O ano é 1911. Necker começa a contar, no número três o tiro dispara e acerta uma árvore. Necker e Ditzen carregam a arma de novo. Necker conta novamente, mas desta vez tão rápido que mal dá tempo de Ditzen mirar, ele leva um tiro que raspa o coração e fere o pulmão. Necker cai morto com um buraco no peito. Rudolf Ditzen é acusado de ter matado o colega de ginásio e é internado em uma clínica psiquiátrica. Postumamente, em sua biografia, seria revelado o motivo deste esquisito duelo: foi uma tentativa dissimulada de suicídio duplo. Necker, que na época tinha dezesseis anos, e Ditzen, com dezoito, combinaram de se matar por não suportarem mais o cotidiano em uma sociedade massacrante, mecanizada e monótona, sob o peso do conservadorismo e do autoritarismo.

 

A própria biografia de Rudolf Ditzen, conhecido como Hans Fallada, daria um romance instigante, tão agitada e trágica foi a sua vida! Na família chamavam-no de pechvogel (azarado). Teve todas as doenças complicadas de criança. Com três anos de idade caiu de quase dois metros de altura. Aos dezesseis anos foi atropelado por uma carruagem, as patas do cavalo lhe causaram graves ferimentos no abdômen e na cabeça, quebrou uma perna e alguns dentes. Permaneceu meio ano no hospital. Não terminou o ginásio e iniciou um estudo técnico de agronomia. Trabalhou na câmara da agricultura e, em 1924, passou três meses na prisão acusado de desvio de dinheiro. Em 1926 foi de novo condenado, desta vez por dois anos, novamente acusado de desvio de dinheiro. Fallada possuía uma personalidade difícil, com distúrbios psíquicos, sofria de insônia e dor de cabeça crônicas, era viciado em ópio e alcoólatra. Apesar de ter sido um marido complicado, foi pai de três filhos, e quando a mulher pediu a separação, embriagado, tentou acertá-la com um tiro. Divorciado, voltou a se casar, desta vez com a viúva Ursula, trinta anos mais nova, também viciada em ópio.

 

A temática de Hans Fallada aborda o homem em meio às ciladas da sociedade. Suas personagens são indivíduos de classe-média baixa acirrados ao meio em que vivem, como o prisioneiro, o alcoólatra, o funcionário pobre, os camponeses, as prostitutas, entre outros. Fallada segue a tradição do Naturalismo em que a realidade empírica é descrita de forma exata e os temas se restringem às causas sociais. Entre as suas obras que merecem menção estão incluídas as seguintes: Bauern, Bonzen und Bomben (Camponeses, figurões e bombas, 1931), romance que trata dos protestos dos camponeses no norte da Alemanha, baseado em uma situação real ocorrida na cidade de Neumünster, em 1929. Fallada trabalhava como jornalista de um jornal local e foi enviado à região para fazer a cobertura dos acontecimentos. Com o terceiro romance, Kleiner Mann, was nun? (Pequeno homem, e agora?, 1932), o autor irrompe no mercado internacional. O romance narra as dificuldades de subsistência de um casal no final da República de Weimer, que, apesar de todas as derrotas cotidianas, das limitações financeiras e da exaustão por consequência do trabalho, conserva o amor existente entre eles. Em Wer einmal aus dem Blechnapf frißt (Quem tem que comer da marmita, 1935), o autor expõe, de forma socialmente crítica, as suas experiências na prisão de Neunmünster. Wolf unter Wölfe (Lobo entre lobos, 1937), mostra o retrato de uma sociedade sufocada pela alta inflação da época, a anonimidade do indivíduo em um mundo no qual cada um quer levar vantagem. As ações e estórias, os caracteres distintos das personagens estão amalgamados de tal forma deixando transparecer a complexidade do tema sem, entretanto, cair no erudito. O estilo é sóbrio e coloquial, cheio de diálogos, como é típico deste autor. O romance Der eiserne Gustav (O Gustavo de ferro, 1938), descreve o declínio da família Hackendahl durante o período da grande inflação, no meio dos conflitos sociais na República de Weimar. Mas a causa maior do desastre na família é o próprio soberano, cuja tirania determina de forma decisiva o destino de seus cinco filhos.

