©anna o.

 

 

 
 

 

 

 

Por ti Joan

 

 

Por ti Joan, desgarrei-me das tertúlias habituais, decidi andar nua até vestir o vermelho de seu refúgio.

Andei de costas para não perder a linha, a do teu horizonte, mas, perdi-me em tuas constelações. Vaguei por entre planetas, aves, cometas, o sol e a lua. Levitei até chegar no azul profundo, e fiz como falastes, para olhar tudo como se a primeira vez fosse.

E neste azul de tão descomedido, mergulhei e nadei com os peixes de Ezra Pound.

Voltei para buscar a força em tuas cores e elas estavam em tudo que tocastes, teu desígnio. Na composição de cada plano, signos silenciosos emergiram curiosos a me observar, convidaram-me a entrar e o maravilhoso estava lá... marcas do mago de Tinchebray, André Breton. Segui-lhe as pegadas que me levaram ao um mar de formas, curvas e linhas em metamorfose.

Banhei-me nos pingos e respingos lançados em queda livre dos versos de Paul Éluard: liberdade, com ela eu cismei, com a tua me encantei.

Por ti Joan, apenas para poder te encontrar.

 

 

 

 

 

 

Esferas

 

 

O frio assobiava enquanto o céu esfera azul agregava paisagens móveis. O sol brilhava intenso por entre as figuras que se movimentavam.

Figuras e mais figuras, tão iguais e tão diferentes que o céu esfera azul atento ficava. Na fronte de cada uma, sempre havia dois pontinhos embaixo de duas retas perpendiculares, com uma protuberância mais centralizada e, logo abaixo, uma abertura. Apreciava mais as figuras menores, as de múltiplas reações. Assemelhavam-se também a esferazinhas. E lá andava uma, mais outra. E aquela parecia expandir a pequenina fronte, emitia sons e gritinhos, apontava para tudo que chamava a atenção. Usava touquinha vermelha e segurava um balão verde, a mãe a pegava no colo.

Ao falar, a esferazinha percebeu o vapor que saía de sua boca:

— Ráaa, ráaaaaa.

Aos gritinhos, ria e repetia:

— Ráaaaaaaaaa.

E de pura alegria palminhas batia. Nem percebeu a fuga do balão verde que para o alto seguia.

O céu esfera azul recebeu o balão como presente, percebeu que havia muito ouro e que estes estavam lá embaixo a brincar.

 

 

[Poemas do livro Sob as cores de Miró, 2015]

 

 

 

 

 

 

Dança do Outono

 

 

Castanha, bordô, ginger

Como os cabelos de Morrígan,

Adormecida

Benzida em brumas de orvalho,

Nas saliências das raízes,

Nos braços da terra

Um tapete de Klimt.

Leve sopro para levitar

Castanha, bordô, ginger

Balançava como os cabelos de Morrígan,

Estremecida

Esquecida das brumas e do orvalho,

Fora das saliências das raízes,

Olhava o tapete de terra

Sem os braços de Klimt.

Movimento para rodopiar

Castanha, bordô, ginger

Emaranhada nos cabelos de Morrígan,

Embevecida

Aquecida sem brumas e orvalho,

Longe das saliências das raízes,

Tapete de poeira a abraçar a terra

E lágrimas de Klimt.

 

 

 

 

 

 

Asas negras

 

 

Quando se abriam, asas negras doces cílios,

Batiam leves nuvens sonhadoras.

Asas negras no rasante,

Acendiam chama do instante,

Planavam nas sombras, ora triste navegante,

Desvendavam cores, ora ser flamejante.

 

Quando se fecharam, asas negras doces cílios,

Flutuaram leves sobre nuvens redentoras.

Asas negras no horizonte,

Ascenderam às brumas além do instante,

Planaram nas luzes, ora etéreo viajante,

Desvendaram o girar dos sóis, oro... para ser pujante.

 

Quando... cerra cílios,

Toma asas, abre Eterno,

Asas negras... doces.

 

 

 

 

 

 

Escultura II

 

 

Flutua neste salgado líquido por grotas abissais

a tua náufraga figura,

Flutua em silenciosas aberturas, o esmeril, o formão, a goiva e o macete

em tua nau figura,

Flutua nas escavadas artérias a dor

por tua figura,

Flutua a tristura entre os sulcos sombrios

com a tua,

Flutua a verdade oculta de entalhe profundo,

toda tua.

Flutua raspas do legado nos veios rasgados que continha esta ilusão,

toda minha.

