Duas coisas são imprescindíveis para que a literatura goiana consiga alcançar essa tal relevância com que tanto sonha. São elas: 1) uma dose cavalar de empreendedorismo em nosso meio editorial; e 2) um circuito crítico que se demonstre rigoroso e eficiente. Enquanto não tivermos nem um nem outro, nós continuaremos padecendo da síndrome do estrangeiro esclarecido. Ou seja: continuaremos esperando que algum dia um estrangeiro pise em nosso solo (tipo um novo Saint-Hillarie) e, entre uma dose de pinga e outra, resolva ler alguns de nossos livrinhos e pimba: esse mesmo estrangeiro vai voltar doido, doido das ideias pra civilização e, lá, vai contar que entre os silvícolas roedores-de-pequi existe também literatura de qualidade (o restante do sonho envolve uma noite de núpcias com grandes editoras e um baile de debutantes na ABL).

Isso é bobagem, e não digo que o seja apenas porque estou ridicularizando a situação. Mesmo que algo do gênero aconteça, ainda assim não é garantia que alguém, em algum lugar do país, vai realmente se interessar pela poesia que nós daqui do Goiás compomos. Não bastou, afinal de contas, que um crítico do calibre de Luiz Costa Lima escrevesse uma excelente resenha sobre Heleno Godoy para um jornal de grande circulação (Folha de São Paulo, data estelar: 23 de abril de 2006) para que sequer o nome de Heleno Godoy passasse a ser mais lido em qualquer biboca do país. Se nós não tivermos um mercado editorial que, como dito, possua uma dose cavalar de empreendedorismo, o bom e velho sangue-nos-olhos capaz de fazer com que nossos livros circulem (nem que seja circular nas próprias livrarias da capital, onde, paradoxo dos paradoxos, é mais fácil você achar literatura de fora do que literatura daqui), e uma atividade crítica que consiga manter vivo o debate, então não adianta a gente ficar esperando que um estrangeiro, que em algum momento do passado se preocupou com essas duas coisas, venha cá e faça por nós o que não fazemos.

Esse texto pretende ser uma espécie de contribuição. Seu objetivo principal é o de oferecer um recorte sincrônico da poesia goiana. O que isso quer dizer? É até simples.

Um recorte sincrônico de uma literatura é um conceito saído, um tanto quanto livremente, do arcabouço de ideias do linguista-inaugural Ferdinand de Saussure. Em específico, aquele ali do capítulo III de seu Curso. Lá ele diz (Curso de linguística geral, trad. Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein, Cultrix, 5ª ed., 1973, p. 96): "É sincrônico tudo quanto se relacione com o aspecto estático de nossa ciência [de estudo da Língua], diacrônico tudo que diz respeito às evoluções." Sincrônico seria você como que parar o tempo e estudar a Língua de um determinado instante, ao passo que diacrônico é você considerar as camadas evolutivas desse mesmo processo. Ambos se complementam, naturalmente, conforme a comparação que o próprio Saussure desenvolverá algumas páginas depois: imagine que você pegue um pedaço de pele e, a nível celular, faça um corte transversal. Qualquer camada de pele que você decida estudar, como por exemplo a epiderme, pressuporia um estudo sincrônico, mas, se você for estudar a totalidade das camadas, as transições e tal e coisa e coisa e tal, então você pressuporia um estudo diacrônico. Um e outro, pelo simples fato de que estamos falando da pele, se complementam.

Pois bem. Essa ideia saussuriana seria trazida ao campo literário nacional por Haroldo de Campos num texto de 1967 no Correio da Manhã: "Poética sincrônica" (cujas ideias seriam complementadas por "O samurai e o kakemono", "Apostila: diacronia e sincronia", ambos publicados no livro A arte no horizonte do provável, e, de certo modo, pelas reflexões trazidas em O sequestro do Barroco na literatura brasileira). Aqui Haroldo de Campos aborda a perspectiva de estudo diacrônica como perspectiva histórica: "A poética diacrônica busca reconhecer, ao longo de um dado período cujas características são extraídas da história ― o Classicismo ou o Romantismo, por exemplo ―, as várias manifestações não necessariamente coincidentes do mesmo fenômeno, estabelecendo-lhes as concordâncias e discordâncias, sem a preocupação de hierarquizá-las de um ponto de vista estético atual." (A arte no horizonte do provável, Perspectiva, 4ª ed., 1977, p. 205). A poética sincrônica seria o contrário: sem se ater à sucessão cronológica, de resto tão importante para o estudo diacrônico (o que faz com que, por exemplo, nesse mesmo estudo diacrônico, "um evento sociológico ou de significação meramente documentária" assuma "maior importância que uma ocorrência caracterizadamente estética" ― ibidem, p. 206), à poética sincrônica interessa muito mais o estudo da maneira como uma obra de arte do passado ainda se mantém relevante para o presente.

Em sua entrevista para o Roda Viva, década de 90, aos 31 minutos, Haroldo dirá, citando a quinta tese sobre o conceito de História de Walter Benjamin, que o passado que não responde criativamente a uma pergunta do presente arrisca perder-se. Por isso Haroldo diz que a poética sincrônica possui "um caráter eminentemente crítico e retificador sobre as coisas julgadas da poética histórica" (ibidem, p. 207), uma vez que, como a poética sincrônica meio que abstrai do aspecto cronológico em prol de uma visada propriamente estética, alguns dos julgamentos que são perpetrados pela poética diacrônica são postos em cheque.

