©william blake
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

RESUMO

 

Este trabalho tem como objetivo analisar, por meio da literatura comparada, a figura do diabo em algumas obras da literatura, em diálogo com parte do texto bíblico. A partir dessa análise será construída uma interpretação imagética do bem e do mal na personagem do diabo. Assim, será mostrado como a sociedade concebe a figura do diabo e como a literatura como arte corrobora para as construções ideológicas do meio social. Como pressupostos teóricos, este artigo trará textos de autores como Carvalhal (2006), Brunel & Chevrel (2004) e Machado & Pageaux (1981).

 

Palavras-chaves: Diabo. Bíblia. Literatura comparada.

 

ABSTRACT

 

This work pretend to analyze, through literature compared, the devil figure in some literature works in dialogue with part of the biblical text. From this analysis will be built an imagetic interpretation of good and evil in the devil's character. So we show how society sees the devil figure and as the literature as art supports for ideological constructions of the social environment. As theoretical assumptions this article bring texts by authors such as Carvalhal (2006), Brunel & Chevrel (2004) and Machado & Pageaux (1981).

 

Keywords: Devil. Bible. Comparative literature.

 

 

Introdução

 

A literatura como recurso e ferramenta de reflexão da sociedade utiliza elementos questionadores, que podem construir e desconstruir ideologias. Assim, por vezes, foge daquilo que tem seu papel maior, que é o de transmitir algo agradável por meio da leitura. A literatura é ficção, que por vezes, confunde-se com a realidade (pelos leitores) e incorpora-se à vida das pessoas que fazem o irreal se transformar em "quase real", daí atinge o grau estético desejado do verossímil.

Por essa razão, busca-se trazer para reflexão o uso da literatura comparada como elemento intermediador, o que acontece por uma influência da arte literária e outras formas de arte. Essa investigação literária utiliza a literatura comparada como método de análise para que, assim, se possa mostrar as várias figuras que são construídas nas obras literárias. Carvalhal (2006) dá um panorama do surgimento da literatura comparada e o seu método de investigação. Para o diálogo entre literatura, cultura e fé será utilizado o texto de Machado & Pageaux (1981). Brunel & Chevrel (2004) orientarão o diálogo entre literatura comparada e as outras artes.

Como obras literárias a ser confrontadas tem-se O Diabo no Campanário, de Poe, O Bom Diabo, de Monteiro Lobato, A igreja do Diabo, de Machado de Assis, Macário, de Alvares de Azevedo, Fausto, de Goethe, A Divina Comédia, de Dante e, por fim, os versículos 13-17 do capitulo 28 de Ezequiel, do Antigo Testamento. Essas obras permitem construir uma visão interdisciplinar das representações do diabo.

Neste artigo não se pretende criar conceitos, mas apenas refletir sobre as possiblidades de entendimento da figura ideológica para diferentes culturas e épocas a partir de obras diferentes.

 

 

O método comparativo: um olhar para as práticas de absorção do outro

 

Literatura comparada é um ramo da literatura que tem seu nascimento nas ciências naturais, quando era usada para "comparar estruturas ou fenômenos". Ela realmente consolida-se como um método de investigação literária na França e é a partir de várias publicações de autores, que ela começa a ganhar seu espaço dentro da literatura como uma disciplina que hoje é essencial para estudar as influências de uma ou mais literaturas ou até mesmo de outras áreas do conhecimento e da cultura.

Entender todo esse processo é útil para compreender por meio da comparação como o "eu" absorve o outro, e isso num sentido literário, pois essa absorção compara as obras para ver como a literatura é incorporada às práticas de vida, de modo a possibilitar uma visão de como se criam mundos míticos e como a literatura é absorvida por outra arte para transformar.

 

Assim compreendida, a literatura comparada é uma forma específica de interrogar os textos literários na sua interação com outros textos, literários ou não, e outras formas de expressão cultural e artísticas (CARVALHAL, 2006 p. 73).

 

Ou seja, comparando as obras literárias e, no caso, dialogando com a Bíblia, que está muito ligada à vida das pessoas cristãs, será possível observar como a figura do diabo é reconstruída no meio literário e no meio social. A verdade é que a repetição, quando acontece, sacode a poeira do texto anterior, atualiza-o, renova-o (por que não dizê-lo?) e reinventa-o (CARVALHAL 2006, p. 54). Essa incorporação do outro possibilita uma nova criação, então, o novo não deve ser compreendido como algo inédito, mas deve ser entendido como algo que muda com características próprias. Na literatura, apropriar-se do outro é mostrar novas possibilidades.

