Chico Lopes envereda pela segunda vez pelo gênero romanesco, depois de sua premiada estreia, em 2011, com Um estranho no corredor (o qual lhe rendeu um Jabuti no ano seguinte). Corpos Furtivos carrega toda a força narrativa da obra que o antecedeu, sem que, no entanto, dela se aproxime, quer na temática, quer na forma. Narra-se aqui a história de Eunice, mulher de meia idade tolhida pelo pai e pela irmã mais velha — mantenedora anacrônica da moralidade provinciana do progenitor —, moradora de uma dessas cidadezinhas do interior que cresceu em ritmo galopante nas últimas décadas, alcançando uma dimensão que, embora desprezível quando comparada a de uma megalópole, acachapa seus velhos habitantes, gente com rédeas no corpo e na alma.

Eunice experimenta este habitat de impessoalidade crescente com um misto de curiosidade e temor. Na medida em que ela erra pelos sítios da infância, transmutados, pela picareta do progresso, em shoppings, lojas de departamentos e populosos arrabaldes, emerge toda a gama de preconceitos que sedimenta aquela sociedade cujo crescimento físico não foi acompanhado pela maturação intelectual. Malgrado estejamos no século XXI, ainda somos presas de regras que ditam quais comportamentos são considerados os corretos aos homens e às mulheres; sobretudo quando habitamos cidades interioranas. Cabe à mulher ainda recalcar o desejo, exacerbado no espaço do sonho ou da fabulação.

No emaranhado labiríntico de ruas em que a cidade natal se transformara, Eunice persegue um cheiro, um corpo, um homem. Quem é ele? O enquadramento novelesco que esta mocinha temporã lhe dá nos faz lembrar James Stewart em Um corpo que cai, a perseguir Kim Novak pelas intermináveis pirambeiras de uma São Francisco mais sonhada que real. Como a personagem de Hitchcock, a de Lopes é presa nas teias da ficção; no sem-número de narrativas açucaradas, saídas ora da banca de revista mais próxima, ora do cinema do quarteirão: Sabrinas, Biancas, a Melodia imortal, o Candelabro italiano, os olhos úmidos de Omar Shariff a atravessarem a languidez temerária de um deserto de estúdio. A pena de Chico Lopes derruba por terra todos os idílios da ficção. Resta Eunice, mulher completa numa sociedade que se pauta por estereótipos; a experimentar, entre culpada e deleitada, todos os tipos sociais pré-definidos — da mocinha romântica à puta —, transcendendo-os todos.

 

 

[kim novak, em um corpo que cai]

 

 

O enredo costura-se por flashbacks que tecem com firmeza um exemplar muito verossímil de mulher ao mesmo tempo tolhida pelos preconceitos sociais de sua cidadezinha, e reprodutora deles. O medo que tem do pobre, do migrante, de tudo que lhe é desconhecido, herdado do pai, convive com o desejo de se dar ao mundo, metáfora do incontornável desejo sexual que é motor da narrativa. Seus ideais se encontram a meio caminho da ficção e da realidade. O estranho que lhe cruza furtivamente o caminho, e que ela passa a perseguir qual perdigueiro, traz contornos de agente secreto cinematográfico num banalíssimo corpo de operário. É desdobramento da fauna masculina com a qual ela cruzara ao longo de sua vida: seguro de si, hipersexuado, a ostentar o pênis à guisa de troféu, como se o homem fosse o exemplar máximo da criação, seguido naturalmente pela mulher, humilíssima diante de seu deus.

A busca por este homem leva Eunice ao encontro de seus homens pregressos, buscados todos com sofreguidão, ainda que dentro da discrição requerida pela moralidade carola de sua cidade. Nas entrelinhas desses encontros furtivos se esboça o abismo existente entre os gêneros — que Chico Lopes compreende como se mulher ele fosse. Seu narrador perscruta os corações de seus machos, sem, contudo, perdoar-lhes as faltas. É ferino ao tratar dos grandalhões afeminados, que procuram mulheres à imagem e semelhança das mães babonas, ou dos machões presumidos, aos quais a lascívia incontornável é imposta como castigo. E olha para a sua protagonista com um carinho imenso, compreendendo sua sexualidade reprimida, conivente com o seu desejo de evasão:

Era assustador o pouco que se parecia, objetivamente, naquele pedaço de espelho que não a devolvia inteira, com a Eunice que se agitava nela. Essa mulher loura, comum, com bolsa debaixo do braço, com esses olhos meio espantados, feito uma dona de casa sensata, propensa a ficar rotunda e sem maior graça que vagasse numa feira ou supermercado como quase matrona escolhendo repolhos e enchendo sacos de plástico com bananas e tomates, tinha algo a ver com a mulher que se envolvera numa aventura imprevisível com um deus? Ah, mas seus olhos valiam. Os olhos. Ele gostaria deles, se a olhasse com atenção.

 

Todavia, na literatura de Chico Lopes a realidade suplanta a quimera. Fascinada pelo Candelabro Italiano — retrato idealizado da jovem de província que se bate contra o sistema para descobrir o amor em Roma, a cidade mais romântica do mundo —, Eunice encontrará para si um destino mais alinhado ao de John Ferguson, ou ao de Blanche Dubois, habitantes extemporâneos de uma cinematografia afeita à edulcoração. Entre as sendas do vestido violeta, ou num quarto reles de hotel, as ficções se desnudam e se desfazem. Mas o desnudar-se também é um abrir-se à revolução.

 

 

 

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O livro: Chico Lopes. Corpos Furtivos.

Guaratinguetá: Penalux, 2015.

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março, 2016

 

 

Danielle Crepaldi Carvalho. Pós-doutoranda pela Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP), com pesquisa a respeito dos usos dos sons no cinema silencioso. É doutora pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), com tese que investiga a relação que os cronistas brasileiros de 1894 a 1922 estabeleceram com o cinema. Mestre pela mesma instituição, com dissertação a respeito da produção teatral de Coelho Netto escrita em fins do XIX. É coorganizadora de edições anotadas de seletas de contos dedicados a João do Rio, a António de Alcântara Machado e aos escritores Pré-Modernistas e Modernistas (todas pela Lazuli), e coautora da tradução e análise crítica do melodrama L'auberge des Adrets/A Estalagem dos Trampolineiros (publicada pela Penalux), marco da cena teatral francesa. Tem artigos publicados acerca da Literatura, do Cinema e do Teatro. Edita quinzenalmente o blogue Filmes, filmes, filmes!