Se há algo que se pode dizer do livro Não, de Bruna Mitrano (Patuá, 2016), é que ela sabe dizer não de maneira brutal. Não permite hesitações, possibilidade de dúvida. É um não retumbante. Em tempos em que se discute tanto o significado de um não, se quer dizer talvez, pode ser, um não querendo dizer sim. Pois o não de Bruna quer dizer não, da maneira mais seca possível. Bruna é mulher e sabe dizer não como poucas e como poucos (estes mais poucos ainda). Seu não é a poesia. É um não que dói. O campo de batalha é a mente e o corpo de Bruna. Suas armas são a linguagem. Com o corpo, Bruna resiste bravamente. Ela está ali, íntegra em seus esfacelamentos.

 

Se constrói em seu livro uma poética da brutalidade, não basta dizer não, Bruna diz não te pegando pelo pescoço e te encostando na parede. Seus poemas são fortes, agressivos, revelam um eu lírico que não está disposto a dizer sim para a derrota, para o sofrimento, para a desdita. Não vou sofrer calado, é o subtexto do eu lírico. Eu lírico condensado demais para dizer uma frase tão mundana, sua resposta é mais cortante e mais inesperada. O não de Bruna é rigoroso, bem pensado. Ela não aceitará a violência da vida de cabeça baixa e a luta se faz na linguagem. A linguagem é o único recurso e sem dúvida o mais forte diante do embrutecimento, por isso, ela se torna tão sólida. A linguagem é uma barricada, mas pode ser também "a ferrugem nos dentes" da doçura, "os ossos triturados do rosto" da beleza, "a fuga pelas beiradas sem alarde", "a gestação infinita" da maldade, "a tragédia pronta para despacho", "a dança sobre as brasas" do abandono, "o mijo morno" da piedade, "os pés decepados" do silêncio, "os olhos graves de lama-mangue" da desigualdade, "a demolição da casa da" fome, "o nascimento da fruta podre" da amargura, "o soco da língua no asfalto" do pânico.

 

Bruna sabe que mesmo dizendo não, tem gente que não entende, então ela desenha. Sim, ia me esquecendo dos desenhos que complementam o não de Bruna selvagemente. Bruna não é mulher de não me toques. Não tem medo algum de se sujar de sangue, de tinta, e do que mais se precise para afirmar seu lugar no mundo. Porque ama arrebatadamente, despudoradamente, mas deixa claro "meu bem, seu amor é patético ao meio-dia". Não todo o tempo, não à meia-noite, "seu amor é patético ao meio-dia", mas poderia ser em qualquer outro momento. Aqui está a falha denunciada nos versos de Bruna, a frustração, o fracasso. Nosso amor pode se tornar patético a qualquer hora, inclusive ao meia-dia "bicando a asa de frango frita". A poesia, não.

 

Prepare-se para os desenhos de Bruna porque "não há o que se ver que não sobrecarregue a carne". Desfilam de modo obscuro, em contornos cheios de negrura, os rabiscos de personagens desesperados, feitos por Bruna com giz de cera, pastel, aquarela, que parecem a ilustração do terror. É, de fato, muito impressionante ver o sofrimento pintado, a perda, a desolação, o sexo feito com ódio, "a masturbação com raiva de si", o suicídio no cordão umbilical, a hemorragia, o aborto, a sensualidade do desespero, a convivência com os ratos, o corpo como poleiro para um corvo, que não deixa dúvidas de que "não se dá as costas para a morte".

 

A vida é uma experiência brutal e o que Bruna fez com essa brutalidade é assombroso. O livro Não é composto por várias [mãos de pólvora afagando o fogo].

 

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O livro: Bruna Mitrano. Não.

São Paulo: Patuá, 2016.

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setembro, 2016

 

 

Vinicius Varela é tradutor e publicou os livretos de poesia Para abrir a porta de emergência (2014), Poentes sob a ponte (2015) e De ellos sabemos que estuvieron y nada más (2014). Participou da antologia Clube da Leitura Vol. III (2015). Ficou em segundo lugar no Prêmio Carlos Drummond de Andrade (2015), organizado pela UERJ. Traduziu poemas de vários poetas como Alexandre Guarnieri e foi um dos tradutores do livro América Latina en 130 documentales, de Jorge Ruffinelli, com lançamento previsto para 2017. Mantém o blogue Aparatagens.