 A comparação possibilita entender o processo de absorção ou contato que uma literatura tem com outra, percebendo a influência que esta recebe, não só de uma obra, mas de várias outras formas da cultura em que está inserida.

 

(...) o processo de escrita é visto, então, como resultante também do processo de leitura de um corpus literário anterior. O texto, portanto, é absorção e réplica a outro texto (ou vários outros) (CARVALHAL, 2006, p. 50).

 

Nesse caso, cada obra recebe a influência por meio da leitura de outros textos e torna-se uma réplica, mas não no sentido de cópia, pois como se disse acima o texto se renova, demonstrando, assim, o seu ponto de partida, que sempre é o outro, visto que cada escritor, ao longo de sua vida, fez muitas leituras de autores diferentes e, várias vezes, identificou-se com aquela escrita ou também fez diversas leituras do próprio mundo que o cerca, mas decidiu-se apenas por uma visão da coisa retratada. Nesses "pedaços" de diferentes leituras, pode-se identificar os resquícios do outro, como o caminho para compreender como se construiu determinada obra literária e quais as influências que ela recebeu, já que o inédito é algo considerado inexistente, o que torna possível a renovação "desse eu" que foi absorvido pelo outro.

 

 

O diabo na história e na arte

 

A questão do demônio na história da humanidade vem desde que o homem começou a habitar este planeta:

 

Não há como precisar o surgimento do Diabo na cultura ocidental, embora algumas de suas características já haviam aparecido na época dos hebreus e também durante os períodos romano e gótico, quando o homem acreditava que existissem raças fabulosas nos confins da Terra (CARNEIRO, 2011,  s/a).

 

O diabo não surge apenas como uma figura pertencente ao contexto cristão. Ele aparece, principalmente, nos séculos de domínio da igreja católica, mas a questão demoníaca é discutida na Bíblia e sua representação simbólica constrói-se de forma mítica.

Desde as sociedades mais antigas já se fala do demônio não como ele é conhecido na visão bíblica — como um anjo que foi expulso do paraíso pela sua desobediência a Deus — e, sim, como um ser ligado ao lado ruim de todos os seres humanos, principalmente, àqueles que praticavam os atos mais repugnantes. Considerava-se que isso só ocorria se fosse provocado por seres que controlavam os seres humanos, induzindo-os a tais práticas, pois como seres frágeis os humanos seriam incapazes de tal maldade a não ser que estivessem "possuídos". Por outro lado, considera-se o demônio atual, ou seja, o do mundo cristão, como um ser que se opôs a Deus, que caiu neste mundo para ser o provador da fé humana e é o "pai" de todas as más ações, como relata a Bíblia. No entanto, vários estudiosos consideram que o diabo não é um ser mau, é apenas um fantoche, que foi criado para servir de máscara e acobertar as ações de Deus.

A arte é um ponto de ligação muito forte entre a sociedade e as várias formas de representações míticas, já que influencia o pensamento social e também é influenciada por ele.

 

A ligação mais íntima entre o Diabo da arte e o Diabo da literatura é o demônio do teatro. A elaborada literatura de visão sobre o inferno influenciou as artes de representação tanto quanto Dante, e algumas pinturas são virtualmente ilustrações de tais visões. Arte e teatro influenciam-se pelo menos no fim do século XII, quando o teatro vernáculo começou a ser popular. A representação do Diabo no teatro foi derivada de impressões visuais e literárias, e em troca artistas que tinham visto produções de teatro modificaram a própria visão deles (CARNEIRO, 2011, s/a).

 

Portanto, o diabo tem um papel muito importante para a arte, assim como qualquer mito, pois a arte apropria-se do que é certo e que tem uma imagem fechada, para transformar e mostrar outras possibilidades que, certamente, não existiriam, já que no período medieval, ela teve papel importante na educação cristã, pois a maioria das pessoas não tinha acesso à leitura, fazendo dela (da pintura, por exemplo) um instrumento de ensino. O teatro também ensinou muito ao povo, inclusive, aos nossos índios. Para assustar as pessoas sobre os perigos do diabo criavam-se imagens horríveis que davam a ideia de pecado. A arte, então, serve como um grande instrumento para a transmissão e criação de possibilidades.