 

Hans Fallada era então um escritor reconhecido no meio literário, mas seu nome quase não aparecia nas antologias ou livros especializados. Com o relançamento do último romance, Jeder stirbt für sich allein (Cada um morre por si, tradução livre), em 2011, ficou garantido o seu merecido lugar de relevância na história da literatura em língua alemã. Dennis Johnson, tradutor do romance para o inglês, não entende por que o livro demorou 60 anos para despertar a atenção dos leitores de língua inglesa. Segundo Johnson o livro pertence à literatura universal: "fiquei comovido com os temas tratados por Fallada, e com a época que ele relatou. Quanto mais eu conhecia a sua biografia e as circunstâncias sob as quais ele escreveu, maior era o meu apreço. É admirável a sua diversidade literária. Não apenas porque Fallada possuía a ousadia de tratar de temas completamente diferentes, mas porque adotava sempre uma nova perspectiva cada vez que os narrava. Ele também mudava o estilo e a estrutura nas diferentes obras". Cada um morre por si ficou esquecido durante seis décadas e somente no início dos anos dois mil surgiu um novo e forte interesse pelo tema. Hoje a obra se tornou um fenômeno até mesmo na própria Alemanha. Tudo começou com o lançamento na França, em 2002, sob o título Seul dans Berlin, onde vendeu mais de cem mil exemplares. Em 2009, nos EUA, Every Man Dies Alone, alcançou duzentos mil exemplares, em seguida, foi lançado em vários países, na Inglaterra, Itália e Holanda e, também, em Israel, o entusiasmo foi grande.

 

A obra, de mais de oitocentas páginas, foi escrita em apenas um mês, o que significa escrever por volta de trinta e seis páginas diárias. Fallada escrevia à mão, iniciava de manhã, às cinco, e terminava às dezessete horas. Nesse período, estava submetido a um tratamento contra o vício e encontrava-se internado em uma clínica, em Berlim, onde veio a falecer, em 1947, de insuficiência cardíaca, antes de o livro ser, três meses depois, publicado. Na ocasião, algumas passagens consideradas críticas foram extraídas do livro para reduzir o número de páginas. O original, com os trechos excluídos, foi encontrado no porão da editora Aufbau Verlag, em Berlim, e a versão na íntegra foi publicada em 2011, acompanhada de um mapa antigo de Berlim e fotos de cartas, documentos, dos cartões postais e do casal Hampel.

 

Em Cada um morre por si, Fallada inspirou-se na história da vida real do casal Elise e Otto Hampel, condenados à morte por decapitação no início do regime nacional-socialista. O amigo de Fallada e ministro da cultura, Johannes R. Becher, foi quem lhe sugeriu escrever um romance que tratasse do caso. Becher, ao visitar o escritor internado na clínica, entregou-lhe a pasta contendo o processo sobre o casal que, entre 1940 a 1942, iniciou uma pequena e particular chamada à resistência. A ação ingênua e inofensiva do casal foi um contraste com a condenação à morte por decapitação, revelando a latente paranoia arraigada no regime. A resistência limitava-se a simplesmente depositar nas escadarias dos prédios cartões postais contendo dizeres antinazistas como: o líder manda! A gente segue! Sim, nos tornamos uma manada de cordeiros… ou Desistimos de pensar.

 

A história do casal Quangel, como foi chamado no romance, lembra-nos a dos irmãos Scholl, iniciadores do movimento de resistência Rosa Branca, criado por jovens estudantes de 21 a 25 anos de idade, em 1942. O movimento constituía em distribuir panfletos antinazistas nas caixas do correio de intelectuais nas grandes cidades, no sul da Alemanha e Áustria. Os jovens foram presos e condenados à morte. O nome da líder, Sophie Scholl, permanece até hoje como um símbolo da resistência pacífica contra o regime de Hitler. Provavelmente o casal Hampel soube do Movimento Rosa Branca e se inspirou nele ao pensar em escrever os cartões postais. Tal fato nunca será esclarecido. No romance, os Quangel não possuíam uma estratégia bem elaborada. Movidos pelo sentimento de frustração, perda e tristeza, após receberem a notícia da morte do único filho, que tinha sido abatido nos campos de luta contra a França, começaram, de forma espontânea e ingênua, a escrever os cartões postais, depositando-os na escadaria de um prédio. Acreditavam que alguém pegaria e o leria aderindo ao movimento, proliferando-o. Ninguém aderiu ao movimento e ironicamente muitas vidas foram mortas por culpa indireta do casal.