Assim sendo, aquele autor que ganhava alguma relevância dentro de um estudo diacrônico pode perdê-la num estudo sincrônico. Como resume muito bem Roman Jakobson, de quem, de resto, Haroldo se valeu para embasar seu recorte (Linguística e comunicação, trad. Isidoro Blikstein e José Paulo Paes, Cultrix, 6ª ed, 1973, p. 121):

 

A descrição sincrônica considera não apenas a produção literária de um período dado, mas também aquela parte da tradição literária que, para o período em questão, permaneceu viva ou foi revivida. Assim, por exemplo, Shakespeare, de um lado, e Donne, Marvel, Keats e Emily Dickinson, de outro, constituem presenças vivas no atual mundo poético da língua inglesa, ao passo que as obras de James Thomson e Longfellow não pertencem, no momento, ao número dos valores artísticos viáveis. (...)

 

Isso é Roman Jakobson em 1960. Em 1928, Ezra Pound em How to read já descobria basicamente a mesma coisa, propugnando um método de estudo da literatura que mais tarde (em obras como Abc of Reading, de 1934) ele chamaria de paideuma (conceito retirado de Frobenius). Ou seja: ao invés de você ficar lendo um amontoado de obras até que realmente descubra algo de interesse, seria muito melhor que o sistema educacional (Pound sempre esteve às rodas com questões pedagógicas) se dedicasse a erigir uma rigorosa seleção de autores que ainda se mantêm relevantes para o presente. Na parte intitulada "Por um método" (deste ensaio mesmo, How to read), veja-se (A arte da poesia, trad. Heloysa de Lima Dantas e José Paulo Paes, Cultrix, 10ª ed., 1995, p. 30):

 

(...) Como afirmei em diversos pontos dos meus volumes desorganizados e fragmentários: em cada era, um ou dois homens de gênio descobrem alguma coisa e a expressam. Talvez em apenas uma ou duas linhas, ou numa qualidade qualquer de uma cadência, e daí por diante, duas dúzias ou duas centenas, dois milheiros, ou mesmo mais, de seguidores a repetem, a diluem e a modificam.

         E se o professor selecionasse seus espécimens em obras que contenham essas descobertas, tomando como base exclusivamente a descoberta ― [e é bom você prestar muita atenção nessa passagem aqui, hein] que pode estar na dimensão de profundidade e não em apenas alguma novidade da superfície ― estaria ajudando muito mais os seus alunos do que se apresentasse seus autores ao acaso, e falasse sobre eles in toto.

 

Naturalmente que um recorte sincrônico sempre pressupõe toda uma inegável parcialidade. Embora Pound comumente seja traduzido numa espécie de palavra de ordem, é preciso lembrar que ele próprio reconhecia a parcialidade de suas opiniões e pedia que elas fossem consideradas "não como dogma ― nunca considere coisa alguma como dogma ― mas como resultado de uma longa meditação a qual, mesmo que seja de outrem, pode merecer consideração." (ibidem, p. 11)

Com Roman Jakobson não é muito diferente. Após a passagem que antes citei, logo após mesmo, veja só (ibidem, p. 121):

 

(...) A escolha de clássicos e sua reinterpretação à luz de uma nova tendência é um dos problemas essenciais dos estudos literários sincrônicos. A Poética sincrônica, assim como a Linguística sincrônica, não deve ser confundida com a estática; toda época distingue entre formas mais conservadoras e mais inovadoras. Toda época contemporânea é vivida na sua dinâmica temporal, e, por outro lado, a abordagem histórica, na Poética como na Linguística, não se ocupa apenas de mudanças, mas também de fatores contínuos, duradouros, estáticos.

 

Para além dos imbricamentos que podem existir, sem problema nenhum, entre um estudo que se pretenda diacrônico e que ainda assim ofereça lances propriamente sincrônicos para o fenômeno estudado. É dizer: perspectivas de análise históricas que não deixem de afiar, por isso mesmo, as farpas do olhar judicativo. Dois autores são exemplares. Antonio Candido: "A dificuldade está em equilibrar os dois aspectos, sem valorizar indevidamente autores desprovidos de eficácia estética, nem menosprezar os que desempenharam papel apreciável, mesmo quando esteticamente secundários." (Formação da literatura brasileira, Ouro sobre Azul, 10ª ed., 2006, p. 11). José Guilherme Merquior: "a redação desta História foi subordinada a um critério de alta seletividade. O leitor só encontrará aqui os principais autores brasileiros" (De Anchieta a Euclides, É Realizações, 4ª ed, 2014, p. 31).

 

*

 

Estamos em boa companhia, pelo menos. Embora o projeto de uma Antologia de Poesia Brasileira de Invenção, nutrido por tantos anos pelo núcleo da poesia concreta (os Campos brothers e Décio), nunca tenha saído do papel, a reflexão teórica é pertinente e frutífera. Mas vamos ser um pouquinho mais específicos quanto a isso. Em que medida propor um recorte sincrônico pode ajudar de algum modo a poesia goiana?

A versão inicial deste texto envolvia uma longa digressão teórica a respeito do que a crítica é, de qual é sua constituição, como ela funciona e essa série de coisas que fariam com que você, no mínimo, perdesse o início da sua novela. Depois eu ruminei um pouquinho e pus reparo: é besteira querer incutir esse tipo de coisa num texto como esse. Eu vou simplesmente pressupor que quem me lê não pasta nas várzeas do relativismo estético chão. Oras: muito mais realista e prático do que dizer que todo poema é um floquinho de neve especial vagando no espaço (uma maneira muito apropriada pra você lavar as mãos e deixar que influxos econômicos, geográficos, ideológicos etc. etc., movimentem as engrenagens da realidade literária), é simplesmente constatar uma pluralidade de fato de poéticas existentes, isto é, uma pluralidade de maneiras de se compor, ler, conceber e se relacionar com a poesia, o que não quer dizer de modo algum que diante de qualquer poema que seja escrito nós nos encontremos incapazes de formular uma opinião que seja.

Mas eu não vou falar disso aqui. Respondendo à pergunta.