 

 

O processo da comparação: construindo a figura do diabo

 

Quando se pensa nas muitas possibilidades que a literatura traz para o entendimento do mundo, acredita-se que elas podem, de alguma forma, influenciar as ideologias. Pensar desse modo é dizer que a literatura é muito mais do que entretenimento. O processo de construção da imagem do diabo na literatura é algo muito difícil de entender, mas acredita-se que a literatura, como escrita, tenha acompanhado a evolução do pensamento mais de perto e, com o tempo, sobressaiu-se sobre as imagens e criou as próprias imagens a partir dessas representações e da Bíblia, já que o processo de criação e imaginação na literatura é grande. Mas qual seria realmente a imagem que se tem do diabo? Talvez essa questão, hoje em dia, seja fácil de ser respondida, mas na verdade, não é tão fácil assim, como se mostrará por meio da comparação. A imagem a seguir mostra como se concebe o diabo nos tempos atuais.

 

©nelson di rago/TV Globo | luís melo em o auto da compadecida

 

Percebe-se, na imagem acima, a construção imagética de um ser com chifres, aparência animal, barbichas, olhos avermelhados e olhar macabro. Essa representação é a mais veiculada pelos meios de comunicação. O uso dessa imagem "assustadora" do diabo fez com que se eternizasse uma ideia mítica, que se retroalimenta de diferentes formas de expressão artística, que poderá ser manipulada pelo seu criador. Assim, o cinema, o teatro, a pintura e a literatura "desenham" e "descrevem diferentes formas de se entender esse ser de difícil compreensão e possibilitam reflexões plurais para entender esse objeto tão instigante para os estudiosos de diferentes áreas. O fluxo imagético carrega tudo consigo, como uma corrente de que ritmo e intensidade também não dizem respeito ao indivíduo, mas à dinâmica do espetáculo, não há tempo para a reflexão, é tudo sempre uma surpresa arbitrária e inescapável" (PELLEGRINI, 1999, p. 201).

Inicia-se este estudo pela interpretação da obra O diabo no campanário, de Edgar A. Poe, em que o texto descreve uma cidade de pessoas que seguem um ritmo igual, sempre comem no mesmo horário e que sempre vivem a mesma vida, que é marcada por um relógio, mas tudo muda com a chegada de um homenzinho: "Anteontem quando faltava cinco minutos para o meio-dia, surgiu um objeto de estranha aparência no alto dos morros" (POE, 2011, p. 104).

Primeiro, o estranho surge como uma marca de anunciação do diabo, pois o ar é de mistério e uma coisa que chama a atenção é a sua aparência incomum e esquisita. Mostra-se o diferente como demoníaco, assim como mostra-se o sobrenatural no horário que o relógio marcava naquele momento, já que para muitas culturas o meio-dia é uma hora sagrada, que deve ser guardada. Em seguida, descreve-se a imagem do ser que surge e que seria o diabo.

 

(...) era um homem. Muito pequeno, parecia vir de outras terras. (...) Sua pele era escura, o nariz recurvo, olhos redondos, boca larga. Vivia rindo, de orelha a orelha. Pelo menos dava essa impressão. Bigode e barba. E nada mais se podia ver no seu rosto. Cabelos encaracolados (POE, 2011, p. 104).

 

O ser era um homem, não de estatura normal, mas pequeno e o interessante nessa construção é que ele usa o verbo parecer ["parecia"] no "pretérito imperfeito", para dizer que vinha de outras terras, que não se sabia que terras eram essas, ou seja, uma pessoa com essa aparência só poderia vir de um outro planeta ou de um outro plano, visto que a sua aparência mostrava algo de diferente do humano, seu nariz, olhos, boca larga, tudo aparentava um ar "sinistro" e outra coisa que chama a atenção era o riso irônico, pois o narrador diz que "dava essa impressão", então o seu riso era somente uma fachada ou uma forma de zombar. Tinha também bigode, barba, cabelos encaracolados e nada mais: seu rosto era uma completa escuridão.

 

Vestia um terno apertado, com cauda negra de pinguim. Sapatilhas achatadas. Para dizer a verdade, apesar do riso, o tal sujeito tinha um rosto sinistro. O andar saltitante, rodopiava aqui e ali, e não parecia ter nenhuma ideia a respeito do ritmo nos passos. Foi assim que se lançou num voo, exatamente para o alto do campanário (POE, 2011, p. 105).

