Na pequena aldeia de beira de praia não se falava em outra coisa. Reunidos diante da casa de dona Judite — onde, sem que ninguém saiba por que, estabeleceu-se a sede dos reclamos e das notícias do lugar — os caiçaras comentavam o convite que haviam recebido para uma reunião, no Bar do Pontão, com o novo presidente dos "paulistas". Era assim que denominavam quem vivia na "parte de lá", geralmente vindos da capital, proprietários de casas de veraneio. Antigamente, a aldeia pertencia apenas aos pescadores. Com o tempo, eles foram vendendo os terrenos mais afastados da povoação e da igrejinha, de modo que o final da praia acabou habitado por forasteiros, que formaram uma comunidade à parte e se organizaram numa associação de moradores.

As reuniões aconteciam sempre no quintal. Tonhão, uma espécie de líder natural do lugar, alisava o bigode enquanto o restante do pessoal aguardava ansioso que proferisse uma opinião sobre o tal convite. Queriam saber se ele via algum problema em aceitá-lo. A dúvida em concordar com a reunião advinha do fato de os paulistas nem sempre os tratarem com respeito. Em nome de uma ordem completamente estranha à maneira tradicional de se viver ali, já haviam conseguido mudar muitos dos costumes. Um deles foi proibir a pesca de caranguejos nos manguezais. Tiveram de concordar — mesmo que meio a contragosto — que não havia necessidade de se alimentar dos guanhamuns, visto que a pesca ali era abundante e os manguezais tinham de ser preservados, exatamente por representar uma importante área de reprodução dos peixes. Mas quando determinaram que dona Judite não poderia mais vender suas deliciosas empadinhas na praia, uma tradição, foi um deus nos acuda. Acharam uma falta de respeito para com os locais e um meter de nariz onde não se é chamado. Pressionados por Tonhão, os paulistas tiveram de voltar atrás.

Mas o que será que queriam agora? Tonhão temia aceitar a convocação. Tinha um mau pressentimento que não sabia explicar. Sentia a responsabilidade de ter que decidir a questão. O silêncio dos que aguardavam sua resolução estava deixando-o cada vez mais nervoso. Com isso, sofria o bigode, puxado, alisado e repuxado. De repente, ergueu a voz grossa de orador  e berrou, um tanto desesperado:

— Não sei! Não sei o que é que eles querem. Não sou profeta!

O brado, verdadeiramente retumbante, atravessou o quintal de dona Judite, bateu no muro, ricocheteou nas paredes, estremeceu as mangueiras, emudeceu um bando de maritacas que passava voando e gelou o coração da corriola, que esperava tudo, menos uma atitude daquelas. Se nem Tonhão sabia... Pensaram todos. E calaram-se, mais apreensivos. A reunião seria dali a pouco e nada ainda estava resolvido. Na verdade, Tonhão receava que a pregação que andava fazendo para que os antigos moradores deixassem de ser bobos e passassem a não vender mais os terrenos a preços irrisórios, fosse o motivo da convocação. E temia pelo que lhe pudesse acontecer. Tinha ouvido falar que os paulistas não tinham gostado, que já estavam pensando em advogado. O caipira sentia-se acuado. Não entendia de lei. Não sabia se poderiam fazer alguma coisa de ruim com ele.

Percebendo que o clima tinha ficado esquisito, dona Judite, que costurava na sala, mandou uma neta verificar o que tinha ocorrido e, aproveitando, perguntar se não queriam um cafezinho. Não quiseram e mandaram dizer que não estava acontecendo nada. A velha quituteira viu naquilo um sinal de que as coisas não iam nada bem. E passou a ficar inquieta também.

Depois de discutir mais uns minutos sobre o assunto, acabaram  chegando à conclusão de que o melhor a fazer seria aceitar o convite e, pelo menos, tomar ciência do que os habitantes da parte rica da praia — onde se localizavam as casas com piscina e habitavam doutores poderosos — queriam com eles. Numa atmosfera funesta, como um rebanho de bois em direção ao matadouro, partiram para o encontro.

Mais tarde, já noite, finda a reunião que acabara muito bem, pois a nova administração do lado de lá queria tão somente reconciliar-se com os do lado de cá, os homens tornaram a agrupar-se no quintal. Vendo que estavam contentes e que tudo felizmente havia voltado ao normal, as crianças correram a avisar dona Judite de que todos estavam reunidos ali novamente. Surda como o que, a velha mentiu que já sabia, que já tinha ouvido as vozes lá fora. A gargalhada da criançada foi geral. Ainda sorrindo, saíram pela porta, correndo alegremente e gritando "dona Judite é surda, é surda"... E riam mais e mais. Passaram direto por Tonhão que, exaltado, fazia mais um de seus habituais discursos. Desta feita, discorria sobre a bomba atômica. Afirmava que, apesar de estar proibida na Terra, o artefato existia em poder de extraterrestres. E ressaltou:

— Um dia, tenho certeza que eles vão soltar uma bomba atômica aqui!

Dona Judite, que tinha assomado à porta com uma bandeja repleta de xícaras de café, e ainda não sabia que o encontro havia transcorrido muito bem, ouviu apenas o final da frase.

— Quem vai soltar bomba atômica na gente?!

Antes que alguém pudesse responder, a velhinha surda bambeou as pernas. Enquanto todos corriam para acudir, a bandeja desabava no chão, esparramando xícaras, pires, colherinhas e o café, num estardalhaço tremendo. A sorte foi que conseguiram ampará-la antes que desabasse também. Levaram-na para dentro da casa, deram-lhe massagens, água com açúcar, até que finalmente recobrou a cor e a calma. Só então ficou sabendo que tudo dera certo com os paulistas, que o novo presidente era uma pessoa muito boa e que não tinha bomba atômica alguma.

— Pensei que fosse o fim do mundo — confessou aliviada.

Ao ouvir a frase, e vendo que dona Judite estava bem, a criançada pegou o mote e saiu gritando pela aldeia:

— Não vai ter mais bomba atômica. Não vai ter mais fim do mundo!

 

 

 

dezembro, 2016