A pluralidade de vozes parece uma espécie de móvel sustentáculo linguístico da poesia de Ricardo Primo Portugal, em seu A face de muitos rostos (Patuá, 2015). Calca-se — da mesma maneira fluida — o conteúdo de seu trabalho, contudo, em outra nuance ou tema — o sentimento de exílio, de fluxo permanecente da ave humana migratória que não encontra assento pelo mundo. Sempre indo, nunca chegando senão em partes — rostos talhados segundo a estadia pelas mais diversas referências espaçotemporais de que um sujeito, sobretudo os mais viajados, pode usufruir em seu estar provisório, contingente.


Escritor e diplomata, com passagens por China, Coreia do Norte e Equador, natural de Porto Alegre, Ricardo Primo Portugal aproveita o experimento chamado vida para recolher poemas — seus e não seus. Traduziu poetas chineses para o português, e vice-versa. Seu repertório tece-se de trocas. E impermanência.


O livro em questão, em si, já se (des)organiza segundo uma sanha de não estabelecimento, de infixidez. A própria concepção de capa já se oferece como um argumento a respeito, em mais uma bela obra publicada pela heroica Patuá, um dos principais meios responsáveis pela difusão da renegada poesia brasileira contemporânea, nos últimos anos. Arte em estilo oriental, com palavras em mandarim (será o título, traduzido?). Na orelha, uma curta passagem do posfácio de Ronald Augusto, em que este destaca o tenaz exercício efetuado por Ricardo Primo Portugal "sobre a sua matéria prima, a saber, a palavra e o silêncio". Está dado o território de tensão alçado pelo eu lírico a mote: dizer o não dito, desdizer o dito, propor fala e contrafala, frases e intervalos.


O tempo, tratado como água, faz-se personagem de um "Anteprojeto para um antiprefácio", inaugurando um dos persistentes movimentos rítmicos que o autor virá a perfazer em seu texto-livro: "o signo fica sempre nisto que imita o líquido insípido, e assim persegue a si mesmo por ciclos que se sucedem" (p. 9). Outro poeta, Chico Alvim, lhe dá então as boas-vindas poéticas e o livro começa, afinal, com um poema que pode ser traduzido por um seu temente verso-aviso: "Eu nada sei das coisas deste mundo. (p. 18)".


Não à toa, a seção que se segue, "Canções do exílio", rouba a cena como o mais forte conjunto poético do livro, junto com "Saudades do Braszil" (sic). A relação poema e exílio se demarca com agonia: "Poeta é o intruso / que se imiscui / na fala do mundo" (p. 28). O sentido – ou a falta de sentido – do exílio alia-se a um manifesto desconforto ante a desigualdade com que se avista a economia social mundana, num constructo tal qual uma "linguiça de significantes", "afinal a poesia / não se porfia / nas rodas avaras / dos fariseus / e nem às falas / sobejamente embasadas / bocejadamente em nadas / (...) / não, ela brota ferina / ri-se zomba e dissente" (p. 30). O poeta quer sua poesia em contraponto: "a fala moderada mordiscante reverenda / a fala oficial referendada entre velhacos / a moderna mentirinha a módicos preços / Um pesadelo do qual quero acordar" (p. 35).


Ricardo Primo Portugal cita suas afluências para aportar momentaneamente com Heidegger e inscrever um signo caro à sua literatura, o do "Eclipse", título de um de seus poemas: "a luz do público é a sombra do mundo / a luz do mundo toda ela sombra" (p. 37). Seu céu, numa paráfrase de Sartre, é o outro: "e tudo o que queria era ser um outro" (p. 38). Outrar-se em tantos rostos frutifica liricamente, alimenta-se com o desejo anteriormente requerido de despertar.


A saudade também se presentifica, mormente em forma de canção. Som e luz a peregrinar: "a noite leva minha mala / a mais um quarto de hotel / cada cidade ao caminho / é uma luz ou cem / ou dez milhões de almas / é uma cidade que passa / e fico aqui sozinho / a cada nova partida / comigo recomeço / um mesmo a cada chegada" (p. 42). Os sítios se repetem: é "a urbe que nos assedia" (p. 46), por todo lado. Num longo canto, reflete: "Somos a nós mesmos este incerto pouso / escolhos de naufrágios, ondas que recolhem / somos estas formas que se apressam / movem-se entre sonhos e silêncios" (p. 58) "(...) e depois nos vamos pelas esquinas" (p. 64), "(...) Vozes por dentro do vento" (p. 66).


O amor assume um deslocado, errático protagonismo nas seções que se sucedem, intituladas "Uma, duas... Zero argolinhas" e "Sol, sal, sul". Mantém-se no entanto a prosear "O menino do Bom Fim", em sua cruzada: "Não ultrapasso em muito os confins / do umbigo ao infindo bairro, / por mais terras que eu percorra, / suas fronteiras claras, ainda / precárias, carrego comigo, (...)" (p. 82). A cidade não o distrai: "é porto que se perde / um ponto no caminho" (p. 87).


O recurso ao gaúcho Lupicínio antecipa o terreno de sua "Quase saída": "Um frio dos sentidos", às portas do fim, o fim enquanto apagamento de tudo? Como mais se delinearia o eclipse que chamamos poesia, senão como apoio-impulso face às ameaças recorrentes da finitude e todas as suas amarras? Antes de fazer o seu "Download de sonho" (p. 100), o poeta já se despediu, inclinado, "a rolar pela estrada / sem ter nunca um cantinho de seu / para poder descansar" (p. 97).

 

 

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O livro: Ricardo Primo Portugal. A face de muitos rostos.

São Paulo: Patuá, 2015, 150 págs.

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setembro, 2016

 

 

Zeh Gustavo é músico, escritor e revisor de textos. Canta nos grupos de samba Terreiro de Breque e Samba da Saúde e nos blocos de carnaval Cordão do Prata Preta e Banda da Conceição. Em 2016, participou da banda musical da peça As festas da Tia Ciata, com a companhia Fanfarra Carioca. Na literatura, publicou, entre outros, os livros de poesia Pedagogia do suprimido (Verve, 2013; Autografia, 2015), A perspectiva do quase (Arte Paubrasil, 2008) e Idade do zero (Escrituras, 2005). Em 2016, seu texto "Ninguém pode explicar nem a Lapa nem a lida, num conto curto" venceu o Concurso Lefê Almeida e foi selecionado para a coletânea Para ler o samba (Ímã, 2016), do Festival Lapalê. Em 2015, integrou o livro Rio de Janeiro: alguns de seus gênios e muitos delírios (Autografia), com o perfil "Sérgio Ricardo: a toada firme de quem sabe o mar"; a coletânea de crônicas O meu lugar (Mórula), com "Serpentina avoa, que hoje tem barricada!"; a antologia Pele de todos os sangues, do coletivo Sarau dos Sambistas, com uma série de poemas; e a Revista da Academia Carioca de Letras (Batel), com o conto "Por sobre o ruído rude da rotina besta". Em 2014, seu livro de contos Eu algum na multidão de motocicletas verdes agonizantes (inédito) venceu o Prêmio Lima Barreto da Academia Carioca de Letras. Em 2012, participou da coletânea Porto do Rio do início ao fim (Rovelle, 2012), com o conto "Comuna da Harmonia". É um dos organizadores do FIM (Fim de Semana do Livro no Porto), em suas edições de 2012, 2014 e 2015.

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