Córrego, junco, pedra

 

 

1/

 

 

Na viagem de carro para as Astúrias, parou na berma da estrada. Desligou a luz dos faróis, e abandonou o veículo, muito atento. Acabara de cruzar uma ponte de pedra, portanto, supostamente, deveria existir um rio ou córrego no fundo do vale. Com uma pernada alta, transpôs o rail da estrada, e começou a descer por um picadeiro entre as silvas, carregando-a consigo. Em poucos minutos começou a ouvir os lamentos sussurrantes da água entre as rochas, e avistou de imediato a água do córrego, prata estanhada sob a luz da lua. Parecia-lhe um lugar tão bom como qualquer outro para a afogar, existia mesmo uma certa beleza diáfana e poética naquele fim, e por isso arrastou-a para dentro do leito do rio, adentrou-se na água até ela chegar-lhe aos joelhos — álgida como o luar — e foi então que tentou matá-la, rodeou-lhe o pescoço com o braço sinistro enquanto a sua mão dextra empurrava para baixo a sua nuca, ela esperneou e debateu-se até conseguir libertar-se daquele amplexo e respirar à superfície, arquejante, e logo ele lutava com o seu corpo para o sujeitar e empurrá-lo para debaixo d'água — Porque é que nunca morres quando preciso que morras! — rosnou, iracundo. Mas ela respondia como movimentos ofídicos do seu corpo, ondulava e serpenteava entre os seus braços e mãos, fugia ao peso do seu corpo, e sempre conseguia libertar-se, evadir, respirar o ar, era mais resistente e mais astuta do que ele, e era essa a sua força. Ele não desistiu enquanto sentiu uma réstia de energia e determinação, enquanto as suas forças não eram sugadas por ela, lutou e batalhou até ao limite, e nesse instante, foi a força dela que sobreviu e se agigantou, a dominá-lo enquanto ele se sentava na margem do córrego, numa fímbria de seixos pequenos e cinzentos, exausto e em desalento. Deixou-se estar sentado, de olhos baixos, sem forças, derrotado, alguns instantes, minutos, horas. Por fim, levantou-se e tomou o caminho de volta para o carro. Tentara afogar a sua dor, e fracassara. Agora sabia que ela, consciente da sua força, continuaria consigo até o submeter por completo, e apresentar-lhe um fim e um repouso que ele abraçaria com alívio.

 

 

 

2/

 

 

Vamos fazer de ti uma mulher, mas uma mulher piedosa, disse a Madre do colégio católico para a menina de tranças e sardas que entrara no gabinete pela mão da mãe. E a menina concordou, e adequou-se ao ensino austero e antiquado daquele colégio com a docilidade vegetal de um junco a dançar na corrente de um rio. E depois das freiras e das Madres, vieram os professores e professoras do Instituto, e o professor de cítara, e o seu confessor que lhe dava aulas de latim. Vinte anos depois da sua data de nascimento, continuava a oscilar o seu corpo no leito do rio, com as suas folhas frágeis a fazerem o mesmo na corrente etérea da brisa. Ela foi sempre o que os outros queriam que ela fosse, aluna, menina de coro, amante, brinquedo, meretriz. Quando quiseram que ela se casasse, ela acatou a decisão, e celebrou-se a cerimónia com um noivo que servia os interesses financeiros dos pais. Ao seu marido, pareceu-lhe que a sorte lhe caíra no regaço, uma noiva de uma família conceituada, dócil como uma odalisca enclausurada, e uma mansão para habitarem que se semelhava a um castelo gótico. E a jovem mulher, por acidente ou por desígnio do seu destino, enfrentou o que nunca antes se atrevera a enfrentar — a sua imagem num espelho. Quando se viu refletida pela primeira vez num vidro, estilhaçou-se a pessoa artificial que os outros haviam criado com as suas vontades e os seus desejos, e então ensurdeceu, literalmente e por completo, deixando de escutar pedidos e ordens. A sua surdez ditou a sua rebelião, para com o seu marido, a sua família e o mundo em que vivia, e abandonou a casa sombria onde a sepultaram, nos braços do primeiro amante que escolheu pelos ditames do seu próprio desejo. A sua partida foi atenuada pelos pais e pelo marido com o rumor inventado de que enlouquecera e fora internada num hospício, o que não era de todo um absurdo porque ela fora tomada de uma loucura nascente análoga à de um rio que galga as suas margens e cava um leito novo sob os céus, ébrio da liberdade de desconhecer o destino que o espera.

