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Peter Sloterdijk, um dos filósofos mais originais da atualidade, adota uma postura um pouco inusitada, recusa a ideia de totalidade em seu declínio filosófico e troca a coruja de Minerva (símbolo da filosofia) pelos pardais do telhado. No concerto dos pardais assobiam os segredos dos nossos tempos, as suas concepções, fugacidades e todo o horizonte em movimento. O ser do mundo desses pássaros é nômade e volátil. Em uma entrevista, declara que a tarefa da filosofia se confunde com a do design, que não inventa do zero, mas começa de novo — repensa e reinventa os objetos existentes, permitindo às suas formas uma transformação.

Nos círculos literários da boêmia parisiense, tem-se Nicolas Arthur Rimbaud (1854–1891), um verdadeiro designer de imagens nômades. Sua existência foi marcada por aventuras e pela busca delirante pela liberdade. Sua breve atividade poética iniciou-se na adolescência e terminou oficialmente aos dezenove anos. Bastaram-lhe apenas dois anos para desconstruir toda a velharia literária. Suas obras Une Saison en Enfer (1873) e Illuminations — Coloured Plates (1886), apresentam uma revolução estética carregada de sinergia e multiplicação dos sentidos.

Com um espírito livre, em suas veias circulavam genialidade e originalidade, para além dos espaços geográficos desbravava territórios em todas as suas possibilidades de expansão — em um amor oceânico, o próprio limite do homem. A sondagem das fronteiras do que se pode experimentar já estava implícita em seu talento precoce, como observa-se neste trecho do poema "Barco bêbado" ("Le bateau ivre"), em tradução de Augusto de Campos:

 

 

Conheço os céus crivados de clarões, as trombas

Ressacas e marés: conheço o entardecer,

A aurora em explosão como um bando de pombas,

E algumas vezes vi o que o homem quis ver!

 

Eu vi o sol baixar, sujo de horrores místicos,

Iluminando os longos glaciais;

Como atrizes senis em palcos cabalísticos,

Ondas rolando ao longe os frêmitos de umbrais!

 

Sonhei que a noite verde em verdes alvacentas

Beijava, lenta, o olhar dos mares com mil coros,

Soube a circulação das seivas suculentas

E o acordar louro e azul dos fósforos canoros!

 

 

Sobre esse poema — "Le bateau ivre" Hugo Friedrich lembra que o poeta o compôs "sem conhecer os mares e países exóticos que nele resplandecem". Acredita ter sido estimulado pela leitura de revistas ilustradas. No poeta, "uma fantasia potente e violenta cria uma visão febril de espaços dilatados, turbulentos, totalmente irreais". Aqui, a natureza brota como uma fonte para o eu lírico em explosão do gênio adolescente, como se não existisse uma temática na sua poesia, mas apenas uma pura "excitação efervescente".

E em tal efervescência há uma fúria contra a beleza de uma tradição estabelecida: nota-se esgares à lírica das flores e suas rosas. Em sua jardinagem, o poeta canta o tabaco, as plantas exóticas e a doença das batatas. Nesse instante descomunal da literatura, a "lágrima de uma vela vale mais do que a flor". As coisas e as palavras são metamorfoseadas: "flores de carne viva em bosques siderais, brasas de cetim e céus de cristais gris". Esses elementos são sensivelmente reais, no entanto, Rimbaud parece estar retornando de outro mundo, em puro êxtase.

Em Une Saison en Enfer, o poeta fala de uma alquimia do verbo como uma espécie de iniciado em práticas mágicas. Nessa analogia, encontra-se na sua imagética uma operação alquímica que cobiçava transformar metais inferiores em ouro a partir do uso de uma substância misteriosa. Deixando o poeta falar: "vou desvendar todos os mistérios: mistérios religiosos ou naturais, morte, nascimento, futuro, passado, cosmogonia, nada. Sou mestre em fantasmagorias". Nessa passagem traduzida por Ivo Barroso, vê-se a seguinte afirmação:

 

 

Habituei-me às alucinações simples: via honestamente uma mesquita em    lugar de uma fábrica, uma escola de tambores formada só por anjos,         diligências a rodar nas estradas do céu, um salão no fundo de um lago; os   monstros, os mistérios; os letreiros de um teatro de revistas despertavam   assombros ante mim.

 

 

Vale lembrar a "Carta do Vidente", na qual o autor afirma que, para ser poeta, é necessário conhecer a si mesmo, "é preciso ser vidente, fazer-se vidente". E como seria possível sê-lo? Tal possibilidade acontece por meio do desregramento dos sentidos. No amor, sofrimento e loucura, o poeta exaure em si mesmo todos os venenos, guardando apenas o que existe de essencial. A alma deve estar aberta ao novo para desregrar o seu eu e transformá-lo em outro. Assim, "Eu é um outro. Se o cobre amanhece clarim, nenhuma culpa lhe cabe. Para mim é evidente: assisto à eclosão do pensamento, eu a contemplo e escuto".

Sua poesia é marcada pela vidência, o desconhecido acoplado em uma nova invenção do verbo. O método de desregramento dos sentidos é justamente o encontro do estado de doença, recuperando a infância imaginada, o paraíso perdido, a força criadora. Para ele, "os sofrimentos são enormes, mas é preciso ser forte, ter nascido poeta, e eu me reconheci poeta".

Aqui, o fetiche da razão perde sua força por meio de uma revalorização dos sentidos. Porque a vidência implica uma nova linguagem. Sua intenção era a de arrancar as cortinas do desconhecido, tornar-se "o grande enfermo, o grande criminoso, o grande maldito — e o sabedor supremo". Porque mesmo "quando, enlouquecido, acabar perdendo a inteligência de suas visões, ele as viu!".

