Gertrudes e eu

 

 

Quando nasci Gertrudes, mirei um horizonte dourado sem depositar fé.

Ali, logo ali, o nada se faz muito.

Ali, logo ali, os anos enterram-se em segundos.

Ali, logo ali, sentada em chão batido, descasco batata-doce para dar

de comer.

Ali, logo ali, há um mundo doce igual à batata-doce que Gertrudes descasca.

Ali, logo ali, Gertrudes e eu descascamos a vida com as mãos.

Ali, bem ali, somos somente eu e Gertrudes

Gertrudes e eu.

 

 

 

 

 

 

Pedaços de mulher

 

 

Por favor!

Ajude-me!

Preciso. Juntar. Os pedaços. Que partiram.

Essa mulher.

Juntar. As partes. Que se partiram. Da placenta. Que pariu.

Essa mulher.

A recolher. O naco. Abocanhado. Da maçã. Que desgraçou. A Eva.

Da mulher.

Ajude-me!

A levantar. O pedaço. Da mãe. Que pariu. O filho. Que partiu. O coração.

Dessa mulher.

Da menina. Da filha. Da esposa. Da idosa. Que se soltou.

Dessa mulher.

Por favor!

Ajude-me!

Juntar.

A fatia. Da senhora. Que ficou. Atrás. Do fogão. Do tanque. Da cozinha.

Da lavoura. Atrofiando.

Essa mulher.

Aqui.

Agora.

Preciso!

Juntar. As cinzas. De Joana D'Arc. Que queimou. Essa mulher.

Juntar. A porção. Frida Kahlo. Que partiu. Essa mulher.

Juntar. As partes. Da Macabéa. Que estrelou. Essa mulher.

Juntar. O impulso. De Cristina César. Que suicidou. Essa mulher.

Juntar. A coragem. Da Maria Helena. Que suscitou. Essa mulher.

Preciso.

De ajuda.

Para recolher. As metades. Das metades.

Dessa mulher.

Preciso.

Grudar. As paredes. No teto. Para proteger. A alma.

Dessa mulher.

Preciso.

Já.

Juntar. O já. O quê. Do já que. E formar. A Jaque. Que constitui.

Essa mulher.

Preciso.

Juntar. As figuras. Do quebra-cabeça. Que se transforma. Na figura.

De mulher.

Juntar. As partes. Da beata. Da virgem. Da filha. Da santa. Da outra.

Que origina.

Essa mulher.

Ajude-me!

Juntar. As partes. Da louca. Da lésbica. Da viúva.

Que se faz.

Mulher.

Preciso.

Juntar.

Os fragmentos. Disseminados. Na vida. Dessa mulher.

Ajude-me!

Preciso.

Juntar. As migalhas. Que se perderam. Dessa mulher.

Juntar. As migas. Partilhadas. Por essa mulher.

Juntar. Os bocados. Repartidos. Dessa mulher.

Juntar. Os frutos. Gerados. Por essa mulher.

Juntar. As sementes. Disseminadas. Por essa mulher.

Juntar. Do que existe. Do que falta. Do delicado. Do essencial.

Da mulher.

Preciso.

Imploro!

Ajude-me!

Juntar. As partes. Do feminino. Do feminista. Do novo. Do forte. Do gênero.

Que nomeiam.

Essa mulher.

Socorro!

Por favor!

Preciso.

Conseguir.

Juntar. Os gritos. Do choro. Das angústias. Do sofrimento. Que partiram.

Essa mulher.

Juntar. Os suspiros. Dos orgasmos. Da saudade. Das paixões.

Que se perderam. Na vida.

Dessa mulher.

Por favor!

Imploro!

Ajude-me!

Aqui!

Agora.

Porque.

Preciso.

Urgente.

Juntar.

O tudo.

De todas.

Para fazer.

O todo.

Do Eu.

Mulher.

 

 

 

 

 

 

 

Transmudação

 

 

Quem trouxe este vento foi a hora.

Estas gotas de sangue são de alguém que se esqueceu de mim.

A hora? Não sei quem trouxe...

Mas sei que alguém ficou porque o vento não quis trazer.

