©brooke didonato

 

 

 
 

 

 

 

MINHA MBÉU, MINHA SEMENTE DE AMOR

 

 

Eu estava com a cabeça prenhe de ideias e "divações". Estava a viver "dreams" e realidade. Meu coração estava trémulo e carregado de sentimentos, sensações e outras coisas que mexem com a alma. Meus olhos estavam esfomeados e atentos a beber a paisagem da cidade. Era demasiado o tempo que tinha passado sem que eu pousasse os pés na cidade de Chimoio e no Bairro da Soalpo, particular.

Saí de casa sem intenção segura. Não sabia ao certo para onde me dirigir, muitos menos o que iria fazer. Mas estava seguro que precisa de me esvair, livrar-me de sinergias negativas, lavar as veias mentais. Eu tinha a necessidade de conversar comigo mesmo, fazer uma introspecção do eu. Precisava fazer um inventário da minha existência, analisar o meu lugar social. Uma espécie de diálogo espiritual.

Estava um dia de sol em Chimoio. O sol de Maio, um sol doce e poderoso, um sol divorciado das nuvens, sol imaculado, um sol emissor de vontades e saudades, acompanhado de alguns sopros de frio suave, estava doce a tarde. O céu estava todo azul, um azul da Grécia Antiga, dos irises, que também parecia o azul do Tofo moçambicano, um azul divino, azul das origens, azul demiúrgico, azul medrador de vidas viventes e apetites atiçados. Àquela tarde de Chimoio prometia e inspirava, convidava e induzia, parecia uma tarde isenta de demónios, uma tarde das fantasmeias santas, uma tarde em que a maldade estava de férias. O ar, este fedia à Makombe (líder espiritual ligado à Revolta de Báruè), estava um ar amigo dos pulmões afáveis.

Descrevi a praça dos Heróis, e entrei pela avenida que passa pelo palácio do Governador de Manica e sobressaí no mercado central da cidade Chimoio. A Praça não transmitia o mesmo alvor dos anos samorianos1 da década de 1980. O jardim, que no meu tempo de infância era verde e naturalizante, há muito que não recebe o banho de rega. As pinturas e os desenhos revelam ter atingido a terceira idade. E, a Praça, de reabilitação e conservação, tem conhecido pouco. Introduzi-me num chapa-cem2 e fui descer exactamente no Antigo 373. Fui observando e recordando dos antigos becos que usava para os meus passeios de infância. Tudo estava reformulado e até mudado. "É a lei do desenvolvimento" — pensei.

Divaguei quase por toda a Soalpo, revisitei o Campo de Futebol da Textáfrica e o respectivo complexo residencial, para além de outras antiguidades. Depois de reduzir a carga de saudades que me condoía o coração sobre o Bairro da Soalpo,  parti para o Bairro 7 de Abril. Passei pelo quarteirão do meu amigo Muandichalira e penetrei no interior do bairro.

O 7 de Abril é um Bairro sem muitas árvores de sombra, mas é embelezado por canaviais e bananais. A zona é lamacenta e recortada por pequenos riachos e hortas familiares compactas. Esta fisionomia empresta frescura e ar puro à região. É um bairro verde e húmido, bairro hospedeiro e acolhedor.

Já estava cansado. As horas já começavam a afugentar o sol. E o começo da noite já se adivinhava. Pelo maciço movimento de humanos, notava-se que fosse hora de ponta. Assim, o dia estava a ser vencido pela noite, a clareza do sol de Maio cedia à iluminação lunar. Enfiei-me nas entranhas dum quarteirão e descobri um bar modesto, construído de material local e pintado de argila. Aquela terra oferece lama de muitas cores, do verde ao vermelho. Puxei uma cadeira e pousei-me com ares de um reformado da vida. Depois de pousar o meu esqueleto sobre a cadeira morfi como um tigre velho carregado de muitos anos de vida nas costas.

Era o mês de Maio, lembrei. Maio é o mês de muitos aniversários nas minhas relações. O dia era sexta, sexta feira é um dia de divórcio com a semana laboral.

Enquanto palitava os dentes, com as unhas, observei o ambiente da casa. Era o começo da noite, mas a casa já estava entupida de gente. Quase todos os presentes solviam álcool, dependendo do tipo e espécie. As idades, no local, estavam misturadas. Lá no fundo dançava-se com dedicação calcando-se, com os pés, o chão de um largo palco.

— Como é, estás fixe? — Soou uma voz feminina na varanda das minhas orelhas.

— Estou bem. — Retribuí.

— Que toma? — Indagou.

— Cerveja clara. — Rematei.

— Qual das claras? — Precisou.

— A 2M. — Pontuei.

Num dos cantos da casa estava parada uma mulher negra, de "rasta", a observar o movimento com copo de cerveja na mão esquerda e sem pressa na vida, parecia que estava com o cérebro em estado de pousio e parecia ter a alma presa  sobre o corpo. A sua calma demonstrava que o seu espírito tinha emigrado para outros lugares de África, lá onde localizam-se os palcos das reincarnações. Os nossos olhares cruzaram como obuses e eu tracei um sorriso fingido pelo canto da boca. Ela correspondeu com meiguice de manteiga. Consegui observar que tinha dentes de leite e uma língua beijavelmente apetitosa.

Já fazia frio, as noites em Chimoio são sempre ríspidas. Puxei no meu sobretudo e no meu boné vermelho e veludo, e me cobri como um russo do século IX. De todo, eu estava de calças e balalaica de caqui; nos pés eu trazia camurças de pele virgem; tudo era castanho em mim, menos o boné. Sobre o pulso, eu, trazia um relógio do século XVI, era das Reformas Religiosas.

