~

 

 

Minha vida foi parar em outra galáxia

e escrevo para resgatá-la.

Mas entre mim e a vida

havia quem acreditasse

que as coisas que pensa

pensa por si próprio.

 

Seria um obstáculo.

Não falasse eu que ninguém pensa

por si próprio

não tinha que me fazer explicar

com minhas calças vermelhas

meu casaco monogramado

R. de ressentimento

esburacando a minha língua.

 

É a explicação a origem

do buraco negro

em que estamos.

No buraco negro

deslizam as paredes

se as tentamos agarrar 

quando chegamos nisso

que não há.

 

Como chegamos lá?

Ao morrer. Você morre

e sua matéria

fica na terra, certo?

Ou se dissipa no fogo

a matéria do teu corpo.

Aquilo em ti que te anima

o cão da tua respiração

a faca que são teus olhos

teus cabelos, teus corvos

aquilo que morde a tua dentição

e vibra fibra músculo enfim

a tua alma mesmo

e tudo aquilo que é invisível em você

é tragado (invisivelmente)

para o buraco negro.

As cáries, os pergaminhos egípcios

as colheres que você entortou abrindo latas

não. Isso definha na terra.

Sete palmos.

 

 

 

 

 

 

memória escolar

 

 

Foi preciso chamar a atenção das crianças

que descascavam as laranjas com facas sem corte:

as atividades no pomar têm limites

não se ponham a arrancar as ervas do chão

como meninas desprezadas e raivosas.

 

Depois de uma ciranda

é proposto pedagogicamente

que se faça um desenho

feito um contrapeso

do que a nossa cabeça pensa

as crianças todas riem de satisfação

 

mas o menino mais novo, um cata-vento

trazendo o cheiro do laranjal,

veio na direção do meu amigo Lero - - - o guindaste

e disse pra ele que não dava pra jogar aquele jogo:

— é a cabeça que pensa ou é o corpo inteiro?

 

O Lero que era só corpo

o Lero que não lia Sontag

bem, o Lero quando se agitava

a gente ia junto pra praia

ele imensão pegava os prédios em redor

com a sua garra

pegava as pessoas e as barracas de sorvete

arrancava as pedras do calçadão

tirava de mim toda essa lembrança

e lançava ao grande verde

 

feito tudo fosse aquário cheio de peixes

que um dia se descobre decorativo

e afunda no meio da água do Atlântico

silêncio violento que se ouve do cais

e os peixes libertos todos

se põem a contar notícias de além-mar.

 

 

 

 

 

II

 

 

Meus lábios estão partidos e acho que me apaixonei.

Preciso fazer uma lista das coisas que me importam e dar pra ele.

Abacate com limão ardeu minha boca.

A água do banho estava quente e queimou meus pés.

Nunca ganhei um anel de alguém, ao que parece, ainda estou livre.

E se um dia nosso amor me encher de dúvidas, não saberei como resolvê-las.

 

 

 

 

 

 

VII

 

 

Sou apenas um cavalo

o mundo não vale o mundo, meu bem

no entanto, é ele quem me leva.

 

O cavalo (que vive por mim) abre mão

de ter cascos, patas, coices,

mas de correr no sol, não.

 

E quando alguém sonha e confunde

o amor comigo, comigo o amor

infundido, infindável, é o cavalo.

 

 

 

 

 

 

IX

 

 

Passo a manhã calculando a provável altura de um tsunami

que viesse por debaixo do morro, me encontrasse sentada

nesta porta de varanda sobre o Tejo.

Não sei, mas já me aconteceu outra vez.

A onda atravessará os homens pela minha face

fazendo das raízes turbilhão. Os versos também

se fazem assim, procurando

o caminho por onde não podem passar.

Você também tem um canyon escondido? Sabe como é

uma terra que se abre em duas e entre elas voam uns pássaros

e nascem coisas

                                               meu rio de sóis,

eu cego o pássaro do rio pra que ele não veja por onde nos leva.

Todo rio tem um pássaro que vive em si e eu o cego sempre.

Eu cego o pássaro de riso pelos teus olhos que se fecham.

Monto no rio, meu pássaro selado e cego, sem remetente.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

Procuro no vento

a consciência das plantas.

Noto que o que se eleva

tem raiz. Recuo mil anos

para afirmar: mil anos!

E conquistar

o silêncio? Adiante.

Se está em algum lugar

a experiência dos deuses

mora nas frutas.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

Os livros são de natureza mineral.

Alguns bebem-se outros se proliferam

como água. Outros pedra, não fruta

rocha de onde brota a tua pele.

Passa por cima uma formiga.

Há capins vibrando

vento e sol com sombra

o musgo cresce, um mosquito

entra na tua boca e você cuspindo

cai na água que alguém

numa cidade adiante

distante, talvez

sem mágoa

vira a página

bebe.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

Foi-se o tempo

em que confundi ação

com a fúria do movimento.

Arrancava lascas dos pratos

quando os punha a secar sem jeito

com o que é celestial.

 

A calma

ou o agora que tudo concede

lento, tão lento

tudo cresce e permite

sentir a espessura da língua

como pedra de sal entre os dentes.