O choro que ouves, não veio comigo.

O vento, sim, e cortou a alegria que não estás a ver.

No caminho perdi os sapatos e também a outra metade do sorriso.

As vestes que me vestem alguém se atreveu a me vestir

quando me encontrou nua, mas o meu corpo perdi no asfalto molhado.

A sombra de mim sempre me segue e o seu olhar também.

Quem não veio foi minha boca porque preferiu ficar junto ao corpo.

Tem esse sopro de inteligência que transmuda minhas verdades

como se elas ainda existissem.

Com os ombros que não me sobrepõem mais, larguei meia dúzia

de suspiros enfraquecidos pelo suor derretido em jornadas estreitas. 

E o vento me confidenciou que hoje vai partir e levar a hora

e não mais me levar como se isso fosse levado em conta.

Preciso urgente de um relógio e de um novelo de linha.

Os vagalumes vigiam a hora que deverá partir com o vento,

despedindo-se de mim a favor do tempo.

Se alguém quiser me perdoar, me perdoe doando-me um moinho

de vento, que devolvo o relógio que ainda não é meu, porque a hora

me revelou que chegou a hora de partir.

Das minhas origens, só sei que fui parida de um cacto

e é por isso que sinto sede de mãe seca.

 

 

 

 

 

 

Transmutação

 

 

I - Vidas secas ou anjos ausentes de asas?

 

Desprenderam-se as últimas folhas das árvores,

junto se foram anjos virtuosos que pousavam ali.

Não havia mais cor que os acobertasse.

Voaram rumo a um destino incerto,

restando somente a imagem da planta seca,

enervada de dedos secos apontados para o céu.

Terra seca também morta,

sem nervos para a salvação.

Decerto restava um par de olhos,

que, desconfiados de fé,

lançaram-se em busca de água.

 

 

II - Viver não é preciso. Morrer é preciso.

 

 

Foram os olhos molhados das crianças que secaram minhas tetas.

Sou agora a Vitalina que encarou os demônios de frente,

dinamizando os brotos da árvore.

A esperança ainda me converte.

Porque morrer é preciso. Viver não é preciso.

 

 

III - A natureza interpõe um milagre

 

 

Se tive sorte, ninguém pergunta.

O que se vê é o torto do que foi ontem.

O que sobrou foi a soma dos anos padecidos

(ou será — anjos empobrecidos?).

Alguém já se atreveu e falou em milagre.

Mas se, por não compreender, você me perguntar, responderei:

Foi somente Vitalina que fez as pazes com os diabos dos anjos.

 

 

 

 

 

 

O fio de Ariadne

 

 

no mundo em que nasci

tem essa coisa de se fiá

na trama dos fio

sinto um arrepio

e tramo sem cessá.

fio de natureza morta

de urubu saciado

e às vezes de lagarta torta

e se enosá os fios

qualquer merda dá.

fio de faca afiada

jogo com cartas marcadas

ganhando ou perdendo

saio sem piá.

fio de sabonete

muitas vezes de alfinete

e outras de agulha

enfio o fio lá.

enfio minhoca viva

em anzóis enferrujados

e bem de fininho

saio pra pescá.

das vezes que me distraio

é de soslaio que saio

sentindo meu fiofó assobiá.

de labuta caio na rede

feito peixe morto de sede

presa de garça faminta

a me entrelaçá.

nesse mundo que nasci

se fiá é de amargá

se me fio me fodo na teia

e se não fio

alguém me toma para me desfiá.

no tecer dos fio

sou apenas Ariadne

tentando abotoar a blusa

que acaba de tricotá.

 

 

 

 

 

 

Vida de Marina!

 

 

Acorda na relva

num amanhecer tênue.

Das fundas tragadas de ar fresco

desenrola pensamentos lentos

alinhados em rugas de desgraça.

Seis tostões por companhia

e um corpo embevecido

de orgasmos vendidos

nas noites sem fim.

Largada em sua nudez,

retorna a adormecer

desanuviando-se de pesadelos reais.

Talvez espere o pôr do sol,

para lhe trazer a vida,

por ora desfalecida.