Alceu Amoroso Lima, ao prefaciar a edição bilíngue de Une Saison en Enfer, deixa essas considerações: "relata a conhecida lenda grega que alguns pescadores, passando à noite por uma praia deserta, ouviram uma voz misteriosa lançar um longo grito: o grande Pan morreu". O eco dessa voz encontrou resposta em Rimbaud pelo fato de a morte de Deus, em sua obra, significar também a morte do homem como sujeito cognoscente. No seu lancinante grito poético, os homens são estrangeiros, deformados, sem pátria.

Esse impulso artístico tem como legado uma visão desfigurada e insólita do mundo. O escritor Henry Miller, como um entusiasta da poesia de Rimbaud, no livro A Hora dos Assassinos (1955), declara que o verdadeiro problema para o poeta é deixar a alma monstruosa, anômala, como na mitologia eram as almas das sereias, da esfinge e do centauro. Todos eram admiráveis, mas alteravam as normas causando medo ao homem comum, até porque a anormalidade não é um destino tolerável.

Segundo Ivo Barroso, "Rimbaud quer a luz, mas duvida se a luz que quer é esta mesma que esplende sobre tantas deformidades e injustiças. Repúdio do mundo como ele é, anúncio de um mundo que virá". Há um desejo de salvação, mas com liberdade. Aqui, atenta-se para a sua inconformidade com o real: "por ora sou maldito, tenho horror à pátria. O melhor será dormir, completamente bêbedo, na areia".

O mundo elimina o que há de grande no homem, rouba-lhe a liberdade. Assumindo o papel do poeta como um ladrão de fogo dos deuses, em sua inquietude está manifestado o desejo de uma existência mais intensa e livre, alheia aos subterfúgios e servilismo. Julio Cortázar enxerga na obra de Rimbaud um desejo de transfigurar a realidade vigente, uma vontade de criar um novo mundo — distante dos condicionamentos que a sociedade burguesa estabelece.    

Em ruptura e evasão, imagina um corpo livre das sujeições, em que os seus órgãos não estariam agenciados numa maquinaria de poder. Nesse momento, é digno de nota mencionar Michel Foucault que, em sua obra Vigiar e Punir, entende que as disciplinas nascem de uma arte do corpo humano. A meta seria uma formação que torne os corpos dóceis e obedientes, tendo assim uma política de coerções: "o corpo entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma anatomia política que é igualmente uma mecânica do poder".

Em passos de andarilho, o poeta coloca, então, os corpos em ebulição, lançando-se para fora das hierarquias que legitimam os cárceres do humano. Com os olhos ardendo em liberdade, abre as potências do impensado. Em "Mauvais sang", há uma fuga da Europa em direção a lugares nos quais o homem possa se fortalecer e resgatar todo o viço que a civilização ocidental lhe roubou.

 

 

Eis-me na praia armoricana. Que as cidades se iluminem na noite. Minha     jornada chega ao fim; deixarei a Europa. A brisa marinha há-de crestar os     meus pulmões; climas perdidos me curtirão. Nadar, triturar ervas, caçar,         fumar principalmente; beber licores fortes como chumbo derretido.

 

 

O sujeito deve insurgir-se como um maldito que não se adapta e carrega a sua barbárie como o brilho de um novo dia. Trata-se, portanto, de uma poesia do devir. Em Deleuze— "devir é jamais imitar, nem fazer como, nem ajustar-se a um modelo, seja ele de justiça ou de verdade" — há uma pluralidade de vidas, uma vontade de expandir todas as partes. Verifica-se que em Illuminations as imagens são como quadros em movimento, que dão forma ao informe. Para Dominique Noguez, Rimbaud seria hoje um cineasta underground envolvido em composições de imagens ou, quem sabe, um cantor de rock, como falava Paulo Leminski. 

Arrisco dizer que a poesia multifacetada de Rimbaud está próxima à filosofia de Sloterdijk. O pensador não digere as coisas como fixas e dadas, mas revela que a formação do homem é voltada para a criação de esferas, as quais significam um receptáculo em que estamos imersos, isto é, espaços onde habitam vivos.  Há, então, a necessidade de reinventar o nosso lugar. Vale perguntar com o filósofo: "onde estamos quando estamos no mundo?". Estamos em um exterior que sustenta outros mundos interiores.

Com Rimbaud, os conceitos estão sempre deslocando o sujeito, instigando o parto de outras esferas a fazer uma experiência com a alteridade. Enfim, nenhum poeta se mantém tão jovial e eterno como esse gênio quase adolescente.

Encerro este breve ensaio não com uma afirmação, mas indagando com o poeta: "quando iremos afinal, além das praias e dos montes, saudar o nascimento do trabalho novo, da nova sabedoria, a derrocada dos tiranos e demônios, o fim da superstição, para adorar — os primeiros! — o Natal na terra!"?

 

 

junho, 2016

 

 

 

Tito Leite [Cícero Leilton Leite], Aurora/CE (1980). Poeta, possui graduação em Filosofia - Licenciatura Plena pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo (2005) e especialização em Filosofia da Educação pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Cajazeiras - FAFIC (2007). É mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Tem experiência na área de ensino de Filosofia, com ênfase em Filosofia, Filosofia Política, Ética, Filosofia da Ciência e da Tecnologia. Vive em Olinda, onde é monge no Mosteiro de São Bento.

 

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