Flutua

escultura

tua.

 

 

 

 

 

 

Sangue Violeta

 

 

Benditos eram os meus frutos,

Malditos, são todos vocês!

Ando a cuspir fuligem,

Tilintar rabugem e açoitar o vento

Lamento vestiu em braços frios, agora vazios

Uma vida vestida de órfã, que me abraçou incólume.

A penúria é da fera, e ela se deitou aqui

Ao lado do sepulcro aberto,

De terra partida e ventre rachado

Ainda exangue coalhado em dor.

Tragédia não sussurra, urra

É rédea  que encurta o passo, engole o lastro e mutila o querer.

Benzer um filho, que no esteio veio á luz, para sem rodeio jogá-lo à vala rasa?

Há flores nos caninos que teu olhar ferino dissimulou,

Capitulou teus desígnios em mim.

Há muito mais do que matar ou morrer

Logo, não velarei por ti

O si repousa nas nuvens, onde restou apenas dó

Daquele velho piano.

O sangue nas folhas ainda alimenta algumas raízes

Mas, meu sangue é violeta

Asas de borboleta.

 

 

 

 

 

 

Partículas para Sklodowska

 

 

Partícula I: Saudades

 

 

Força de tração

Ato de trabalho

Luta inglória

Contra a lei

Gravidade

Da ausência

 

 

Partícula II: Queda Livre

 

Subtraindo a inércia

Saindo do binário

Caindo em si

 

 

 

 

 

 

Imprecisa

 

 

Entre rios e montanhas,

Curvas e declives,

Corre imprecisa,

Imprevista,

Seria bonita?

Um jogo de luzes e sombras?

Haveria um rumo

ou apenas o prumo?

Capim de devaneios a esperar

a poda da ilusão?

Sei não...

Quem foi o artesão

que entre rios e montanhas

fez-te correr

nas curvas e aclives

imprecisa e bonita

no imprevisto jogo de

luzes e sombras?

 

 

 

 

 

 

Afecto

 

 

No sepulcro dos afetos

Os santos estão de costas

Em rigidez e frio perpétuos

Sentimentos pétreos em crostas

Flores ornam secas

Lágrimas sem sal

Gravam a lápide de adeus

Véu de silêncio

Vazio está o túmulo

 

 

 

 

 

 

A Ceia

 

 

Risos, sorrisos

Sem crivo do juízo

Olhares de ternura, desejos com fartura

Sem entrave da usura

Toda essa mistura

Para feitura do pão partilhado

Mesa farta de sonho constelado

Banquete consumado

Do pão restou fatia

Fração da relíquia que pendia

Pedaço que confirma a profecia

Para todo aquele que come e se sacia

Jamais venceria

O refrão da canção que arderia

Saudades que a ceia alimentaria.

 

 

 

 

 

 

Piano

 

 

Piano I

 

Andante sigo

Compasso simples

Hora staccato

Hora legato

Fortíssimo sinto

Pianíssimo fico

Ritardando necessito

Pausa

A Tempo Primo volto

Ao acorde allegro

Para continuar Vivace

Andante sigo...

 

 

 

Piano II

 

 

Maestoso dormes

Toco-lhe con amore

Acordes...

Arpejo suspiros

Adagio respondes

Largo me olhas

Compomos con fuoco

 

 

 

 

 

 

Cenários

 

 

"No alto da Compadecida", "Na longa jornada noite a dentro",  cansou de ficar "Esperando Godot", deixou uma caixa, um bilhete e um ramalhete.

Saiu ouvindo rap. Partiu num "Bonde Chamado Desejo", ensejo de diversão para os "Mistérios de Irma Vap".

No bilhete: "Deus lhe pague", foi só "Um beijo no asfalto". "Salomé".

E o ramalhete ?  Coisa para "Pequenos Burgueses". 

Na caixa: um "Vestido de noiva".

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Lia Finn. Natural de Passo Fundo (RS), reside em Curitiba (PR). Graduada em Psicologia, pós graduada em Psicodrama e especialista em Neuropsicologia atua em psicologia clínica.Como escritora e poeta participa de grupos literários desde 2010. Da paixão pela neuropsicologia e a arte criou a oficina de poesia Poesia em Neuroimagem. Sob as Cores de Miró, Contos, Poesias e Palimpsestos ( 2015, Arte Editora) foi a obra escolhida para ser a sua primeira publicação, que traz também seu trabalho nas artes plásticas com suas ilustrações.