As delirantes mitologias indígenas, potencializadas pelos rituais xamânicos realizados no centro sagrado da floresta-cosmo, abrem passagens quentes na muralha gelada da cultura racionalista. Passado, presente e futuro se misturam. Verdade e ilusão se confundem. O reino dos espíritos indígenas é o reino da fantasia, do êxtase, do pânico, da poesia. Exceto quando observado apenas por olhos aristotélico-cartesianos, materialistas. Nesse caso, se parece mais com o reino da esquizofrenia. Da perdição mental.

O primeiro romance de Antonio Cestaro trata exatamente desse tema: a perdição mental. Que em certas circunstâncias — na vivência indígena e na transcendência xamânica, por exemplo — pode ser um tipo de libertação existencial.

Arco de virar réu insere-se na tradição batizada de neurolit, "a tendência a explorar doenças neurológicas na construção de personagens, apontada pela crítica turco-americana Elif Batuman como substituição do romance psicológico do século 19 na obra de autores como Ian McEwan ou Jonatham Lethem" (Paulo Werneck, na Folha de S.Paulo). Um dos pioneiros dessa tradição foi certamente Edgar Allan Poe, com seus contos protagonizados por pessoas à beira da neurose e da psicopatia.

A história é narrada por um protagonista com um bom nível cultural, que constrói parágrafos sofisticados, por meio de um rico vocabulário e uma sintaxe refinada. A narrativa labiríntica é dividida em quatro partes, que vão da relativa clareza à ambiguidade máxima, acompanhando a crescente desorganização mental do protagonista-narrador.

J. Bristol é um homem de meia-idade e o primogênito de pais separados. Profissão: historiador social, com forte inclinação para o estudo antropológico. É apaixonado pelas sociedades indígenas, especialmente pelos costumes e rituais dos tupinambás.

O protagonista-narrador inicia seu relato dissertando sobre a natureza física e psicológica do tempo. Fragmentos de memória surgem e começam a se reunir de início caoticamente. Sua família vai se delineando: o pai ausente (o nome não é citado), a mãe fragilizada (Tereza), a irmã mais nova (Clara) e o irmão esquizofrênico (Pedro). Juntam-se a esse grupo o primo Juca e a tia Rosana (uma das irmãs do pai).

No verão de 1973, durante as férias na praia, Pedro ganhou da tia um "jogo de estratégias bélicas" que passou a desempenhar um papel importante na trama. A partir desse momento, digressões delirantes, surrealistas, pontuam a narrativa. São as "falas desordenadas" de Pedro, agora internado num hospital psiquiátrico. Para o narrador, acostumado ao reconhecimento de padrões típico da antropologia, a verborragia sem sentido do irmão parece "ordenar ideias aleatórias numa sequência lógica dentro da realidade comum do homem normal".

Seu primo Juca Bala, jovem cineasta tatuado (uma cobra totêmica) ligado à contracultura tropical e tropicalista, parece manter uma conexão especial com o esquizofrênico Pedro. Outro dado importante: num show de Raul Seixas, é Juca quem apresenta Carolina ao narrador. A garota é sua futura esposa. Tempos depois, já casados, começam os misteriosos pesadelos noturnos do narrador, sobre os quais Carolina evita falar abertamente.

Depois do protagonista-narrador, os dois personagens mais interessantes são o irmão esquizofrênico (Pedro) e o filósofo diletante (Juca). As falas surrealistas de Pedro compõem um discurso à parte, muito provocador e intrigante, de natureza poética, ambígua, mágica. O enredo também é riquíssimo em digressões e reflexões sobre o sentido da existência humana e a noção tradicional de realidade. O plano subjetivo-onírico é muito mais forte que o objetivo-concreto.

A partir daqui os mundos opostos — sanidade e loucura — começam a se confundir. Pesadelos, viagens oníricas, esoterismo indiano, rituais canibais, os maus espíritos da mitologia indígena assombram o narrador e o leitor. O mundo avança para o caos sensorial. Tudo em que o narrador acredita, incluindo sua própria existência, começa a se desmanchar no ar. A veracidade de fatos e pessoas é posta em xeque.

A consistência maleável do universo e da realidade é invencível, viciante. Em certo momento de lucidez o protagonista conclui: "Parte daquilo que considero fatos, que ficaram registrados com a bandeira da verossimilhança na minha mente, acham-se agora submetidos a vozes que dizem e garantem, apoiadas pelos diplomas que exibem em suas paredes, que eram realidades paralelas, criadas como subterfúgios ou caminhos de fuga do factual, ou ainda, na interpretação do Juca Bala, os caminhos que percorri quando decidi viver dentro da minha cabeça."

Arco de virar réu não é um romance fácil. Mais do que uma doença, a esquizofrenia é um recurso poético que dissolve a causalidade, solapando nossa frágil noção de realidade. Duas epígrafes apontam nessa direção: "A busca da sanidade pode ser uma forma de loucura" (Saul Bellow) e "Às vezes a resposta apropriada para a realidade é se tornar insano" (Philip K. Dick).

A trama é densa. Terminada a leitura, o leitor precisará voltar e reler várias passagens, pra ter certeza de que suas supostas certezas sobre o material narrado estão realmente certas. A substância e até mesmo a existência de pessoas e ações terão de ser reavaliadas, como acontece no sonho-delírio dos pajés, porque fomos maliciosamente conduzidos pelo romancista a um território análogo ao da experiência xamânica. Experiência de cura pela loucura.

Um dos recursos estilísticos mais usados por Antonio Cestaro em seu primeiro romance é a elipse, o não dito. Uma névoa de signos sensoriais turva os cinco sentidos. O que significam exatamente o sumiço de Carolina, o curta-metragem de Juca, os sonhos aborígenes, o arco de virar réu, os diários encontrados no sítio e a carta misteriosa?

De qualquer modo, esses mistérios reforçam a ideia central do romance: a vida é um sonho essencial, talvez insano, ora vicioso ora virtuoso. Ideia presente nesse comentário do narrador: "Contudo, extraí da viagem experiências únicas e a confirmação da ideia de que o conceito de realidade é mesmo abstrato e particular. Foi nesse ponto que vi o meu caminho abrir para mais sete dúzias de saídas, e o peso do possível, do impossível, do certo, do errado, do absurdo e do normal começaram a se movimentar, a se insinuar para a equalização".

 

 

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O livro: Antonio Cestaro. Arco de virar réu.

São Paulo: Tordesilhas, 2016, 152 págs., R$ 32,00

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setembro, 2016

 

 

Nelson de Oliveira ainda não nasceu. Para não assustar os amigos, prefere mentir que nasceu no dia 16 de agosto de 1966, em Mahagonny, maior cidade da Ilha do Dia Anterior. É ensaísta e professor livre-docente de literatura xamânica na Universidade de Macondo (Unimac). Leu e releu todos os livros, assistiu mais de uma vez a todos os filmes. É de leão e, no horóscopo chinês, cavalo. Prefere os destilados aos fermentados. Fala fluentemente doze idiomas secretos, incluindo o das abelhas: a ironia. Anos atrás buscou asilo político no paraíso, mas cansado de tanto silêncio decidiu voltar ao inferno. Pesquisa a imortalidade por meio do upload da consciência. Só acredita em biografias imaginárias. E na beleza moral do céu estrelado dentro de nós. Venceu duas vezes o importante Prêmio Príncipe de Cstwertskst, na categoria conto (1996) e na categoria romance (2006). Principais livros: Poeira: demônios e maldições (romance, 2010), Ódio sustenido (contos, 2007) e Subsolo infinito (romance, 2000).

 

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