Protagonista:

— Vida da puta?

— Puta da vida?

 

 

 

 

 

 

O mundo de Madame

 

 

Madame sonhou que pariu o mundo e o perdeu.

Madame sonhou que saiu desesperada pelas ruas da cidade procurando seu mundo perdido.

Virando a esquina da Socorro, Madame encontrou seu filho perdido.

Madame correu com seus braços abertos de mãe para abraçá-lo e envolvê-lo

em seu peito inflamado.

Madame sonhou que chorava enquanto transportava seu mundo para casa.

A casa grande e confortável da Madame.

Madame, com delicadeza de mulher, despiu-o de sua roupa suja colocando-o na banheira entre sais e espumas e lavou a sujeira que acobertava seu mundo.

Madame sonhou que encontrou o mundo que pariu.

Como uma mãe amorosa, abriu os olhos fechados do filho para sua mãe.

Com mãos macias de mulher, limpou seus ouvidos, escovou seus cabelos e ensinou-o a sorrir.

Madame sonhou que estava radiante por resgatar seu mundo perdido.

Acomodou-o em seu berço aquecido, acariciou seu rosto cantando cantiga de ninar.

Madame vigiou o sono do mundo.

Deu-lhe um beijo na testa e fechou a porta do quarto, bem de mansinho, para não acordar seu mundo adormecido.

Madame sonhou que fazia um juramento para seu filho amado, deixando a segurança que amanhã, quando ele acordar, estaria ali, ao seu lado.

E Madame despertou de seu sonho;

saiu dos lençóis brancos,

tomou ducha quente,

vestiu roupas confortáveis,

tomou seu café matinal,

va-ga-ro-sa-men-te

e saiu à rua

para levar

seu poodle a passear.

 

 

 

 

 

 

À Sombra de Clara

 

 

 Eu sou. Não, não ouso dizer. Não sou, eu estou. Sim, me olho e não me vejo. Não, nem me olho mais e não me enxergo mais. Tenho um nome.

Sou...

Viu? Nem ouço mais de mim, quem sou. Ninguém ouve porque não ouso dizer. Não sou mais alguém e nem ninguém. Essa condição de não ser é que me tornou o que sou não sendo. Portanto, coloco-me na condição de estar.

A condição de estar significa que estou neste labirinto de estar alguém não sendo alguém, não sendo ninguém. Hoje, por exemplo, amanheci assim, com minha pele branca em tons de vermelho e roxo. São hematomas de quem estou. Tem muito tempo que amanheço assim. A primeira vez foi apenas uma briga de rotina.

Eu...

Mulher tão apaixonada. Sim, era uma mulher, apaixonada pela vida, por mim, apaixonada por um homem elegante que encantou-me desde o primeiro momento que o vi. Hoje, não sendo mais nem mulher, nem mulher apaixonada, nem mulher de pele branca, nem um ser sou mais. Estou agora o que me tornei. Um objeto, brinquedo, instrumento de manuseio de um homem que um dia me conquistou com palavras de amor e que ainda diz. Faz juras de amor, muitas juras de amor como sempre fez, mas hoje esse macho, que diz me amar tanto, me atormenta e me bate. Bate, surra, espanca, agride e me tortura. Faz tudo isso com sua boca suja, suas mãos pesadas e sujas, hálito sujo, pés sujos, e seu pau sujo... E eu, suja, com meu corpo sujo, mente suja, coração sujo, boceta suja, deixo ele fazer o que quiser de mim. Sim, eu estou esta coisa suja que me tornei. Você me condena? Você me julga? Sim, muitos fazem isso. Meus colegas de trabalho, às vezes, perguntam-me por que uso maquiagem tão pesada no rosto. Isso porque não enxergam meu corpo. Meus amigos cobram-me por não procurá-los mais e, quando por acaso os encontro, questionam-me por que pareço tão triste. Não ouso dizer, porque a coisa que me tornei tem medo de contar para alguém que a coisa com quem casei e divido meus dias de casada tirou-me da condição de ser o que sempre fui. Essa coisa, que todos veem como meu companheiro, me ameaça diariamente de morte se revelar para alguém que o amor que ele me oferece vem acompanhado de dor física, psicológica, emocional e moral.