Um recorte sincrônico é legal pois ele, pura e simplesmente, estimula o debate e contribui para oxigenarmos o fenômeno literário. Ou, até pra ser ainda mais prático, eu digo que você precisa se lembrar que as pessoas de fora do nosso Estado não têm condições nem mesmo tempo pra que se postem diante de nossa literatura sem qualquer esforço crítico prévio que busque pelo menos norteá-las num primeiro instante. Um estudo diacrônico, no fim das contas, acaba servindo muito mais ao morador da região do que ao leitor de fora. Pedir que o leitor de fora se interesse por nossa literatura oferecendo um estudo diacrônico pressupõe, sempre, que ele deva se interessar também por nossa história, uma vez que um estudo diacrônico é um recorte geográfico seguido de uma linha do tempo. Pode muito bem ser que esse leitor virgem, por assim dizer, aceitará nosso recorte num primeiro instante pra, depois, descartá-lo quase que todo. Não interessa, no fim das contas, pois o objetivo de um recorte sincrônico não é esse ― ser um produto de exportação certo e infalível.Seu grande mérito continuará sendo o de qualquer outra articulação crítica: sustentar-se de pé enquanto leitura.

E por isso, embora um recorte sincrônico ganhe sempre os ares daquelas listas de os-não-sei-quantos-melhores, o posicionamento do leitor diante de um recorte sincrônico não é o mesmo de quando frente a esse tipo de lista, onde, devido ao fato crucial de que uma lista dessas no geral não tem muito rigor de escolha (costuma se escudar na opinião dos críticos ― sabe-se lá quais, aonde e com quais razões, sendo a lista, em suma, um ensopado requentado), você se coloca diante dela e muitas vezes se limita ao "concordo" ou "não concordo". Um recorte sincrônico, uma vez que argumentado e uma vez que possui uma amarração mais rigorosa e firme (sem nem contar a sinceridade e franqueza imensamente maiores), pode ser debatido de maneira mais produtiva ― em especial no sentido de que um recorte sincrônico pretende ser uma leitura que se sustenta de pé, de modo que, mesmo que seu grau de discordância com aquela opinião seja alto, força é reconhecê-la como existindo, ao invés de simplesmente passar por cima dela e tentar colocar uma outra coisa no lugar, à guisa do que de fato acontece com muitas das listas-de-melhores.

 

*

 

Mas pra estender um pouquinho mais essa introdução chata que tenho certeza que você já pulou, eu mesmo vou me dar ao trabalho de alertar que este é um recorte por natureza limitado, e a produção poética popular ou a musical, por exemplo, não entraram em meu escopo de análise, o que não deixa de constituir, é claro, um gravíssimo problema ― e, por mais rigoroso que um crítico pretenda ser para com seu objeto, todo crítico deve pelo menos ter a decência de admitir que o bicho pega é quando ele precisa ser rigoroso consigo mesmo. Discussões, no geral entediantes e com um péssimo estofo literário por trás, podem levantar questiúnculas a respeito de se é realmente válido você se preocupar em não ter trazido um poema popular ou uma letra de música pra dentro de seu escopo de análise, pois, afinal de contas, esse tipo de coisa nem é poema mesmo.

Como eu disse, questiúnculas. A poesia popular e as letras de música são poemas do mesmo jeitinho que a chave de ouro de seu soneto do coração, e podem oferecer resultados artísticos tão interessantes, ou até mesmo mais interessantes, que uma gigantesca parcela da literatura livrescamente produzida. Aqui entra aquilo que eu falei a respeito de se reconhecer uma pluralidade de poéticas de fato no fenômeno literário: não se trata apenas de reconhecer e seguir como se nada houvesse acontecido ("oh que legal que vocês existem, mas, sabem?, não me importo"); pelo contrário, preparar-se, armar-se para, diante de cada uma dessas poéticas ― e já entendendo de antemão que cada uma dessas poéticas requer que o crítico ponha-se em crise, que ele questione seu instrumental crítico diante de uma poética distinta da qual ele porventura com mais facilidade trabalhe ―, conseguir lançar um olhar diferenciado e todo um rigor igualmente distinto para cada uma delas.

Mas a respeito dessa exclusão. Gratuita? Nem tanto. No caso da poesia popular é basicamente uma questão de documentação: se o que eu disponho pode assim ser chamado (de documentação), isso não mudaria muito a realidade de que isso que eu disponho, seja lá que nome possua, não é nem de longe suficiente. Agora já quanto às letras de música, eu digo que, embora eu esteja de pleno acordo que são poemas, ao mesmo tempo reconheço que não o são somente, e que demandam um tipo de análise mais ampla ― embora você possa chegar a excelentes interpretações e valorações realmente sólidas às vezes sem nem precisar ir de encontro a tudo aquilo que na letra de música é semente de música. É assim: se eu leio um negócio como "Preto Negro" da banda Carne Doce...

 

Dá de vez em quando, quando eu vejo um preto, um negro,
Mas, cada vez menos, pois cada vez mais o povo é preto, é negro
Mesmo quem sempre foi marrom e até então se via branco
Eu, bege, que sempre tive mais, que sempre tive paz, sinto esse negro
Sinto essa culpa, esse amarelo
dá de vez em quando, quando eu vejo um preto, um negro,
mas cada vez menos,
pois cada vez mais o povo é preto,

 

... bem; eu consigo sustentar sem muitos problemas que estamos diante de um poema interessante, e começaria te pedindo, pra argumentar a respeito, que você observasse o início ("Dá de vez em quando"), o fato de terminar com vírgula e até mesmo a própria ideia da redundância (Preto Negro) que ultrapassa a gradação de cores simples (branco amarelo, marrom preto) pra nos fazer refletir se a redundância é simplesmente um movimento de justaposição de idênticos (e depois, só depois, começaria a esmiuçar a realidade social que o texto trabalha).