 

Sua roupa era "social", seus sapatos, achatados, diferentes dos sapatos de um ser humano e ele não sabia andar. Seus passos eram saltos e rodopios, o que sugere uma forma de zombaria e, para completar, a figura dá um pulo além do normal e vai parar no alto da torre. O diabo revela-se aí com seus poderes sobrenaturais e nessa primeira imagem o ser permanece entre o que tira o sossego e a normalidade das pessoas. Sua aparência é como a de um "duende". Não se tem conhecimento dessa figura em nossa cultura, mas alguns elementos dela podem ser percebidas em outros personagens, como o riso e o jeito bagunceiro.

A segunda obra é O bom diabo, de Monteiro Lobato, que narra a história de um príncipe que no futuro deve morrer enforcado. Por esse motivo, ele resolve ir embora para não dar mais desgosto aos pais e morrer longe. Mas quando passa em uma capela vê a imagem de São Miguel e o Diabo quase apagado e resolve mandar reformá-la. Depois, vai para uma pousada passar a noite e começa a contar o dinheiro que lhe restou. Uma velha vê isso e resolve denunciá-lo como ladrão para ficar com o dinheiro. O príncipe é preso e condenado a ser enforcado, mas o diabo, por gratidão, salva o príncipe. O que interessa, aqui, é compreender a figura que se constrói do diabo nesse conto, bem diferente do diabo no campanário, mas que apresenta elementos que relembram o outro. Quanto mais vezes o físico for multiplicado, mais variações serão introduzidas. As diferenças são físicas em termos de codificação, mas cognitivas no que diz respeito à pessoa que produz o conhecimento (MINER, 1996, p. 33).

 

— Então, estás agora bonito, hein diabo?

— É verdade. Pintaram-me inteirinho.

— E não sabes quem consertou esta capela e nos pintou?

O diabo não sabia; o santo contou-lhe a história do príncipe que passara por ali, e disse mais que esse pobre moço fora preso, processado e julgado, e naquele mesmo dia ia ser erguido a uma forca por causa das intrigas de certa velha (LOBATO, 2002, p. 51).

 

Nesse diálogo entre o diabo e o arcanjo, este ironiza o diabo dizendo que agora ele estava bonito, pois sua pintura estava mais nova. O diabo concorda e quer saber quem fizera aquilo e, nesse caso, constrói-se uma imagem que o mostra fora da onisciência, ou seja, de saber das coisas que acontecem. A diferença, nesse conto, é que o diabo é apenas um ser "feio", então, por isso, o anjo contou-lhe quem fizera aquilo e tudo que tinha acontecido com o príncipe.

 

O diabo não quis ouvir mais. Pulou num cavalo e foi voando à casa da velha; agarrou-a e levou-a ao rei, fazendo-a confessar toda a sua maquinação contra o moço. O rei deu ordens para que soltassem o preso e o trouxessem à sua presença (LOBATO, 2002, p. 52).

 

O mais interessante é que o diabo não deixa o anjo terminar de falar e, simplesmente, sai de cena. De maneira diversa do outro conto analisado anteriormente, em que o personagem tem poderes sobrenaturais, este pula em um cavalo para ir em direção ao príncipe e o verbo "voar" pode ser entendido no sentido de rápido. Ao contrário do que se imagina sobre o diabo, que ele poderia saber de tudo, até mesmo das maldades que a velha fez e castigá-la, ele age como um ser humano e o príncipe não fica sabendo quem foi que o salvou.

 

Pelo caminho encontrou um fidalgo, ao qual contou tudo.

O fidalgo disse:

— E não sabes quem te valeu?

— Não sei de nada — respondeu o príncipe.

— Pois fica sabendo que foi o diabo da capelinha de S. Miguel, e esse diabo sou eu. No dia em que iam enforcar-te S. Miguel me contou tudo. Montei num cavalo e voei à casa da velha; agarrei-a e levei-a ao rei, para que tudo se esclarecesse. (LOBATO, 2002, p. 52)

 

O diabo vira um fidalgo, alguém muito chique, que aparenta ser bom e elegante e, como o príncipe queria saber sobre o seu salvador, ele se revela. Ressalta-se que a salvação foi feita pelo diabo e não, pelo arcanjo, demonstrando um lado seu, generoso, com as pessoas que lhe agradam.

