©marc millman
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Friedrich Nietzche, em sua célebre obra Assim Falou Zaratustra, afirma que para uma árvore tocar o céu, as suas raízes devem ser tão profundas, a ponto de tocar o inferno. Com essa mesma profundidade, Allen Ginsberg (1926–1997), construiu uma poesia forte e afiada, a tal ponto, que seus versos parecem rasgar o chão e criar um oceano no céu. Não é à toa que William Carlos William alerta no prefácio de Uivo e outros poemas: "Senhoras, levantem as barras das suas saias, vamos atravessar o inferno".

Com Ginsberg, temos um poeta completo, mais denso do que se pensa. O seu novum organum poético era formado por uma acentuada influência de William Blake, Walt Whitman, Ezra Pound e William Carlos Williams, assim como os versos embalados por jazz ("prosódia bop" de Kerouac), ritmo que contradizia toda a superficialidade americana. Era intensamente entusiasmado pelo surrealismo, movimento que possuía a sua autenticidade a partir de um distanciamento da realidade estabelecida. Percebe-se em sua poesia uma série de versos curtos tais quais haicais, juntamente com a introdução da meditação na poesia ocidental.

Ao lado dos seus amigos beats, Jack Kerouac (1922-1969), William Burroughs (1914-1997) e outros — fez nascer nos anos 50 a geração beat. Tal movimento vanguardista aspirava a uma nova experiência com a linguagem. As obras desses escritores eram um tiro seco na vidraça do beletrismo da época.

Em 7 de outubro de 1955, na presença de uma plateia de poetas, na cidade de São Francisco, precisamente, na Six Gallery, Ginsberg lê o seu poema "Uivo", mais tarde, considerado um dos maiores da poesia contemporânea. Segundo Claudio Willer, "a importância desse poema é enorme, como depoimento e manifesto de uma geração, por suas inovações literárias".

 

Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura,

morrendo de fome, histéricos, nus,

arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca

de uma dose violenta de qualquer coisa (...).

 

Numa entrevista, o poeta explica que o primeiro verso se refere às "pessoas que sobreviveram e se tornaram prósperas numa sociedade basicamente agressiva, bélica, são, num sentido, destruídas pela loucura". E, por outro lado, "aquelas que piraram e não puderam fazer isso, ou ficaram traumatizadas, ou artistas que morreram de fome, ou não sei o que mais, não puderam fazer isso, também".  

Na poesia beat, há uma opção preferencial pelos vagabundos (iluminados), drogados, andarilhos e místicos, pelo fato de apresentar um estilo de vida que fugia à lógica consumista que caracterizava o pós-guerra nos Estados Unidos, o american way of life.

 

que pobres, esfarrapados e olheiras fundas, viajaram fumando 

sentados na sobrenatural escuridão dos miseráveis aparta-  

mentos sem água quente, flutuando sobre os tetos das  

cidades contemplando jazz (...).

 

Colocar o mundo em questão é sempre perigoso, por isso, não tardou muito para o poeta sofrer retaliações. Em 1956, o livro Uivo e outros poemas foi "laureado" com um processo por pornografia, enfrentando censuras e críticas, tanto do establishment quanto da esquerda ortodoxa. Mas o fato é que, em beleza e execração, a irracionalidade normativa da cultura americana era desvelada a partir de um dizer poético que dava forma à miséria e à loucura.

É digno de nota mencionar Herbert Marcuse. Em seu livro O Homem Unidimensional, a civilização capitalista e tecnológica (que é regida pelo princípio de desempenho) é identificada como sociedade unidimensional. No seu funcionamento, toda forma de pensamento é administrada, o mundo é orwelliano. Nessa camisa de força, as expressões que não estão validadas pela lógica de controle são vistas como algo estranho e absurdo, sociedade do pensamento único: totalitário.

Vale lembrar que, para Sigmund Freud, toda a história da civilização é a história da repressão humana, uma eterna renúncia dos impulsos. Entretanto, Marcuse observa que por mais repressiva que possa ser compreendida a história da civilização, sempre encontrar-se-ão novas veredas de recusa. Por mais opaco e árido que possa ser uma sociedade da não crítica, sempre teremos a imagem do rebelde.

No "Uivo", toda a simbologia e beleza do rebelde emerge em uma poética sonora de contrastes rítmicos. Tem-se uma nova caligrafia, que trata abertamente da sexualidade e do uso das drogas, golpeando o status quo dominante. Em musas e plumas, a rebeldia fertiliza a mucosa da primavera. O lume da recusa em banquete de liberdade.

Para muitos estudiosos, a sua civilidade era explicada por suas crenças religiosas, de modo peculiar, os ensinamentos budistas. Ao mesmo tempo, apresenta-se como um anarquista místico, buscando uma nova expansão da mente na sua relação com Deus. Deixando o poeta falar:

        

Deuses dançam em seus próprios corpos

Novas flores se abrem esquecendo a morte

Olhos celestiais acima do desconsolo da ilusão

Eu vejo o alegre criador.