Algumas horas tarde, àquela mulher negra que estava em estado de estátua, vigiando o ambiente, se aproximou e instalou-se na cadeira à mesa em que eu me encontrava estacionado desde à minha chegada.

Em conversa fiquei sabendo que o nome dela era Rudo, natural de Báruè. Soube, inclusive, que era residente no Bairro Nhamadjessa. Disse-me, também, que estava a cursar Química na Universidade Pedagógica.

Rudo era alta, escura como a rainha Nzinga Mbandi, de cabelo preto e crespo como a Mãe Eva Africana. Os olhos de Rudo eram da cor da água e olha como uma águia furiosa com o inimigo. Rudo era proprietária de um corpo de viola, corpo similar ao das escravas  do Reino Mataka4. Sua voz era tridente, o soprano, tenor e o baixo se juntavam na fala de uma só mulher — a Rudo. Rudo tinha um olhar inteligente e fulminante; um peito abafador; uma perna imaginosamente comestível.

Naquela noite, a nossa conversa acabou em intimidades. Rudo parecia-me ter tudo ideal. Os beijos dela mutilavam-me a mente; ela apertava-me com fulgor de leoparda. Ela virava-me com força de um caudal de rio em período de cheias. Eu tremia e gemia como um céu rasgado por um relâmpago violento. Rudo foi a coisa mais doce que tive naquele dia. Uma dádiva, coisa exótica, relíquia da alma, a demiurga da vida.

A minha viagem foi sendo adiada por mais dias. Eu estava severamente apaixonado por Rudo, a minha Rudo. Meu coração estava preso à ela. A imagem dela perseguia-me. A minha mente estava colonizada com a sua presença na minha vida, eu só pensava em Rudo, escrevia sobre Rudo. Rudo era fonte da minha inspiração. E, um dia desses escrevi para ela um bilhetinho dizendo, com impiedade amorosa, o seguinte:

 

         "Sinto-te; sim sinto-te sentada na ogiva do meu coração; sinto-te     penetrando-te nos riachos da tua paisagem corporal; Rudo, és a minha      mbéu (o mesmo que semente); se não casas comigo, case com o fogo do         meu desejo…".

 

Lido o bilhete, Rudo ficou triste no lugar de festejar o nosso encharcado amor. Estava toda murcha e com olhar de pena. Àquele estado de Rudo anulava-me o sossego da alma. Fiquei assustado, não sabia se sentia-se ofendida ou não. Não sabia o que pegar, nem o que fazer para devolver alegria à minha Rudo. Minha mbéu preocupava-me.

No dia seguinte, ganhei coragem e insisti em saber o que lhe entristecia. Foi assim que a minha mbéu confessou-me como quem descarrega pecados sobre os ouvidos do padre confessor.

— Meu amor. — Começou ela.

— Diga. — Requeri.

— Eu não sou uma mulher normal, como tu pensas. Eu sou uma mulher espiritualizada. Eu trabalho todas as noites para meu tio, enquanto as pessoas dormem.

— Mas, como assim, Rudo.!? — Indaguei.

— Meu tio tem muitos cães em casa. Mas na verdade não são cães. São pessoas já falecidas, da família que trabalham para ele. Como pudeste perceber, ele só cria cadelas e não quer saber de cães machos. De dia nós somos cadelas e de noite somos pessoas espirituais que trabalham nas suas machambas, feitiçam e multiplicam a sua riqueza. Toda aquela frota de carros, o expressivo número de animais… são produtos do nosso trabalho.

A estória, arrepiava-me e dava-me dó. Eu estava incrédulo. Como é que a minha mbéu poderia ser cadela e espiritual!!!!!!!!!!!!!!!

— Eu, continuou a minha mbéu, morri há sensivelmente 7 anos em Catandica. E meu tio usa-me para as suas magias há 5 anos. De 3 em 3 meses ele concede-nos 30 dias de folga a cada uma, e no período de folga nós voltamos a ser pessoas. E, ele diz que nós devemos estar gratas porque nos dá a oportunidades de sermos pessoas vivas quando já estávamos mortas. E a única forma de pagar a dádiva que ele nos oferece, a virtude de vivermos como pessoas vivas durante 30 dias, é trabalhos continuamente para ele.

— Assim...!!? – Perguntei, todo amuado.

— Assim, quero dizer-te que estás a amar uma pessoa morta, que só poder ver de 3 em 3 meses. Não posso casar-me contigo e seria penoso amar-te como pessoa viva, porque, por mais que te custe acreditar, eu sou uma pessoa morta que vive transformada em cadela por muitos dias.

— O que faço minha mbéu. — Perguntei lacrimejando como criança acusada por um mal que não cometeu, mas que não tem como provar sua inocência.

— Deves partir daqui imediatamente. Não fique mais em Chimoio sequer um dia, porque assim que estou a contar-te, meu tio está a ouvir-me. E, por favor, não conte o que te contei a ninguém senão morres logo depois de contar. Amo-te, eu não sabia que voltaria a amar depois de morta.

Foi assim que naquele dia meti-me num camião com urgência e viajei para Lichinga sem nunca mais ter voltado a Chimoio. Guardo o amor à Rudo como um frasco de veneno na gaveta mais segura do meu coração.

Minha Mbéu, minha Rudo.

 

 

Notas

 

 

1 Referentes à época de Samora Machel, primeiro presidente da República Popular de Moçambique, actual República de Moçambique.

2 Nome que se atribui aos carros que fazem o transporte intracidade de pessoas, nas cidades, em Moçambique.

3 Antigo Mercado de venda de roupa usada.

4 Antigo reino do Norte de Moçambique que se dedicava à venda de escravos.

 

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Geraldo Cebola João Lucas. Professor da Universidade Pedagógica - Moçambique.