforto. Insurgindo contra o bem-estar, provoca um motim dos sentimentos e desperta o medo. Ou, se extrema, a loucura. E este labiríntico e incompreensível estado psicológico causado, entre outras coisas, pela solidão, é a premissa de Luiz Bras em seu romance Sozinho no deserto extremo.

Grande obra. Grande Obra. Ao encontrarmos uma literatura com letra maiúscula, apenas a palavra grande bastaria. O autor Luiz Bras (alter ego que nunca está só), pega o cidadão comum — sujeito habituado a valores, princípios e padrões preestabelecidos de convivência —, arrebata-o da vida mundana e nos presenteia com um enredo onde o espetáculo da loucura é companhia do leitor. Nada a ver com O elogio da loucura, de Erasmo, mas, que o satírico está presente na transformação do cotidiano apresentado na ficção de Luiz, não há dúvida.

Li a obra tomado pelo prazer da companhia da velha e boa literatura, essa atemporal, que resiste ao passado, presente, mercado e modismos. Sozinho no deserto extremo surpreende em vários aspectos. Especialmente por tratar a ficção científica com a seriedade e inteligência que merece. Sim, Luiz, neste romance, ao lançar mão da ficção científica, o faz com o cuidado e a sabedoria de quem não só conhece o ofício da escrita, mas da literatura. Tanto que o livro não se parece com um desses clichês. Nada de fantasia pela fantasia. Extraterrestres, outro planeta, mundo paralelo. O conceito Matrix está mais dentro do que fora da personagem.

Profundo conhecedor da literatura — por conseguinte um ávido leitor —, o autor recheia sua obra com inúmeros significados. Há referências cinematográficas e literárias que fazem o leitor pensar e, nalguns momentos, desejar conhecer. Nietzsche, Aldous Huxley, Ray Bradbury, Monteiro Lobato, Kerouac, Kafka, Shakespeare, Cervantes, Jorge Amado. Além desses gênios, filmes como O sexto sentido, Cidade das sombras, Vanilla sky, etc., pontuam a narrativa. Essas referências, é bom que se diga, não estão presentes para demonstrar o lado culto do autor, Luiz não precisa disso. Na história, tudo tem um porquê.

Davi — propositadamente uma personagem-chavão, estereótipo da maioria de nós —, certa manhã se vê sozinho no mundo. Ao acordar, é invadido pela realidade do nada. Onde, todos? Mulher, filhos, vizinhos do prédio, da rua, da São Paulo inteira. Onde? Aqueles que um dia existiram, se foram. Sumiram. Humanos não dão mais significado à palavra humanidade. Tudo mudou. Uma metamorfose aconteceu na vida de Davi (por isso o autor cita Kafka). Não virou um inseto monstruoso, mas ficar sozinho no mundo o transformaria em algo pior.

Luiz me contou que, quando criança, fantasiava o mundo sem ninguém. A fantasia virou ficção. A ficção de Luiz transformou o mundo num deserto extremo. E o deserto que tem o caos como paisagem invadiu o universo de Davi.

Davi, dono de uma agência publicitária, vive as convenções preestabelecidas pelo cotidiano e pelo capitalismo que confere à sociedade significados com base no consumo. Nada de novo. Somos o que consumimos. Davi nada mais é do que parte dessa mola propulsora. A coisa mais normal para Davi é criar e vender anúncios. Até que desperta num mundo novo. Um admirável mundo novo onde não haverá mais anúncios, as transmissões entrarão em colapso e o dispensável e o indispensável que fazem o mundo funcionar — incluindo o celular — morrerão aos poucos. Até isso acontecer, porém, tudo estará à disposição de Davi, basta entrar, pegar, aproveitar. A vida realmente parece perfeita vista por esse prisma. Será bela, a solidão? Por estar sozinho no mundo, Davi dispõe de tudo, a qualquer hora. Pode ir para qualquer lugar sem ser questionado nem incomodado por ninguém.

Além da fantasia de criança, na página 296 do romance o autor faz questão de deixar claro uma das inspirações para essa sua história. "Davi recorda um conto lido na adolescência. Um conto de Ray Bradbury, da coletânea As crônicas marcianas. Nessa narrativa leve e bem-humorada, todas as pessoas que viviam em Marte voltaram para a Terra, onde estava ocorrendo uma guerra devastadora. Voltaram para se reunir aos entes queridos. Todas as pessoas menos uma. Um minerador solteiro e sem amigos, que vivia nas montanhas, não ficou sabendo da debandada e foi deixado para trás. [...] Agora ele perambulava pelas cidades fantasmas, divertindo-se nas lojas, nos cinemas e nos restaurantes abandonados, dormindo cada dia numa casa diferente, vivendo despreocupadamente".

Passado o susto de se ver sozinho, Davi faz exatamente igual ao conto de Bradbury, perambula pela cidade e aproveita. O mundo é todo seu. Dos outros, restaram montinhos de roupas pelo chão. Ah, as roupas! Cemitério de tecidos sem carne nem ossos. Ao observá-las amontoadas, como se estas tivessem apenas deslizado do corpo, Davi pensa em abdução. Uma possibilidade. Outra possibilidade está na pista deixada por Luiz no capítulo Visconde de Sabugosa, página 235.  Neste capítulo, Davi encontra um exemplar antigo do livro A chave do tamanho, da série do Sítio do Picapau Amarelo. Nessa aventura, Emília extermina um terço da humanidade, no mínimo. A personagem de Monteiro Lobado mexe na chave do tamanho e as pessoas são reduzidas a dimensões quase microscópicas. Só as roupas ficam amontoadas no chão. Na descrição que Luiz faz dessa passagem, essas pessoas minúsculas viram presas de aranhas e outros bichos. As referências, cada vez mais, ganham sentido na obra.