        

Contudo, no seu engajamento místico, a poesia respira vida e, ao mesmo tempo, surge uma forte relação com a morte. Sabe-se, no entanto, que a maior maquinaria da morte era o próprio status quo vigente, que patrocinava a guerra do Vietnã. Levando isso em consideração, David Carter comenta:

 

Em 1966, Ginsberg fundou um comitê para poesia, sem fins lucrativos, para assistir editoras pequenas e alternativas, poetas em dificuldade financeira e projetos; acima de tudo Allen, queria impedir que o dinheiro que ele ganhava fosse taxado e assim ajudasse a financiar a Guerra no Vietnã.

        

No seu mal-estar com tudo o que estava acontecendo, Ginsberg assume o seu papel de intelectual público. Reflete sobre mecanismos de transformações sociais e da urgência de uma nova consciência para o mundo despertar da alucinação das massas e, então, semear um universo de candura. Assim ele instigava os seus leitores: "cante santamente o pathos natural da alma humana".

Segundo Rodrigo Garcia Lopes, no "Uivo" Ginsberg atualiza e radicaliza a mensagem básica de Whitman, a "de que liberdade individual, liberdade sexual e de linguagem, liberdade política e poética tinham de andar lado a lado. A poesia não como algo restrito a poucos iniciados e sim aberta e democrática (...)".

Nesse momento, a poesia desce da torre de marfim e perambula pelas ruas e espaços abertos, em seu novo desregramento dos sentidos. Há poesia em tudo que respira e em tudo que é pó. Vicente Huidobro concebia a poesia como um atentado celeste; com Ginsberg, a pele da arte explode em alucinógenos e serafins.

São as novas mudanças de valores que estão em jogo, uma nova sensibilidade frente à agressividade do opressor. Em recusa ao sistema estabelecido, Ginsberg foi uma das principais fontes de energia para a contracultura e todas as mentes que desejavam mudar as regras, exercendo ainda influência na música em Jim Morrison, Bob Dylan e nos Beatles.

Apesar de todos os ventos contrários e por mais espinhosa e florida de grilhões que seja a vida, assim como o mundo está em desencantamento, o poeta, por sua vez, ainda fala da rosa e acredita na vida com todo o seu encantamento. Com entusiasmo e delicadeza, ele diz:

 

— Nós não somos nossa pele de sujeira, nós não somos nossa horrorosa locomotiva sem imagem empoeirada e arrebentada, por dentro somos todos girassóis maravilhosos, nós somos abençoados por nosso próprio sêmen & dourados corpos peludos e nus da realização crescendo dentro dos loucos girassóis negros e formais ao pôr do sol, espreitados por nossos olhos à sombra da louca locomotiva do cais na visão do poente de latadas e colinas de Frisco sentados ao anoitecer.    

 

Ressalta-se, no poema "Sutra do girassol", que por mais dilacerante que se encontre a existência, o amor sempre pulsa. E no poema "Canção", "o peso do mundo / é o amor / sob o fardo / da solidão, sob o fardo / da insatisfação". William Carlos Williams afirma:

 

Digam o que quiserem, ele nos prova que, apesar das mais degradantes experiências que a vida possa oferecer a um homem, o espírito do amor sobrevive para enobrecer nossas vidas se tivermos o espírito e a coragem e a fé — e a arte!   

 

Nesse sentido, quanto maior for a repressão e a padronização do pensamento, maior serão a recusa e a sua dialética. Enfim, a poesia sempre estará relacionada com os problemas da sua época, pois, em meio a tanta obscuridade, apresenta-se como um horizonte: "mas eu só morrerei pela poesia que salvará o mundo".

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

GINSBERG, Allen. Uivo e outros poemas. Tradução, seleção e notas de Claudio Willer. Porto Alegre: L&PM Editores, 2005.

_____________. Mente espontânea: entrevistas selecionadas. Tradução de Eclair Antonio Almeida Filho (coord. tradução), Ana Vázques, Sirlene Loyola. Revisão técnica de Claudio Willer. São Paulo: Novo Século, 2013.

LOPES, Rodrigo Garcia. O uivo vivo de Allen Ginsberg. Disponível em <http://revistacult.uol.com.br/home/2010/11/o-uivo-vivo-de-allen-ginsberg> Acesso em 08 set. 2016.

MARCUSE, Herbert. A Ideologia da Sociedade Industrial: O Homem Unidimensional. Tradução de Giasone Rebuá, 6. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982.

WILLER, Claudio. Os rebeldes: geração beat e anarquismo místico. Porto Alegre: L&PM Editores, 2014.

WILLIAM, Carlos Willian. Uivo para Carl Solomon. In: GINSBERG, Allen. Uivo e outros poemas. Tradução, seleção e notas de Claudio Willer. Porto Alegre: L&PM Editores, 2005.

 

 

setembro, 2016

 

 

 

 

Tito Leite [Cícero Leilton Leite], Aurora/CE (1980). Poeta, possui graduação em Filosofia - Licenciatura Plena pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo (2005) e especialização em Filosofia da Educação pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Cajazeiras - FAFIC (2007). É mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Tem experiência na área de ensino de Filosofia, com ênfase em Filosofia, Filosofia Política, Ética, Filosofia da Ciência e da Tecnologia. Vive em Olinda, onde é monge no Mosteiro de São Bento.

 

Mais Tito Leite na Germina

> Poemas