Isso, porém, é pra quem apenas lê o texto. Uma letra de música possui uma teleologia própria que demanda, por sua vez, instrumentos distintos por parte do crítico. Quem escuta a música, por exemplo, vai observar aquilo ali ganhando uma outra vida, e não só num sentido idiomático; é literalmente uma outra vida pois novas fontes semânticas entram em jogo: Sal Ma começa cantando o poema de maneira até apressada, pontuando uns "Mas" aqui e ali com ênfase; depois, você ouve um solo instrumental com acordes, digamos, dissonantes, isto é, você fica com a impressão de que aquilo fica retumbando, meio que em eco, zumbindo no seu ouvido ― e, quando Sal Ma volta pra cantar a música de novo, a coisa já é gritada e muito mais rápida, um negócio que até te assusta, de modo que quando a canção está às vias de terminar, nós voltamos para um outro solo instrumental só que agora bem mais calmo e sem aquele incômodo zumbido do anterior. Entendeu? Idas e vindas, a "simples" repetição de uma mesma letra. Primeiro apressado, mas calmo. Depois um interlúdio que dissocia instrumentalmente, musicalmente uma camada de sentido que seja. E então, como que por trás daquela pressa e calmaria do primeiro irrompimento do poema surge uma versão esbravejada. E depois um calmo irrompimento instrumental, de novo iniciando, quem sabe, o ciclo.

Esse é o grande tipo de dificuldade ao falarmos de letras de música. Você não pode baratear e fingir que tá tudo favorável. Se você ouve Sal Ma cantando, em "Sertão Urbano", que "Mato dá prazer" três vezes seguidas, você não está diante do uso de um recurso poético pra acústicas minguadas de poemas que se queiram musicais; você está diante de um uso consciente de algo que, quando encontra voz da cantora, encontra por conseguinte uma nova fonte semântica nessa própria voz e na música, tudo simplesmente assim: indissociável.

Esse meu recorte não considera esse tipo de coisa, e se não o considera é também por incompetência e ignorância da minha parte. Mas, como dito, é algo que eu pelo menos desde já deixo registrado.

 

*

 

E por fim: caso você, leitor daqui mesmo de Goiás, no frigir dos ovos, se perguntar casdiquê não incluí aqueles nomes conhecidos ― um Gabriel Nascente, um Edival Lourenço ―, saiba que não é nem tanto que eu não os incluí; é simplesmente que, como o objetivo desse recorte é o de oferecer aqueles poemas que julgo que se mantêm relevantes para o presente, isto é, aqueles que considero os melhores resultados poéticos produzidos em Goiás, então esses nomes que você pensou estão onde devem estar: de fora da lista.

 

*

 

O primeiro poema goiano é o "Ditirambo às ninfas", de autoria de Bartolomeu Antonio Cordovil. O objetivo aqui é puramente encomiástico: louvar Tristão da Cunha Meneses, que nomeara Cordovil como professor. Embora saibamos, desde os estudos de Ivan Teixeira, que a poesia encomiástica trazia, por trás de seus louvores aparentemente simples, uma concepção de indivíduo quase que indissociável de sua posição social, de modo que o louvor encomiástico era mais amplamente louvor da sociedade, louvor do Estado, não espantando que muitas vezes o encômio alçasse voos épicos ― embora saibamos disto, ou disto devamos saber antes de rotular um poema encomiástico de bajulação pura e simples, no caso do ditirambo de Cordovil nós temos uma pequena mudança nessa ordem de coisas pois estamos diante de um poema que basicamente convida a todos para a bebedeira. Um modo meio... hum... esquisito de bajular, não é mesmo? Se você nunca leu nada do tipo, e se você possui uma concepção da poesia neoclássica como engessada, então é possível que quando ler o início do poema...

 

         Ninfas Goianas,

            Ninfas formosas,

               De cor de rosas

                  A face ornai.

                     Vossos cabelos

                        Com muitas flores

                           De várias cores

                              Hoje enastrai.

 

... você se surpreenda graças à sonoridade, à polimetria e mesmo o recorte visual que parece nos impelir a lermos de maneira diferente, musicalmente mais viva, esses versos. Mas é preciso ser um pouco estraga-prazeres. Não só a poesia neoclassicista se veiculou num conluio musical que poucas vezes em nossa trajetória poética nós encontraríamos ― bastando que você se lembre dos lundus de Caldas Barbosa, dos rondós e madrigais de Silva Alvarenga, das liras de Gonzaga, da sonoridade bem cuidada de muitos sonetos de Cláudio Manoel da Costa ―, de modo que as bases musicais de um poema como esse de Cordovil não chegam a ser tão espantosas assim (embora, claro, mantenham seu interesse graças ao que apontei: uma espécie de festividade misturada de louvor encomiástico altamente musical que me traz à recordação, de certa maneira, o Alexander's Feast de Dryden). Mas não só isso. O golpe fatal é: o poema de Cordovil é em grande medida uma reescrita do "Ditirambo" a Baco escrito por Pedro Antonio Correa Garção. Oras: Cordovil se mudou para Goiás junto com Tristão da Cunha em 1783; Garção morreu em 1772; logo...

Veja-se os três primeiros versos de Garção: "Os brilhantes trançados enastrando / Com verde mirto, com cheirosas flores, / Nos lindos olhos vivo rutilando" (não se estarreça demais com o fato de que até o verbo "enastrar" foi copiado-e-colado: preste um pouco de atenção na belezura sintática que é esse terceiro verso). Um segundo exemplo está no refrão, que é o mesmo em ambos: "Evoé / O Padre Leneu / Saboé / Evan Bassareu". Só muda o fato de que em Garção é "Padre Lyeu".