Um trecho de A igreja do diabo, de Machado de Assis permite outras comparações:

 

— Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.

O Diabo sentiu, de repente, que se achava no ar; dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra (LOBATO, 2002, p. 3-4).

 

Na primeira frase do diálogo, o diabo revela-se como o espirito de negação: ele existe para ser o que nega tudo o que é sagrado. A seguir, sai da presença de Deus, voando como um anjo que rapidamente cai na terra, isto é, uma figura angelical que nega a Deus. O homem toma conhecimento do sagrado, porque ele se manifesta e se mostra como algo absolutamente diferente do profano. (ELIADE, 2010, p. 17).

 

— Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil e airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo... (LOBATO, 2002, p. 4).

 

E, por fim, ele desmente tudo o que falam a seu respeito, que não é aquilo que pintam sobre ele, que ele é um diabo gentil, fazendo, assim, sua defesa em relação à imagem criada para afastá-lo do coração dos homens como se fosse o próprio mal. No seu processo de busca de almas para a sua igreja o diabo apresenta-se como um ser que não tem poder algum e que não interfere na vida de ninguém. Quem escolhe o que deseja seguir é o próprio homem.

Nessa mesma linha de criação de uma figura, ainda que de forma meio mitológica e espiritual, encontra-se Macário,de Álvares de Azevedo, que também, a seu jeito, demonstra seu modo de ver o diabo.

 

Parece-me que não é a primeira vez que vos encontro. Quando a noite caía, ao subir da garganta da serra. (Macário)

Um vulto com um ponche vermelho e preto roçou a bota por vossa perna. (Desconhecido)

"Tal e qual — por sinal que era fria como o focinho de um cão". (Macário).

"Era eu". (Desconhecido) (AZEVEDO, 1988, p. 5)

 

Nessa conversa, que acontece entre o ser desconhecido e Macário, ele, ao ver o ser percebe que já o tinha visto, e o desconhecido se revela com um capuz na cabeça e passando pelas pernas dele, mas era tipo um vulto, ou seja, este é um espirito que sonda aqueles a qual deseja "possuir", mas Macário o sente quando ele roça a sua perna e o mostra que era frio quase ou igual a um fantasma. Assim como nas outras obras, ele sempre aparece como um desconhecido para se dar sempre o ar de mistério que o cerca, mas Macário pede que se revele e ele diz quem é.

 

Se não foi por artes do diabo, o senhor estava sonhando. (Mulher)

O diabo! (Dá uma gargalhada à força.) Ora, sou um pateta! Qual diabo, nem meio diabo! Dormi comendo, e sonhei nestas asneiras! Mas que vejo! (Olhando para o chão) Não vês?(Macário)

O que é? Ai! ai! uns sinais de queimado aí pelo chão Cruz! Cruz! minha Nossa Senhora de S. Bernardo! É um trilho de um pé... (Mulher)

Tal e qual um pé!... (Macário)

Um pé de cabra... Um trilho queimado... Foi o pé do diabo! O diabo andou por aqui! (Mulher) (AZEVEDO, 1988, p. 28)

 

Depois que se revela, ele faz com que Macário adormeça. Depois, Macário, em seu diálogo com a mulher, conta o que aconteceu e ela diz que poderia ser o demônio ou não, o que comprova a dúvida em torno da existência do diabo. Quando ele olha para o chão, vê a marca de queimado com forma de um pé de cabra. Segundo Brunel & Chevrel (2004) os elementos procedentes da Grécia ou da Roma da Antiguidade são também elementos 'estrangeiros'. Assim, um elemento mitológico nessa construção demonstra que a imagem do diabo se faz de partes de culturas como uma mistura de homem e animal e que deixa seu sinal de fogo.

 

Não é já cão; cães não têm esta figura. Então, que gênio mau, que horrenda diabrura hospedei eu em casa? Ui! Como vai crescendo! Que hipopótamo é este! Horrendo vulto, horrendo!

O recheio de cão cifrou-se nisso!

