©naveen gowtham
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Na minha infância, em um mesmo dia, fiquei conhecendo o trem de ferro e a luz elétrica na madrugada. As cenas ainda permanecem nítidas em minha cabeça. O dia já havia sido fantástico, dentro de um trem cortando o sertão numa velocidade alucinante. Nas curvas para o lado de minha janela, conseguia ver a máquina preta arrastando nos ferros a grande fileira de vagões. A fumaça negra lançada pela chaminé durante o dia (não era à toa que chamavam a locomotiva de "maria-fumaça") transformava-se de noite em um jato de fagulhas vermelhas. Aprendi que era mau negócio expor os olhos abertos quando colocava a cara ao vento para fora da janela. Logo um cisco do carvão incinerado caía-me nos olhos, o que obrigava meus velhos a soprar o olho irritado.

A essa lembrança junta-se ainda a de uma fazenda de laranjas onde o trem descansava. Não havia nenhuma cidade por perto. O trem cortava o imenso laranjal, no caminho de Montes Claros e o maquinista parava para proporcionar o recreio que os passageiros já sabiam certo: descer para bater um papo, enquanto recolhiam frutas à vontade. Nunca entendi aquela pilhagem consentida a qual assistiria, mais tarde, inúmeras vezes. Depois do passeio, os viajantes ficavam mais falantes, conhecidos, tornando-se íntimos ao sabor das laranjas que iam chupando. Como o trem jamais chegava na hora, nunca pude calcular se aquilo atrasava ou não a viagem — o que era muito diferente dos habituais descarrilamentos, que exigia demorado socorro e que realmente alteravam os horários e desesperavam muita gente que tinha baldeação marcada.

Uma vez, minha mãe, um irmão e eu estivemos nessa desagradável situação. Perdemos a baldeação e tivemos de nos hospedar em Belo Horizonte. Apavorados e com o dinheiro contadinho, pernoitamos em um hotel de terceira perto da ferroviária. Minha mãe, Cecy, inquieta no hotel ordinário, passou a noite torcendo para amanhecer logo. Foi um alívio quando nos vimos novamente em um trem, prosseguindo a viagem para o Rio.

Mas estou me esquecendo de contar da luz elétrica na madrugada. Até a data em que pernoitamos pela primeira vez num hotelzinho em Montes Claros, para continuar viagem na manhã seguinte, jamais havia presenciado o brilho de uma lâmpada elétrica depois das onze da noite. As noites altas, em minha cidade pequena do sertão, eram feitas de sussurros. Acordava de madrugada e só havia a escuridão voraz, sem manchas de luminosidade além da luz mortiça do candeeiro. Não havia sequer a vibração, mesmo que distante, da eletricidade em forma de rádio ligado ou réstia da iluminação pública que penetrasse pelas janelas. O que havia era vento, galos e o temível alfaiate, pássaro noturno que, segundo dizem, quando voa repetido por cima de um telhado, é prenúncio de morte certa naquela casa. Por isso, jamais acreditei que pudesse existir luz a noite inteira, até aquela noite em que meus pais, que dormiam num aposento contíguo, acordaram assustados, no meio da noite, com o ruído vindo de meu quarto. Correram para lá e depararam com uma criança abobada, extasiada, ligando e desligando o interruptor, mal conseguindo acreditar que aquilo fosse verdade: havia luz dia e noite!

Hoje as descobertas sensacionais da infância são bem diferentes daquelas. A luz elétrica dia e noite é coisa corriqueira e as linhas de trens de passageiros foram quase todas extintas e substituídas por ônibus e aviões. Os ônibus, sem carro-restaurante, locomotiva e a fila de vagões, não têm a mesma graça. Já os aviões trazem a paisagem maravilhosa acima das nuvens, mas, para mim, ainda fica faltando a gente abrir a janela e colocar o rosto para fora. Na verdade, confesso que pouco sei das emoções espantosas que povoam a vida da criança moderna. De qualquer maneira, espero que sejam inesquecíveis e provoquem euforia igual à que senti ao ver a primeira lâmpada brilhando de madrugada e a primeira máquina barulhenta deslocando-se pelo sertão, jogando fagulhas e recordações que, para sempre, ainda turbam minha memória, mesmo nas noites jamais escuras da cidade grande.

 

 

setembro, 2016