O vazio, a escuridão, a dispersão dos elementos e a potência de luz, que precedem a concepção do mundo, são o caos que receberá de Cícero Leilton Leite, o poeta Tito Leite, pela imposição de suas digitais e pelo vigor de sua poesia, corpo e representação neste seu singular livro de estreia. Não por outra razão, já em uma de suas epígrafes, transcreve Heidegger, indagando "por que simplesmente o ente e não antes o nada?", e, mais adiante, chora "os livros / não nascidos".

Tito Leite é mestre em Filosofia. Jovem embora, acresce à sua biografia a regra da Ordem de São Bento, monge que é no Mosteiro Beneditino de Olinda. Produzindo já há algum tempo, com publicações em blogues e revistas eletrônicas especializadas, sua poesia tem alicerces sólidos. Não hesita em justapor paradoxos e levar a palavra a extremos inusitados (sim, o dizer poético deve lançar a linguagem a alturas sem limites). Aqui, a poética exila-se no deserto, onde habitam a solidão e o mais profundo mergulho no ser ("Longe do cálculo e do engenho atômico / o deserto me madura"), ou alça voo na companhia de mortais e de seres etéreos, quando o lírico e o mito então fazem coro ("um leão alado / na proa de um barco / em chagas").

O poeta convoca as moiras ("Em tempos / de demência / a moira nem sempre / é fortuna"), sugerindo o final desvelar de algum destino para o abstrato inaugural de sua viagem poética. Mas não nos enganemos: não virão portos seguros ou respostas. O eu-lírico tem em sua cabeça "espanto / de dúvidas", que "parecem um cavalo-marinho". Não há conformismo. Nenhuma resignação. Há provocação.

Por escolha do autor, a filosofia, o sagrado e o profano estão presentes nos cinquenta e três poemas, divididos entre as cinco partes do livro. Em "Eterno retorno", Tito escreve que "Santo Agostinho não atirou pedras / nem desmantelou a ampulheta / do que Deus amara antes do nada", para, depois, em "Fado além-mundo", acrescer que "Épico / eu gozo no perigo / igual aos heróis de antigamente". No andamento da obra, as três vertentes se entrelaçam sem medo ou pudor.

T. S. Eliot, em seus escritos, preferia a estética fragmentada, as quebras e reviravoltas, antecipando a mirada sobre a forma que, hoje, autoriza o poeta a utilizar a linguagem como meio de estimular o estranhamento e a captura das múltiplas faces de um presente conflituoso. Assim é que Tito constrói seu universo, renunciando ao coloquial e ao doméstico. Recusa o fácil, não aceita a dormência das cenas corriqueiras. Atribui ao leitor a coautoria da organização desse caos que dá título ao livro. Sua poética espera olhar atento e detido.

Atualmente, a poesia assume liberdade plena, transitando quer pelo espaço da pessoa e suas circunstâncias individuais, quer por temas de extensão social. Não há fórmulas, receitas ou movimentos que acorrentem o poeta. Digitais do caos é um livro contemporâneo, no qual são manejadas a intertextualidade, múltiplas visões, metáforas incomuns, a perplexidade diante de enigmas do cotidiano, que sequer a Esfinge poderia conceber ("o humano / ainda / espanta").

Por um lado, o livro se engaja contra as injustiças que a sociedade nunca supera. O poeta lembra que "A cidade sangra rosas de lata. / Menores dormem em hemorragia / — jejum forçado — colheita maldita" e que "Os leprosos das metrópoles têm / feridas disformes para o mundo". Por outra face, volta-se para o humano com delicadeza ("Despindo / a amada de sol / aceito o caos / e suas ilhas".)

Quando nos oferece metapoemas, Tito Leite entoa "hinos à possibilidade", na expressão de John Ashbery. Pretende uma nova experiência poética e, inegavelmente, esmera-se em sua arquitetura. Sob esse ângulo, encontram-se bons exemplos na quarta parte de Digitais do caos. O poeta diz que o "poema solta / um pássaro sem plumas / para despovoar probabilidades", quer em sua "boca / o óleo árido das palavras / que não sangraram".

Dono de evidentes vastidão vocabular e cultura, Tito Leite alinhava inquietudes, assombros e inconformismo, deixando-nos um olhar de esperança como margem de segurança. São perceptíveis o ímpeto e a energia que servem de argamassa e eletrizam os poemas, continentes de imagens fortes e desafiadoras. Acautele-se, portanto, o leitor, antes de iniciar essa travessia. As balas foram disparadas e estão perdidas. O poeta adverte: "O caos do / desconhecido / é um balaço / às escuras".

 

Brasília, janeiro de 2016.

 

 

 

 

LÍRIO E FOGO

 

 

Cigarra

desengasga fogos

da garganta.

 

Ventos avessos

compõem mistérios

parindo ondas.

 

No intervalo do primeiro

haicai para o segundo

minha cabeça

é um espanto

de dúvidas.

 

 

 

 

 

JARDIM DA EXISTÊNCIA

 

 

A existência tem decotes de Eva.

 

Uma obra original

precede o veneno.

 

Amo todos os sentimentos

que burlam a minha fé.

 

Sou um mistério desnaturado

a esmo no silêncio

dos minérios.

 

 

 

 

 

NOITES ENSOLARADAS

 

 

Do poema, romperam-se as romãs.

No coro dos granizos,

fugiram as sibilas.

 

Íamos habitar a abóbada celeste,

mas a nave não atravessou

a noite do Hades.

 

Nossa odisseia era para ser maior

que o mar de Homero.

 

 

 

 

 

A ARTE DE MUDAR

 

 

A cidade deságua solidão.

 

Felicidade transgênica

em utilidades de hipermercado

[magnólias são plastificadas].

 

Uma pílula vermelha

tem forma de catarse — reinvenção

do labirinto e do espaço.

 

Em asas de anjos — um passante

cola com sangue e mimese

uma tarde no inacabável.

 

A alma de um artista

tem partituras de lâmpadas.

 

 

 

 

 

ARDUMES

 

 

                   Para Silvana Guimarães

 

 

Amamos o oceano, o perigo, o desconhecido.

Amamos o corpo, a ascese, as mulheres.

Amamos o vinho, o piano, o frescor

do sagrado.

 

Porque o amor não tem critério

de bem e mal.

 

 

 

 

 

AB INITIO

 

 

Nau da

existência,

a substância

salina.

 

Como sagrado é

o teu sexo,

salgada,

a tua língua.

 

Segredos de dunas,

os seus olhos

sob a lua: lumes.

 

Que se pólen

em acácia

lembram

um livro fecundo.

 

 

 

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O livro: Tito Leite. Digitais do Caos.

São Paulo: Edith, 2016, 110 págs., RS$ 40,00

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dezembro, 2016

 

 

Alberto Bresciani (Rio de Janeiro/RJ). Poeta e magistrado, publicou Incompleto Movimento (José Olympio, 2011) e Sem Passagem para Barcelona (José Olympio, 2015). Vive em Brasília/DF.

 

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