Um viajante escolar! Faz rir, faz. (Fausto)

È uma lei de espectros e demônios: sai-se por onde se entra; á entrada livres, forçado no sair (Mefistófeles)

Regulamentos até no inferno! Bravo! Então convosco, senhores meus, pode haver pactos? (Fausto)

— Aqui venho, entrajando à fidalguinha: capa de gorgorão, gorra enfeitada com sua pena de galo, e o coruscante chanfalho à cinta. (Mefistófeles)

Então já pode no pacto conchavar-se (...). (Mefistófeles) (GOETHE, 2004, p. 2004)

 

O trecho acima foi retirado de Fausto, de Goethe, e relata a história de um médico que fez um pacto com o diabo. O que se percebe nessa parte do texto é a descrição do diabo em sua aparição: primeiro ele surge de forma pequena, como a de um cão e depois vai se metamorfoseando. Há o uso de metáforas da figura do diabo, o uso dos poderes de se transformar e a mutação, por vezes, é um elemento mágico no texto, que o faz transformar-se naquilo que deseja. Como um estudante, mostra que veio ali e age daquele jeito, orientado por leis que regem os espíritos e demônios. Ele não rompe com as regras, segue-as, o que mostra um ser diferente dos outros que foram apresentados, já que para ele as regras devem ser cumpridas. Além disso, diferentemente dos outros, faz pactos para dar fama e prestígio. Observa-se que a figura do diabo aqui construída é a de um empresário designado para administrar o inferno. O que mais chama atenção está no trecho do "Inferno" de A divina comédia, de Dante.

 

Quem foi tão belo, quanto é feio agora, / contra seu criador a fronte alçando/ vera causa é solo mal, que o mundo chora. / qual meu espanto há sido em contemplado/ três faces na estranhíssima figura! (p. 261)

Via asas duas sob cada frente, / tão vastas, quanta em ave tal convinham/ velas iguais não abre nau potente. (p. 262)

O que esperneia em dor mais cruciante/ O mestre disse: "É Judas Iscariotes" / prende a cabeça a boca decorante (p. 263).

 

O que se vê é uma imagem monstruosa com três faces, dentes, asas, que não tem forma humana nem espiritual, mas é a de um ser que causa repulsa. Como é descrito, feio, digno de seu pecado, paradoxalmente, está lá para fazer sofrer aqueles que são contra a vontade de Deus, pois refere-se à figura de Judas Iscariotes sendo mastigado por sua horrível boca. Essa obra apresenta um demônio bem diverso dos anteriores: um ser defeituoso, que por se voltar contra Deus é jogado no inferno para fazer sofrer os que também são contra a vontade divina. Vale ressaltar que ele é feio por causa do pecado que cometeu, ou seja, adquiriu essa forma por causa de sua maldade. Pode-se afirmar, então, que há uma metáfora por trás dessa figura, mais ligada ao pecado.

Por fim, faz-se uma comparação de todas essas imagens com a Bíblia Sagrada para verificar até que ponto elas se ligam.

 

Estavas no Éden, jardim de Deus, estavas coberto de gemas diversas: sardônica, topázio e diamante, crisólito, ônix e jaspe, safira, carbúnculo e esmeralda; trabalhados em ouro. Tamborins e flautas estavam a teu serviço, prontos desde o dia em que foste criado. Eras um querubim protetor colocado sobre a montanha santa de Deus; passeava entre as pedras de fogo. Fostes irrepreensíveis em teu proceder  desde o dia em que foste criado, até que a iniquidade apareceu em ti.

No desenvolvimento do teu comércio, encheram-se as tuas entranhas de violência e pecado; por isso, eu te bani da montanha de Deus, e te fiz perecer, ó querubim protetor, em meio às pedras de fogo. Teu coração se inflou de orgulho devido à tua beleza, arruinaste a tua sabedoria, por causa do teu esplendor (Ezequiel cap. 28 vers.13-17).

 

Nessa passagem do Antigo Testamento a figura do diabo é extremamente bela e não tem nada a ver com as imagens que foram apresentadas acima. Mesmo que se pesquisasse outros trechos bíblicos que o descrevem, sua aparência seria totalmente diferente das demais. Nesta, especialmente, o que chama a atenção é o seu revestimento de pedras preciosas, que acentuam sua grande beleza. A única coisa que o faz ficar diferente é a sua prática pecaminosa e tudo isso em razão de sua beleza que o tornou um ser extremamente orgulhoso, expulso do paraíso de Deus. No entanto, nenhuma outra passagem bíblica relata que o diabo tenha uma determinada aparência.