 

O autor povoa o enredo com figuras marginais: alcoólatras, pequenos criminosos, prostitutas, operários, e conduz o leitor a um mundo sinistro, sufocante e absurdo, onde a luta pela sobrevivência é baseada no medo ininterrupto e no forte sarcasmo. O drama e a tragédia das personagens são narrados com estilo dinâmico, eloquente e vivo. Fallada adota uma linguagem abundante em diálogos, fazendo uso, em parte, do dialeto berlinense falado nos becos, para narrar a história de indivíduos envolvidos na voragem de um sistema ocluso, arremessados nos seus mecanismos de repressão, censura e extermínio, e sem a mínima chance de escapatória. Mas a questão principal nesta obra é a batalha unilateral de um casal de velhos solitários e revoltados com o rumo de suas vidas em um ambiente nazista. Em um prédio em Berlim, nos anos quarenta, os Quangels levavam uma vida isolada, solitária e discreta em meio a uma vizinhança que infalivelmente denunciava uns aos outros. As constantes interrogações por motivos irrisórios tornavam-se abissais, induzindo o interrogado à denúncia recíproca, à deturpação de fatos e, por fim, à morte. Como no caso da família Persickes, cujos dois filhos pertenciam a SS, o marido era um alcoólatra e fiel ao nazismo, ninguém da família possuía escrúpulos, deduravam qualquer um para obter vantagens dentro do Partido Nazista. Os Persickes moravam em um dos andares do prédio e os Quangel precisavam passar pelo apartamento deles para chegar ao andar de cima: "mais uma razão para passar no apartamento deles, porque era preciso mostrar a todos que tinham uma posição como a deles, que um se mantém fiel ao partido, a fim de conseguir privilégios, mas isso só era alcançado fazendo algo para o partido. Fazer algo significava denunciar o outro, por exemplo, notificar: este ou aquele ouviu um programa estrangeiro de rádio".

 

Otto Quangel era um homem avarento que não entrou para o partido não por motivos ideológicos ou humanistas, mas porque tinha enorme dificuldade em gastar dinheiro. Eram atribuídas tarefas humilhantes àqueles que não faziam parte do partido. Mas ele preferia aturar a humilhação na oficina de marcenaria a gastar um centavo a mais com o partido. Otto foi um pai que nunca amou o filho. Desde o seu nascimento o via como um estorvo. A sua tristeza pela morte do filho foi devido à preocupação com o estado de espírito de sua esposa, como ela superaria a perda e pensava em tudo aquilo que seria transformado entre eles. A esposa trabalhava para a chamada Frauenschaft (Organização das Mulheres), na qual as mulheres, sob a ideologia nazista, ocupavam-se com a casa, o marido e os filhos, ou eram empregadas na Arbeitsfront, (Frente de Trabalho). A ideia de escrever os cartões postais partiu de Otto, na ocasião em que a esposa lhe deu a notícia da morte do filho e exclamou, em tom de acusação: "Você e o seu líder!". O marido ficou encafifado com a frase e, com o passar dos dias, começou a elaborar um plano para mostrar a Anna que ele não tinha nada a ver com o líder. O primeiro cartão dizia: "Mãe! O líder matará também o seu filho, ele não vai cessar enquanto não trouxer luto em todas as casas deste mundo". Toda semana um cartão era escrito e depositado na escadaria de algum prédio. Significava correr um imenso risco de vida por semana. Mas através dessa ação os velhos voltaram a se unir, recuperaram o respeito mútuo, certa vitalidade surgiu dando lugar a uma nova fase em suas vidas, uma fase de esperança de, em um futuro próximo, ver o sistema ser derrotado e poder dizer: nós contribuímos para a sua derrota. Anna passava o tempo pensando nas novas frases, reformulando-as, discutindo com o esposo sobre a melhor expressão a ser adotada. Otto passava os domingos sentando à mesa da cozinha escrevendo com dificuldade, com letras tortas e erros ortográficos.