 

Visitei o encontro entre dois oceanos

tanto fundo vi no azul

que o sal respingou meus ossos

me marcando feito gado.

Uma besta intentou fugir, mas senti

os braços como galhos

de um velho carvalho

enraizado e que não considera

mudar de rumo.

 

Cativa, tua árvore dá madeira

para a minha vela ao vento.

Onde que te encontro?

Se chacoalho dentro

dos meus frutos.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

Manadas abrem com fogo os caminhos.
Vão matar aquele que proferiu
a palavra animada. Vai morrer
aquele que falou.

Há séculos árvores se matam
pelas impressões dos que dizem.
Há séculos morrem pelos verbos.

Carregado entre as tochas
vem aquele que só teve ouvidos
O silêncio
entre assobios de pássaros
é um dos nossos profetas:
e como um astrólogo
entre os ritmos dos astros
entre as rochas, falou:

sois gastos como os troncos na rua
meio podres. As chuvadas
vão levar abaixo
os cabos elétricos!
abaixo os vizinhos!
abaixo os jornais!
abaixo os compartilhadores!
abaixo!
os que mantêm vivas
as informações proliferando!

E quando diria:
abaixo os instrumentos!
Veio a palavra, o enredou
estava humano: 
teve compaixão. E matou.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

O futuro? Tem orelhas,
mas é surdo. E é manco.
Se arrasta, sem espanto
mais alheio do que lúcido
com o nosso despreparo.

Se fosse um deus amava o humano, mas como não existe
o futuro tem de amansar seus ventos, marcando as peles,
as montanhas. Sendo um gênio, não é um exército
de cronogramas, nem de antecipações.

Tem firmeza de flor. E é
invisível, reconhecido
por seus efeitos de brisa
furacão. Nunca adiado.

Não tem nada a ensinar
no entanto é um mestre
dizem os esgrimistas
os observadores de saltos
os gatos também
aprendem certos truques com ele.

E se ama os despreparados
lhe sabem tanto os que fazem
quanto os que esperam.
Os otimistas valem mais
valem quanto?
Cem bifurcações,
sucessivas gerações
de bem-aventurados
que topam em pedras
cicatrizam e correm
bem alimentados
com fome de mais
alimento.

São seus sinais
os imprevistos, os cavalos
os pontos cardeais
os cinco sentidos
e os sete buracos da cabeça.

 

 

 

 

 

 

XXI

 

 

O céu que nos prometa um ano bêbado

sem por enquantos

um ano que diz ENTÃO MOSTRA

e sacode feito leitoa as tetas que caem

são nuvens

de uma chuva dramática e sem aprendizagem.

Eterno ser sem se apropriar

da impossibilidade de organizarmos

em formas calmas, permanentes, necessárias

tanto você como também eu

ou nós podemos pular e estaremos no alto

através dele, este céu que nos promete

Sou eu o messias e anuncio

mais uma rodada de anos

bêbados.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

É preciso recriar o acontecer.
Dispor de lãs para o inverno
ouvidos para as mensagens
e peles para marcar os sinais
com a ponta do dedo em brasa.
É preciso saber
as regras dos jogos
como extrair os venenos
e que palavras abrem portas
nas orações que ainda não foram compostas.

É preciso retomar a saída da cidade
alimentar os estrangeiros chegados na madrugada
e que depois de terem os pés lavados
acenderam suas fogueiras.
Fornecemos mais do que gravetos e faíscas em gel
mas também papel para que ardessem
ou escrevessem as técnicas de suas civilizações
nas quais o vento tem outros significados
pois as asas de seus deuses batem desde o oeste
e por aqui todos sabem que os deuses vêm da América do Sul.

Os estrangeiros às vezes têm ideias estúpidas
mas não vamos protegê-los de si mesmos
preciso é retirá-los de perto da falésia
para que não caiam nem decidam partir.
É preciso dar a eles a agricultura
pois são o ventre deste país
embora não saibam trazer a chuva
pelo menos respeitam as pragas
e evitam as devastações.

É preciso aquecer os músculos e hidratar a garganta
dar escudos duros e afiar as lanças dos que combatem
protegendo as pedras que dão água.
É preciso não salvar os mortos
mas limpar as ruínas de suas guerras
sem arrancar as ervas daninhas.
É preciso fornecer plantas para a sombra
e luzes no lugar dos olhos
daqueles que perderam a cabeça.
É preciso acolher os feridos
e deitar sal e cinzas
nos seus ferimentos.
É preciso acalmá-los.
E acalmá-los é dar guarida ao breu em que estão.

 

 

 

[imagens ©andrew mcgibbon]

 

 

 


 

 

 

 

Júlia de Carvalho Hansen (São Paulo, 1984) é poeta, astróloga e uma das editoras da Chão da Feira. Estudou literatura na Universidade de São Paulo e na Universidade Nova de Lisboa. Tem livros publicados no Brasil e em Portugal, sendo o mais recente deles Seiva Veneno ou Fruto (Chão da Feira, 2016).