Mas aquela impressão inicial que você teve não precisa ser de todo descartada. Isso tudo pode muito bem ser sopesado se nos lembrarmos da dinâmica da emulação na poesia da época. E na verdade eu nem creio que precisemos chegar aí, uma vez que, embora o poema de Cordovil possua essa correspondência próxima demais com o poema de Garção, ele pode ser capaz de gerar algum interesse que seja se nos atentarmos, de novo, para a maneira tortuosamente encomiástica com que se estrutura (sutilmente distinta da linha reta em Garção: ditirambo Baco bacantes evoé!) ou então em alguns instantes de fanfarronice límpida:

 

         Deita, deita, enche o copo ― gró, gró, gró:

         Não entorna, espera, que este só

                            Não é que havemos

                          De hoje beber;

                   Mais vinho temos

                Sem confeição,

              Para brindar

         O bom Tristão.

 

Do mesmo modo que o poema de Garção apresenta um "ebrifestivo copo" (ou versos altamente sonoros como "As férulas protervas coriscando"), o poema de Cordovil, graças à onomatopeia, consegue infundir uma juventude inusitada ao restante da estrofe. Pelo menos. É um pequeno relance, de fato, incapaz de erguer o restante do poema, todavia capaz de se projetar para o presente com a mesma força festiva.

Se você de algum modo aceitou esse meu argumento, que serve muito mais como uma maneira de que olhemos de relance e com muita boa vontade para um trechinho desse ditirambo, então acho que você não vai se importar se eu trouxer à baila um contemporâneo de Cordovil, o Cônego Luís Antônio da Silva e Sousa. Dele a minha tesoura está afiada o suficiente pra citar apenas os dois versos iniciais de um soneto, de resto medíocre:

 

Nivângio geme junto da urna escura

Em que se escondem cinzas de Amarita,

 

Poucos versos de todo o período árcade conseguem ser tão sonoros quanto esses. Você tem aqui uma aliteração em G/J, N e uma assonância em U no mínimo marcantes e que exploram todo o exotismo de um nome como Nivângio, e isso pra continuarmos na tênue assonância em I do final do segundo verso e a rima que, também pela vogal I, bate de frente com a rima com vogal em U do verso anterior. É como se rangesse e depois demonstrasse fragilidade.

Versos dignos de nota, eu não tenho a menor dúvida.

 

*

 

Isso no século XVIII. Nós praticamente poderíamos pular todo o século XIX. Mas, pra não ficarmos com algum tipo de peso na consciência, podemos nos lembrar de Félix de Bulhões, que nos legou "O goiano da gema", "O meu violão" (existem versos deliciosos em especial nos quartetos, como: "E toda a minha mágoa escorropicho / Em teu seio chorão de pau-de-riga") e o soneto "A":

 

Gosto muito de ti, Iaiá, não nego,

mas fico triste, às vezes, quando dizes

que havemos de passar dias felizes,

casadinhos da Silva… essa não pego.

Com franqueza, de igreja eu arrenego,

nada de padre, altar, sobrepelizes,

para o diabo as capelas e as matrizes,

onde querem fazem do amor um prego.

O tal conjugo vobis não me toa;

eu cá quero querer em liberdade,

amar e ser amado por vontade.

Se amar e ser amado é coisa boa,

amemos ― que mal faz?… ― moralidade,

e o vigário que vão… que vão à broa.

 

Isso é espontâneo e flui que é uma beleza. Quase que sem nenhum adorno, todo embasado na língua do povo. Essa maneira livre de abordar o amor é muito mais franca e não convencional do que a quase totalidade dos poemas românticos da época.

Mas é isso e nada mais. Como eu disse, nós podemos simplesmente pular o século XIX inteirinho que não vai ter problema. Chegaríamos à produção inicial de Leodegária de Jesus, uma poetisa romântica retardatária (e sem nenhum momento de interesse que seja, nem que de relance, como no caso de Félix de Bulhões) que travou amizade com Cora Coralina e se punha contra o Modernismo (é remotamente possível que você já tenha lido o soneto "Supremo anelo"), ou então a Manuel Lopes de Carvalho Ramos, que, na passagem do século (1896), publicou um poema épico de recorte camoniano-frouxo intitulado Goyania (e sim, o nome da capital veio daí). Desse poema épico você não tem como citar praticamente nada; ele é como se fosse um daqueles poemas árcades que você tem que estudar na escola, só que sem o dever de estudar na escola e conseguindo ser ainda pior (em muitos sentidos ele é um pastiche do pastiche que esses cachalotes árcades por si só representavam). A única coisa citável desse poema é seu final, que consegue emular com uma admirável precisão a nota melancólica que fecha Os Lusíadas:

 

Era supremo o acaso, a dôr terrivel,

E findo estava o quadro da agonia:

Sem forças quasi a indigena acolhia

Aquella vida á margem do impossivel:

E assim, olhando a face quase fria

Que estreita, com disvello intraduzivel,

Guayra ri, soluça, e a voz discerra:

― Morto! Morto! ― Suspira e cahe por terra.

 

"Aquella vida á margem do impossível". Eu preciso ser justo: não é simplesmente ― e de longe! ― o melhor verso do poema todo; é também um dos melhores versos da poesia goiana.

O filho de Manuel Lopes, o prosador Hugo de Carvalho Ramos, precursor da maior parte da prosa regionalista em nosso país, possui parágrafos que são poesia pura e merecem ser citados. Veja-se o primeiro de "Ninho de passarinhos":

 

         Abrandando a canícula pelo virar da tarde, Domingos abandonou a rede de embira onde se entretinha arranhando uns respontos na viola, após farta cuia de jacuba de farinha de milho e rapadura que bebera em silêncio, às largas colheradas, e saiu ao terreiro, onde demorou a afiar numa pedra piçarra o corte da foice.