 

 

 

3/

 

 

Rui telefonou à sua mãe para a avisar que iria passar por casa dela, mas ninguém atendeu. Ficou ligeiramente preocupado, ou aparentou estar. Frances, a mulher, disse-lhe que não era caso para isso, as pessoas nem sempre estão em casa, aliás, passam tanto tempo na vida fora de casa que a sua casa acaba por ser o mundo. Rui pareceu achar a explicação satisfatória e não falou mais no caso. No dia marcado para a visita, ou que tencionara marcar com a mãe, pegou em Frances e na filha Íris, e apareceu à porta da casa dela, e o Rui bateu à porta com os nós dos dedos. A mãe apareceu e fez-lhe uma festa, abraçou-o com força, deu-lhe beijinhos nas faces barbadas, e esfregou-lhe as palmas das mãos nas suas orelhas (afago de que Rui nunca gostara); e Rui apresentou-lhe a família, que ela não conhecia. Frances é bonita, disse a mãe, e tem bom coração, que é o melhor tipo de beleza que uma pessoa pode ter; e Íris… a mãe ficou sem palavras para falar de Íris, podia descrever a sua beleza ou as suas parecenças com o avô, mas chorou apenas, umas lagrimazitas de emoção, contidas e embaraçadas. Entraram. Frances falava mal português mas conseguia captar o que Rui e a sogra lhe diziam. Tinha de te trazer a Íris, disse o Rui à mãe, não a conheceste, e isso fazia-me sofrer, e a mãe abraçou-o em resposta, emocionada e feliz. Rui mostrou à esposa o seu quarto de solteiro, a guitarra a guardar o seu lugar em cima da cama, posters nas paredes, dos Pink Floyd, Kiss e Depeche Mode, os álbuns de vinil acondicionados em caixas de cartão ao lado da antiga e empoeirada aparelhagem stereo, fotos antigas dele de cabelos compridos e bigode farfalhudo como se pertencesse a alguma banda de rock. Quando passaram à sala, a mãe tirou os lençóis que cobriam os sofás para eles se poderem sentar, e mostrou a Frances a sua coleção de louça portuguesa, espólio de que se orgulhava muito — pratos, travessas, bules, galheteiros, molheiras, Cavalinho, Sacavém, Bordalo. Íris escapuliu-se para o jardim, abraçada a uma boneca que a avó lhe dera para as mãos, e Rui seguiu-a. Íris era meio maria-rapaz, trepou para um ramo baixo de uma oliveira centenária, e sentou-se nela a embalar a sua boneca-bebé. Mas cansou-se de ficar quieta e começou a correr pelo jardim, seguida de perto por Rui. Cruzaram a álea de choupos desgrenhados, brincaram às escondidas entre as sebes de arbustos que há muito tempo não eram cortadas, e por fim pararam um pouco a descansar. Rui sentado num banco de jardim já meio carunchoso, e Íris com as costas apoiadas a uma pedra no meio de punhado de camélias, a pentear os cabelos da sua boneca com os dedos da mão a servirem de pente. A pedra a que estava encostada na sua inocência, não era uma pedra qualquer, era uma lápide sepulcral insculpida. Frances também percebeu isso quando se aproximou deles, ladeado pela sogra, mas Rui encolheu os ombros, desvalorizando o embaraço da situação; mas logo Íris recomeçou a correr, a chamar a mãe aos gritos enquanto procurava a oliveira onde antes se empoleirara. A mãe de Rui sentou-se ao seu lado, e passou-lhe o braço pelos ombros.

— Aqueles canteiros toscos gravaram mal o mês em que faleceste — lembrou Rui.

A mãe soltou uma risadinha bem-humorada.

— Que importância tem isso? Eu não estou sempre aqui quando precisas de mim?

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


José Eduardo Lopes, nascido em Moçambique, vive em Portugal desde os 13 anos. Gosta de se considerar um CONTOador de histórias, e fora isso, não há nada que lhe ocorra acrescentar à sua biografia, atendendo a que um autor escreve com a sua vida, e tudo o que não se consiga descortinar sobre ele nos seus textos pertencerá porventura à mais pura das ficções. Várias das suas histórias estão aqui: caminhoarduo.blogspot.pt.