 

Outro casal que aparece no enredo é Eva e Enno Kluge. Ele, um mulherengo e alcoólatra, sempre desempregado, buscando conseguir licença médica para não ter que trabalhar, vivendo à custa das mulheres, furtando aqui e ali. Ela se mantem com o emprego no correio e tenta se livrar do marido parasita e infiel. O casal possui dois filhos. O filho mais velho ingressa para a SS e a mãe se recusa a acreditar nos boatos tenebrosos sobre a SS que pairam na vizinhança. Que o filho, tanto amado por ela, estupra as meninas judias antes de matá-las ou pega bebês judeus pelos pés lançando-os contra a carroceria de um carro. Trata-se do dilema da mãe ao saber que o filho, uma criança de cachos loiros que ela levava ao circo quando pequeno, torna-se um nazista fanático e iníquo. Para Eva Kluge foi pior perder o filho desta forma do que se tivesse morrido na guerra. Também ela perde o seu filho para o líder.

 

O personagem Emil Barkhausen é um tipo ocioso, pernicioso, mau caráter, que possui vários filhos com mulheres diferentes e sua mulher recebe visitas de homens diferentes. A jovem Trudel, ex-noiva do filho falecido dos Quangels, que a princípio se simpatiza com o comunismo e tenta levar uma vida tranquila e isolada, e é presa pela Gestapo devido aos cartões postais, dos quais ela nada sabia. A senhora Rosenthal, judia, cujo marido é deportado, e ela sozinha vive aterrorizada pela solidão, o medo e alimentando a vã esperança de rever o amado marido. A Sra. Rosenthal é submetida às mesquinharias dos Persickes e sofre as consequências. O comissário Escherich é deposto do cargo, humilhado e brutalmente agredido por não ter descoberto os autores dos cartões.

 

Característica que diferencia Cada um morre por si de outros romances que abordam a ditadura de Hitler é, em uma primeira leitura, o caráter diversificado e conflitual, subjetivo e inconstante das personagens que de bonzinhos passam a ser iníquos ou oportunistas ou de maldosos a bonzinhos. A ambiguidade revela o quão vulnerável é o homem, assim como as antagônicas facetas do ser humano. O que justifica, dessa forma, o mérito de Hans Fallada é a capacidade de relatar os acontecimentos atrozes, durante o regime nacional-socialista, com inusitada perspicácia e sensibilidade. 

 

A seguir, a nota introdutória do romance escrita pelo autor:

 

"Os acontecimentos deste livro seguem, em primeira linha, os processos da Gestapo sobre as atividades ilegais de um casal de operário berlinense durante os anos de 1940 a 1942. Somente em primeira linha — um romance possui as suas próprias regras e não pode ser em tudo fiel à realidade. Por esta razão, o autor evitou aprofundar-se mais na autenticidade sobre a vida particular das duas pessoas: ele precisou descrevê-las assim como surgiram diante de seus olhos. Elas são duas figuras fictícias, assim como foram inventadas todas as outras personagens deste romance. Mesmo assim o autor acredita na "verdade interior" do enredo, mesmo quando algumas particularidades não correspondam às verdadeiras circunstâncias. Alguns leitores serão da opinião de que há demasiadamente muita tortura e morte neste livro. O autor se permite chamar atenção para o seguinte, o livro  trata quase exclusivamente de pessoas que lutaram contra o regime de Hitler, e foram perseguidas por ele. Neste meio, nos anos 1940 até 1942, e anterior e posteriormente, muito se morreu. Quase um terço deste livro se passa nas prisões e hospícios, também aqui a morte estava muito em voga. O autor também não gostou de traçar um quadro tão sombrio, porém mais complacência teria significado mentira.

 

H. F.

Berlim, em 26 de outubro de 1946".

 

 

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[Artigo publicado originalmente em 2014, na Agulha Revista de Cultura]

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dezembro, 2016

 

 

 

 

Viviane de Santana Paulo (São Paulo/SP). Poeta, tradutora e ensaísta, é autora dos livros Depois do Canto do Gurinhatã (poesia, Multifoco, 2011), Estrangeiro de Mim (contos, Gardez! Verlag, 2005) e Passeio ao Longo do Reno (poesia, Gardez! Verlag, 2002). Em parceria com Floriano Martins, publicou Em silêncio (ARC Edições, 2014) e Abismanto (poemas, Sol Negro Edições, 2012). Participa das coletâneas Roteiro de Poesia Brasileira — Poetas da década de 2000 (Global, 2009) e Antología de Poesía Brasileña (Huerga Y Fierro, 2007). Vive em Berlim.