 

Isso no único livro que o autor publicou, Tropas e boiadas, de 1917. Você sabe o que Mário de Andrade disse sobre ele. Uma estrutura sonora tão bem construída dessas, em prosa, você só vai encontrar mesmo em livros como o próprio Macunaíma do Mário ou então no bom e velho Euclides da Cunha, ou mesmo Guimarães Rosa. É como se estivéssemos diante de um poema polimétrico:

 

         onde demorou

            a afiar

            numa pedra

                 piçarra

                 o corte

                 da foice.

 

O resto você sabe muito bem: a assonância em I, em O, a aliteração em P, em S etc. etc.

 

*

E nesse comecinho de século nós topamos, de pronto, com a figura de Léo Lynce. Lynce é um poeta que sem dúvidas se favorece, e muito, do que um recorte diacrônico tem a oferecer. Foi um dos primeiros, por exemplo, a trazer o verso livre a terras sertanejas, e, de certo modo, algo da geração de 22. Digo "um dos" pois a bem da verdade nós tivemos um nome como Ricardo Paranhos, que, considerando que inscreveu a maior parte de sua obra poética numa vertente satírica, é um nome no mínimo digno de nota ― se bem que nada muito além disso, ainda mais se você ter em mente a baixíssima qualidade do que deixou.

Na verdade, existem momentos do autor que são ruins num nível quase que absurdo, como quando escreve um poema sobre diplomatas chineses chamados Tu e Ku, que se desentendem e enfiam o dedo no ― ok. O resto é com você. O máximo que eu poderia citar do autor, a título de momentos isolados de realização poética, seriam alguns versos seus de prosaísmo e sonoridade felizes. Por exemplo, numa entediante sequência de sonetos que aborda a visita de um tal de Gama ao eu lírico ― no que ambos passam o tempo discutindo tópicos variados como por exemplo política ―, os dois primeiros versos do último:

 

Saiu no trem das seis, segunda-feira.

Chuva pra burro, chuva e muito barro…

 

Mas eu falava de Léo Lynce. Sua obra se resume basicamente a Ontem, publicado em 1928 (mesmo ano em que Leodegária de Jesus publicava um insípido Orchideas). Tudo bem que ainda é um livro com toda uma aura decadentista, e me parece que, se formos realmente analisar o que esse livro tem a nos oferecer, nós encontraremos um clima que se assemelha muito mais aos pródomos do Modernismo do que de fato um clima moderno. Modernismo mesmo nós só poderemos falar com José Godoy Garcia em 1948, outro poeta que um estudo diacrônico favorece bastante ― bastante até demais.

Mas Léo Lynce tem outras maneiras de despertar interesse. É uma pena que esse clima pós-simbolista de boa parte de sua poesia tenha descambado em versos maçantes e em muitos casos excessivos ― isto é, o poeta começa de maneira promissora mas simplesmente esquece a hora de parar. É o que vejo num poema como "Musa noctívaga", que, apesar de possuir uma estrofe inicial instigante, "Abro a janela e medito... / Há no espaço um brilho estranho. / É a lua que sai do banho / no lago azul do Infinito." (e se falo instigante é graças à forma como "sai do banho" sustenta até mesmo a chatice do "brilho estranho"), termina de maneira convencional: "Eis, porém, que o espaço e a terra / as trevas enchem, por fim: / a lua transmonta a serra / e a musa foge de mim."

De Lynce eu trago à baila quatro poemas: "Uma noite em Pouso Alto", "Mensagem ao irmão xavante", "Cadê" e "Clotilde". Qualquer coisa além desse número e eu estaria forçando a barra. Vejamos o que esses poemas podem nos oferecer.

"Uma noite em Pouso Alto" compensa ser citado na íntegra:

 

Noite de automóveis musicais

Em pererecações inaugurais.

Arcos, galhardetes e foguetes.

As emoções da chegada...

Orquestrações.

Salões em galas,

Colos coleando

em boleios de seios,

bailando...

Como é linda a minha terra!...

 

Entro a casa paterna

que deixei tamaninho.

No pátio deserto,

o luar descendo sobre as moitas silenciosas

de madressilvas e rosas...

Como é cheiroso o meu ninho!...

 

A volta, de madrugada,

pela mesma estrada,

sob o luar,

lembra-me a partida

(a minha primeira arremetida

de ave mal emplumada)

para a vida...

Como é doce recordar!...

 

A maneira como o poeta se detém na paisagem, e a descreve como uma espécie de correlato de suas emoções ou, até pra ser mais exato, como se aquela fosse uma paisagem que se reproduzisse meio que fielmente em sua alma, bem como a maneira como utiliza as reticências e como fecha cada estrofe com um indício de que aquela descrição que acabamos de ler é incompleta no sentido de que há um fundo emocional muito maior por trás... Bem. Tudo isso nós podemos esperar de um poeta ao qual nós aplicaríamos a alcunha de "decadente" ou "pós-simbolista" ou qualquer outro termo que busque traduzir aquela aura estranha que a literatura do início do século XX apresentava. No caso de Léo Lynce, toda essa atmosfera vaga é trazida em versos livres que, todavia, apresentam uma estrutura rimada e sonora que incutem no leitor um ritmo bem marcado, de modo que o leitor também vai sentindo essa nota fugidia correr sua mente.