A abordagem proposta neste artigo procurou apresentar e descrever a palavra em relação à palavra e à imagem, para percebê-la em um conjunto de relações que confrontam possibilidades de interpretação plural da palavra. Isso possibilita que a Teoria da Literatura amplie seu horizonte de uso a partir de uma metodologia comparada, que aproxime ou distancie obras literárias e até intermediar outras possibilidades de compreender a ficção.

  

O princípio prático sustenta que a comparação é exequível quando são identificados tópicos, condições ou elementos formal ou presumidamente idênticos. É claro que aquilo que é presumivelmente, mas não realmente idênticos. É claro que aquilo que é presumivelmente, mas não realmente idêntico logo trai a diferença. Com tato e sorte, no entanto, podemos descobrir que tal diferença é grande o suficiente para criar interesse, ou então que a suposta identidade é forte o bastante para sustentar a justeza da comparação. (MINER, 1996, p. 41).

 

Entende-se que a literatura comparada é uma ferramenta metodológica que permite construir diversas possibilidades de uso para o texto literário, pois defende uma renovação da Teoria da Literatura e vislumbra novas fronteiras a ser alcançadas pela literatura.

 

 

Considerações finais

 

O artigo apresentou obras da literatura nacional e estrangeira com o objetivo de refletir sobre a figura que se concebe do diabo, para assim perceber como a sociedade cria seus mitos e como faz para que tais representações evoluam ou até mesmo retrocedam ao longo de sua história. A literatura, como fonte criadora de mitos e heróis, age com muita força no meio social, fugindo assim do seu papel principal de diversão para mostrar-se como recurso de luta social ou mesmo de reflexão das variadas possibilidades da imaginação.

As histórias que se lê quando criança "penetram" no imaginário humano e ganham vida por meio da ficção. Ouve-se falar da imagem do diabo como um ser que tem chifre, rabo, patas de boi ou bode, o que, na verdade, não passam de meras representações que foram se incorporando àquilo que se acredita fazer parte do imaginário das pessoas.  

Refletir sobre isso é, talvez, um modo de mostrar que tudo sofre influência de elementos externos. No estudo comparativo entre as figuras do demônio, verifica-se o quanto elas foram influenciadas por mitos de outras culturas estrangeiras, incorporadas a novas características que fizeram do diabo um ser de mil faces, a ponto de não se saber mais imaginá-lo como um ser mau ou bom, pois sua imagem passeia entre o ridículo e o macabro e cada figura apresentada mostra um ser diferente em determinada época e cultura. Foram elas que criaram as várias visões que se tem do diabo. Cada uma delas reflete hoje as imagens que as instituições religiosas repassam aos fiéis ao longo dos séculos, como forma de evangelizá-los por meio do medo ou mesmo o que as pessoas têm em suas mentes como forma de reconhecimento do diabo. Portanto, refletir sobre o papel da literatura e mostrar essas várias possibilidades de criação literária é mostrar também o quanto ela recebe da sociedade, seus mitos e influências, e as desconstrói para criar os próprios mitos literários.

 

 

REFERÊNCIAS

 

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CARNEIRO, Fabianna Simão Bellizzi. A moral, o diabo e o fantástico no conto "Nunca aposte sua cabeça com o Diabo", de Edgar Allan Poe. Trabalho apresentado no II SINALEL, Simpósio nacioanal de Letras e Linguistica, I Simpósio Internacional de Letras e Linguistica, 2011.

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LOBATO, Monteiro. O bom diabo. In: Histórias de Tia Anastácia. 32. ed. São Paulo. Brasiliense, 2002.

MACHADO, A. M. e PAGEAUX, D. H. Da literatura comparada à teoria da literatura. Lisboa: Edições 70, 1989.

MINER, Earl. Poética comparada: Um ensaio intercultural sobre teorias da literatura. Trad. de Angela Gasperin, Brasília, 1996.

PELLEGRINI. Tânia.  A imagem e a letra: aspectos da ficção brasileira contemporânea, Campinas/São Paulo: Mercado das Letras e São Paulo: Fapesp, 1999.

POE, Edgar Allan. O Diabo no campanário. In: Histórias Extraordinárias. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 2011.

 

 

junho, 2016

 

 

Paulo Fernando de Sousa Pereira. Graduado em Letras, com habilitação em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Pará.

 

 

Francisco Pereira Smith Júnior. Professor Adjunto II da Universidade Federal do Pará.