Mas qual será o sentido maior? Abdução. Redução. Mundo paralelo. Delírio. Loucura. A explicação para o sumiço das pessoas pode vir de vários lugares. O leitor, no decorrer da história, vai sendo induzido a pensar e tirar as próprias conclusões. No entanto, o importante não é descobrir como as pessoas sumiram. O mais contundente é acompanhar a trajetória de Davi e entender o poder aterrador da solidão.

A solidão — que ignora o mundo ao redor e, em razão disso pode ter seu instantezinho de beleza — também enlouquece.

Davi, homem comum, que nem gosta da convivência social (é um tanto misantrópico), de repente sofre as consequências inimagináveis de estar só no mundo. Ele, o único homem, sente a falta das pessoas. O cotidiano e as máscaras sociais lhe fazem falta. Neste instante, cabe uma analogia: o homem primata. Davi volta a ser o primeiro e único homem do mundo. O primata que tem em suas mãos o poder do fogo.

Fogo. Não se passa imune ao fogo nesse livro. "Queimar é um grande prazer. Um prazer muito especial. Um orgasmo" (pág. 12). O fogo que garantirá a vida, igualmente a destruirá. O fogo do inferno no novo paraíso apocalíptico.

Feito vândalo, Davi coloca fogo em uma livraria. Há mensagem nesta ação que não seja a da própria destruição? É possível concluir, sem muito pensar: botar fogo em uma livraria é o mesmo que queimar a cultura. Daí, outro questionamento: esta cultura que temos é válida ou merece ser queimada? E mais: de que vale a cultura sem pessoas? Mesmo para Davi, que é estudado, que gosta de filmes, a cultura não mais lhe servirá.

O subliminar que envolve esse homem e suas ações no desenrolar da história é fascinante.

Apesar da seletividade cultural da personagem, que se percebe no decorrer da obra, Davi, meia-idade, homem barrigudo e de óculos, é retratado com os aspectos físicos da imperfeição. Não seria ideia do autor, ao nominar o personagem, questionar os padrões do que é perfeito? David (este com D) é o nome da escultura de Michelangelo. David, corpo perfeito esculpido em mármore para representar o herói bíblico seria o contraponto? O David bíblico versus o Davi comum. O Davi sem D, imperfeito. O herói versus o anti-herói. Se na Bíblia David vence Golias, neste romance, Davi entra em batalha consigo e com os efeitos da solidão. Em sua inesperada jornada, é o cavaleiro errante, o Dom Quixote do cataclismo e da extinção de sua espécie.

Deus fez o mundo em seis dias, no sétimo, descansou. E no oitavo dia (que é o primeiro dia na obra de Luiz) a solidão começou a mostrar seu lado irascível, preparando-se para exterminar tudo o que foi feito. Se no Ensaio sobre a cegueira, de Saramago, a falta de visão viria a ser a responsável pela degradação humana, na história contada por Luiz a solidão pode acabar com tudo. Por isso, a luta de Davi é árdua. Uma luta que não se vence sozinho. Para matar a solidão, é preciso estar acompanhado. E uma batalha precisa ter propósitos. Não é sem razão que o protagonista, sozinho no deserto extremo, encontra companhia e motivos para guerrear.

Um telefonema. Depois mais. Uma mulher do outro lado da linha. Se é verdade ou imaginação de Davi, o leitor descobrirá. O que vale ressaltar é que um mundo sem ninguém é um mundo sem ameaças. E a fortaleza do homem se consolida – pelo menos no caso de Davi — na existência de um oponente. A personagem, então, se vê no dilema entre ser herói ou ser covarde. A mulher precisa ser salva. Valerá à pena? Será ela merecedora? Existe a mulher perfeita, capaz de arrancar o homem de sua raiz medíocre, com o intuito de salvá-la? No cinema, muitas. Na literatura, outras tantas. Nesta passagem do livro, contudo, a mulher é abordada pela visão míope, autoritária e medíocre do homem: mulher versus objeto. A mulher perfeita para Davi não é a do telefone. É Graça, sua amante. Graça, a boneca inflável que o acompanharia nos bons e nos maus momentos. Apesar disso, (Adão e Eva — Davi e Graça) o mundo não se faz somente com homem e mulher. A menina-santa, uma garota de dez anos que é encontrada brincando com um vibrador no sex shop, também povoa a solidão de Davi e se torna a razão maior de sua batalha contra os perseguidores.

Mas, afinal, quem são essas pessoas? Seriam tão-somente fruto do delírio solitário? A angústia de estar sozinho nos faz criar mundos próprios? A solidão concreta — não a metafórica — realmente nos enlouquece? "Sem interlocução, não existe poesia" (pág. 101), eis tudo.

Em Sozinho no deserto extremo (livro merecedor de várias reedições), Luiz Bras tira o leitor do lugar comum, o conduz no caminho de algumas respostas, mas, principalmente, desperta-o para novas indagações. Não espere Davi queimar todos os livros para ler!

 

 

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O livro: Luiz Bras. Sozinho no deserto extremo.

São Paulo: Prumo, 2012, 320 págs.

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setembro, 2016

 

 

Newton Cesar é escritor, autor de Um minuto e Bendito maldito, entre outros.