A diferença com os outros poemas de Ontem é que, aqui, nós temos uma estrutura sonoramente muito mais precisa, muito mais palpável, como quando o poeta nos diz: "Salas em galas. / Colos coleando / em boleios de seios, / bailando..." Observe a nota sensual dos "Colos coleando", potencializada pela forte aliteração em L e pelo jogo paranomásico que vai surgindo aos pares. A escolha vocabular é também precisa: "pererecações" é um termo tipicamente brasileiro que instiga o leitor logo de início. E, como não fosse o bastante, o poeta ainda consegue se sair melhor: "pererecações inaugurais". A sinfonia de automóveis (um toque futurista, cê não acha?) vai e vem de maneira inaugural, pioneira naquela paisagem. Há um forte clima de sugestão emocional, de tal modo que mesmo naquelas passagens onde o poeta aparentemente tinha tudo pra não se sair muito bem, como quando ele aplica esse fecho tripartido que nada mais faz que reiterar o que já foi dito (por exemplo dizer que o ninho é cheiroso quando acabara de falar de madressilvas e rosas) ou então quando ele fala do luar sobre a terra, ainda assim conseguem dar a volta por cima e aqueles refrões no final das contas ganham uma recorrência musical e aplicam um recorte ao poema que realça sua melancolia, e a própria ideia do luar sobre a terra ganha outra conotação quando esse mesmo luar é lançado sobre moitas silenciosas.

Nem sempre vamos encontrar momentos tão felizes assim. Na verdade, é comum que o poeta acabe transformando seu poema numa coisa diluída demais, e que algumas das comparações percam totalmente o sentido, como aquela nostalgia de monja na penúltima estrofe de "Crepúsculo".

"Mensagem ao irmão xavante" é um poema um pouco mais longo. Na verdade nem tanto; é mais correto dizermos um pouquinho, mas creio que se citar apenas as duas primeiras estrofes eu conseguirei dimensionar a coisa:

 

         Bom dia, meu irmão.

         Amanheceu.

         Você não sabe?

         Também você veio para a festa.

         Festa da Civilização. Festa da democracia.

 

         Quer dizer: você, meu caro irmão, veio para a fila,

         para o cinema, para a cidade, para o arranha-céu,

         para o pif-paf, para a sífilis, para o câmbio negro,

         para os partidos políticos (você vai votar),

         para a anedota carioca, para o futebol e para o samba.

         Dentre um pouco, você será um malandro pingueiro da favela.

 

A figura do índio foi uma pedra de toque para os modernistas, e a nota iconoclasta com que Léo Lynce aborda a civilização está, em absoluto, aparelhada com os melhores resultados de gente como Oswald, Mário ou Drummond. O que anteriormente houvera sido noite, isto é, quem sabe associando a cultura indígena a uma noite ancestral que fosse, agora é dia e o índio xavante veio pra festa sem nem mesmo saber. O cinismo com que o eu lírico trata o índio, deixando de maneira eu considero até explícita um nojo que, embora não possamos incutir com tanta facilidade ao eu lírico, podemos incutir pelo menos ao poeta e a nós, leitores, nem que seja após a leitura do poema ― esse cinismo é feroz. Muitos poetas antes, durante, depois e se brincar há quinze minutos atrás já tentaram construir ironias desse tipo, em que você simula uma voz que está falando bem de algo que é obviamente ruim. É algo parecido com aquela letra do Legião Urbana, Perfeição, mas sem o refrão idiota e explicativo. Entende? É justamente isso: sem deixar demais na cara. Mantendo o cinismo num nível em que, pela simples forma como os elogios vão se amontoando, você já consiga sentir o nível de ojeriza que realmente está em jogo.

"Cadê", por sua vez, é um poema que imita o compasso da poesia popular. A típica poesia regionalista, ou seja, quando poetas que geralmente escrevem coisas em "linguagem normal de poesia" resolvem imitar a maneira como o povo compõe seus poemas. Na maior parte dos casos isso dá errado, pois o tal do poeta não tem sensibilidade de incutir um ritmo genuíno à sua composição sem baratear a poesia popular a um amontoado de jargões e formas fixas porcamente usadas. Com Léo Lynce a coisa é um tanto quanto distinta, e com um grau de realização que nós só vamos encontrar depois em Gilberto Mendonça Teles (Afonso Félix de Souza até que tentou algo do gênero, mas foi um pastiche intragável de Garcia Lorca). Cito a segunda estrofe apenas do poema:

 

         Roceiro, roceiro,

         que vai à cidade

         montando o pagão

         num chouto largado

         buscar o "preciso".

         O gado quer sal

         menino quer faca,

         mulher quer vestido.

 

         "Cadê", no título, está a partir da terceira estrofe. A penúltima, por exemplo:

 

         Roceiro que fica

         socado na roça

         que nem catetu.

         Cadê a viola,

         meu jeca-tatu?

 

Esse ponto final dentro da estrofe. Eu prosearia só sobre isso, pra você ter uma ideia. Um poema desses é autêntico, e uma vez que consegue traduzir não só em termos vocabulares mas também em termos rítmicos e eu diria que até mesmo em termos emocionais a paisagem rural do Estado, é enquanto autêntico que ele cumpre sua função poética e ensina uma forte lição de imersão e composição poética para o presente. Você não encontra aquelas tentativas de traduzir o pensamento do matuto no papel. Uma sequência como "O gado quer sal, / menino quer faca, / mulher quer vestido" já consegue traduzir um clima regional com muito mais felicidade, fazendo com que o eu lírico, ao invés de ser um observador neutro e quando muito entusiasmado, participe da cena retratada da maneira ativa e afogue o leitor nisso tudo sem rodeio nenhum.

"Clotilde", por fim, é o soneto invertido que o poeta escreveu a respeito da morte da filha:

 

         A estante... a mesa... o toucador... o extrato

         preferido... trabalhos de colégio...

         teus livros... teu diploma... teu retrato...

 

         Tudo fala de ti, do ameno trato,

         da bondade sem par, do porte egrégio...

         Ó filha minha, que destino ingrato!

 

         Na via crucis que minh'alma trilha,

         por um louco, talvez, alguém me tome,

         ao ver-me sob a dor que me encarquilha,

indiferente ao frio, à sede, à fome.