Essa é esta.

Esta sou seu.

Hoje, até este instante, estou assim. Mas, agora, a partir de agora, não quero mais estar, eu quero ser.

Sou Clara.

Sou mulher e quero fazer uma denúncia...

 

 

 

 

 

 

Vista-se de saia e saia, João!

 

 

Vista-se de saia e saia, João!

Saia de seus anseios

Saia dos seus bloqueios

Saia do seu armário

Saia do seu cenário

Saia das suas dores

Saia dos seus temores

Ensaia de saia e saia, João!

Saia de sua Maria

Saia de sua tia

Saia de seu demônio

Saia com seu Antônio

Invista na saia e saia, João!

Saia do que lhe veste

Saia com que lhe deste

Saia, seguindo seu norte

Saia, entregando-se à sorte

Saia e verá,

que de você,

de saia,

ou sem saia,

Deus dará.

 

 

 

 

 

 

Bola da vez

 

 

Fazia noite na rua de baixo,

Bola de couro entre os meninos,

Bola de ouro num céu brilhante,

Fazendo dia entre os pequeninos.

Disparos de fogo na rua de cima

Bola de chumbo entre os meninos,

Bola de sangue escorrendo no chão,

Fazendo silêncio entre os pequeninos.

Gritos de mães na rua de baixo,

Bola de gente entre os meninos,

Bola de morte assentando no bairro,

Fazendo o horror entre os pequeninos.

Batidas na porta na rua de cima,

Bola de relato sobre meu menino,

Bola de dor atravessando meu peito,

Fazendo noite dentro de mim.

 

 

 

 

 

 

Melancias cortadas

de Frida Kahlo

 

 

Mulher feito melancia cortada

vermelha,

madura,

doce.

vermelhamaduradoce,

mulher cortada.

Vida feito melancia cortada

vermelhamaduradoce

vida cortada.

Mulher e sua vida, cortadas

Expostas de sementes fecundas

habitam a vida da mulher cortada

nas fatias,

vermelhas

e abertas.

Melancias cortadas cicatrizando tristeza

Manifesto de olhos famintos

de uma mulher a devorar-se.

 

 

 

 

 

 

Nora de Maria

 

 

Maria de todos os pecados, quem és tu?

Maria dos meus pecados, escandaliza tua pureza.

Desempareda-te de pudores

descendo deste lugar sagrado

e ensina-me a desobrigar-te de ti.

Maria de todos os pecados, desvirginiza minha certeza

Desempareda-me deste lugar venerado

Desabriga-me dos meus temores

E ensina-me a desevangelizar-me de mim.

Maria, norteia-te dessa desesperança

Que avança e nada alcança

desordenando minhas entranhas.

Mostra-me o caminho

Que se esconde nos meus calcanhares

E sinaliza onde mora essa tal limpeza

Que perdi na sujeira

De ser tu, de ser eu

ou de quem quer que seja.

Virgem, que dizem sem pecados

E se não tens pecado, porque és tão tu?

Qual é a dança que te balouça?

De quem te protegem nesta redoma?

Tens um olhar triste e nunca sorris.

Tens aqui apenas uma criança

Que suplica pelo teu sorriso

E se pergunta com seu brinquedo quebrado

O que fizeram de mim...

Foi o que fizeram de ti?

Maria, sabes tu que tudo que nos ensinaram

Com pecados nos alimentaram

Fazendo de mim tua nora Madalena

Que de nora só tem o dilema

De ser devota de ti com a revolta de mim.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Jaque Pivotto cresceu trabalhando na lavoura e estudando nas brizoletas, no interior de São João da Urtiga/RS. Aos dezoitos anos, mudou-se para Caxias do Sul/RS, começando sua trajetória profissional como bancária. Hoje, atua no ramo de decoração. Formou-se em Administração de Empresas, com MBA em Marketing e Psicologia. Procurou apaziguar sua alma na literatura, desenvolvendo projetos de incentivo aos leitores e escritores. Em 2016, publicou seu primeiro livro de poemas Quando Nasci Gertrudes.