 

         Quando, no último instante da vigília,

         dorme a saudade atroz que me consome,

         estrangulado nos meus lábios, Filha,

         entre soluços, vem morrer teu nome.

 

Creio que é o mais belo soneto já produzido por aqui. O jogo de reticências, que o poeta sempre trabalhou em sua poesia, ganha uma dimensão forte logo no primeiro terceto pois esses objetos listados vão se asilando uns dos outros (o fio que antes os unia agora está morto), e o uso do possessivo no último verso apenas realça de maneira ainda mais intensa o peso de chumbo da ausência. O segundo terceto traz de novo uma adjetivação e nem tanto um rol de substantivos, o que quer dizer que é um terceto menos substancial que o anterior, isso tudo pra terminar com uma exclamação pungente. Se considerarmos que os tercetos de um soneto são a parte do soneto que contém a chave de ouro, que termina o soneto de maneira memorável e coerente, então essa nota final com que o poeta fecha seu soneto invertido ainda guarda um pouco do que as chaves de ouro têm a nos oferecer ― e isso é, por si só, muito diferente de você apenas inverter seu soneto...

Mas o enfoque, nos quartetos, passa a ser em relação ao eu lírico. É possível que você consiga reorganizar o poema e encaixar os tercetos depois dos quartetos sem que isso cause, exatamente, uma perturbação semântica tão grande assim, mas, de todo modo, a perturbação na ordem natural das coisas (filhos morrendo antes dos pais) suplanta tudo, e a exclamação com que o poeta pontua seu último terceto, num poema que começa com notas arrastadas que parecem remeter a soluços (mais ou menos como o Vicente de Carvalho de "Pequenino morto") e depois passa a adotar uma pontuação austera, exemplifica o início de um novo movimento no poema. E esse enfoque no eu lírico, na última estrofe, traz consigo uma nota que parece remeter à morte do eu lírico nalgum futuro qualquer ("no último instante da vigília") ao mesmo tempo que traz a morte definitiva do nome da filha em seus lábios ― e, seguindo o caminho desses versos, podemos também pressupor que o eu lírico desfalece. Ou simplesmente não ter forças para que consiga dizer uma vez mais o nome de sua filha, visto que, no penúltimo verso, o termo "Filha" aparece em maiúsculo, o que é particularmente interessante pois nenhum outro termo no soneto inteiro (e veja bem que o soneto possui muitas passagens enumerativas: além das já citadas, vide o final do primeiro quarteto) apresenta este recurso.

A dor é maior, portanto, inimaginável, inigualável. Léo Lynce consegue traduzi-la com uma intensidade quase que sem igual neste simples soneto, e a maneira como ele trabalha sua forma, não simplesmente o invertendo mas mudando o enfoque e trabalhando, de maneira sutil, com as impossibilidades de fala (apesar de ser um soneto de muitas enumerações, nós ficamos sempre com a sensação de que nenhum desses itens enumerados ou descrições feitas é capaz de abarcar ou de chegar ao xis da questão) e com as pontadas da agonia.

 

*

 

Depois de Léo Lynce e Ricardo Paranhos, alguns nomes, de maneira também pontual, contribuíram de maneira inteligente para a poesia goiana ― se bem, o que é interessante notar, que praticamente nenhum deles possui relevância nem mesmo num estudo diacrônico. Um desses nomes é o de João Licino de Miranda. Se você tomar como base o tom arrastado e, como eu caracterizei antes, propriamente decadentista da produção do início do século, e se botar tento nos primórdios densamente musicais do verso livre aqui no Brasil, por exemplo Gilka Machado (mas lembre-se, sempre, que o verso livre surgiu com um parnasiano: Alberto Ramos, 1894), vai encontrar bons exemplares, eu diria até mesmo excelentes exemplares na poesia de um João Licino (assim como na de Léo Lynce e de basicamente todos os outros que eu for mencionar aqui, capazes de criar pelo menos um pequeno núcleo de irradiação poética que dará sustança, nem que seja histórica, para aquele verso livre do apreço de muitos poetas goianos hoje, que seria o verso livre rimado). Observe o caso de "Nós dois":

 

         Falando baixinho...

                   Lá fora, o chuvisco pingando

         nas folhas. Cá dentro nós dois...

                   Cachaça no copo, teus olhos

         nos meus e nós de namoro...

                   A vida lá fora, correndo nas

         ruas, brincando nos galhos...

                   E nós de namoro viramos o

         copo...

                   Cachaça na mesma goteja no

         chão. Teus olhos nos meus...

                   A vida lá fora...

                   E nós de namoro bebemos a

         vida...

                   Não foi?

                   Lá fora o chuvisco...

                   Cá dentro nós dois...

 

A construção pausada e reticente do poema tece uma proximidade entre as duas figuras, e a necessidade de que ambos se aconcheguem no lar, uma vez que está chovendo e apesar mesmo do fato de que a vida está lá fora, vai sendo criada à medida que o poeta mescla descrições exteriores com relances de intimidade do casal. Aqui não é simplesmente o fato de que os dois bebem cachaça, por exemplo, o que consegue ligar o interesse do leitor de imediato para o poema ― algo que não tenho certeza que ocorreria se os dois estivessem bebendo por exemplo um vinho ―, mas também a maneira como aos poucos esse namoro vai trazendo a vida para dentro do poema, até o momento em que o poeta diz, apenas: "E nós de namoro bebemos a / vida..." Essa intimidade é tão bem montada que quando a gente lê "Cachaça na mesa goteja no / chão", a gente fica sem saber o que aconteceu direito; o poeta começa pedindo pra que se fale baixinho, e o que podemos pressupor é que toda vez que ele repete a palavra "namoro", parece que o clima ali dentro vai esquentando, e, pega daqui pega de lá, o copo de cachaça cai.