É UMA LONGA ESTRADA REPATRIAR A ALMA

 

 

Há que se fazer o silêncio

para ouvir os dedos

sobre o velho piano da ferrovia

é uma longa estrada repatriar a alma

a rota é na medula

descida íngreme

ou subida sem estanque —

demolir para construir

e não fugir do terror sem nome

de não ser contido

apanhado, compreendido

é preciso seguir adiante

no fogo e sem ar

e se a dor perdurar

é preciso ser destemido

para espelhar o rosto

em outros olhos

distantes como num espelho.

 

 

 

 

 

 

AZUL

 

 

Há algo triste no azul dos teus olhos,

algo perdido e infinito neste azul dos teus olhos,

algo de azul

no triste dos teus olhos.

Há algo de teus olhos neste triste azul, algo perdido

no infinito do azul dos teus olhos,

algo infinito no azul perdido dos teus olhos.

Há algo azul

no infinito triste

dos teus olhos

perdidos.

 

 

 

 

 

 

REMOVER DO CORPO AS CROSTAS DO SILÊNCIO

 

 

No se puede contemplar sin pasión.

Borges

 

 

Remover do corpo as crostas do silêncio

tudo que é vivo e exposto grita

e gira, pela avenida

a dor se junta ao rumor.

 

Para chegar à clarividência

procura-se um ritmo, qualquer um,

que descompasse as artérias —

 

a vida enverga sobre a avenida

no peito só a voragem do eterno,

a fração do abalo sísmico,

desenha na mão cataclismos.

 

 

 

 

 

 

A ESQUINA

 

 

Como los dardos en el aire

ávidos de su herida

Borges

 

 

A vida é uma esquina,

no cruzamento bate uma bola

sobre a corda bamba uma menina.

 

A rodovia opaca respinga no rosa dos ipês.

 

Há novembros em que só

jacarandás nos salvam,

deve ser por isso

que o coração do céu

tem nome de furacão.

 

 

 

 

 

 

AINDA É SETEMBRO

 

 

Ainda é setembro, há girassóis na Toscana,

os olhos da flor apontam para o chão,

esperam das raízes a nova colheita;

os meus estão atados ao azul do Tirreno imaginário,

onde esta manhã emergia o Concordia.

 

Ali, alvorada titânica,

e aqui, por trás das colinas sieneses,

meu peito insone, no vagão do trem,

bate arrítmico com a estridência escolar.

 

O sol nutre-se das trevas.

 

 

 

 

 

 

QUANDO A PRIMAVERA ATRASA

 

 

Quando a primavera atrasa

e pode não mais chegar

à cidade, o céu se acinzenta sobre ela —

levanto os olhos e perco a amplitude.

O infinito está nas ruas,

há cores nos guarda-chuvas,

nas lanternas, nos semáforos.

Há que se iluminar a cromatura das vias

para refazer a primavera.

 

 

 

 

 

 

CAMINHA INVISÍVEL

 

 

Caminha invisível o amor

na multidão doída e apressada

entre olhares dispersos.

 

O amor caminha só,

anjo atravessado por passos rápidos.

 

É menos do que um mendigo o amor

na hora do rush, na plataforma dos trens

e a cidade incandesce

minutos antes do pôr do sol.

 

 

 

 

 

 

CATEDRAIS

 

 

Força sutil e estrondosa

a nossa, catedral

erguida no peito vazio —

 

no silêncio dos olhos,

sós e incessantes

construímos um penhasco,

ponte de uma dor a outra.

 

Como todo ser vivo,

hoje estamos

cada um com seu vício.

 

 

 

 

 

 

21 DE SETEMBRO

 

 

Lá onde ninguém pode conter meu sonho

irei fruí-lo em vergel ou em câmera.

Arnaut Daniel, por Augusto de Campos

 

 

Manter na espera a esperança

das últimas flores do ipê, o amarelo

colorindo as extremidades da árvore;

suas palmas negras em leques de luz.

 

 

 

 

 

 

ÚLTIMA CEIA

 

 

Cair

e fazer de cada ato

amor.

Possuir o Tagliamento

o silêncio das montanhas

e não redimida,

destroçar com os dedos a partida.

 

O pão à mesa

e o vermelho

da minha terra,

guardados assim,

sobre o teu umbigo.

 

 

 

 

 

 

É O NASCER DO DIA QUE RASGA

O PEITO DOS AMANTES

 

 

É o nascer do dia que rasga o peito dos amantes,

como o verde que colore os olhos,

na mesma diagonal, o desenho de um milagre.

 

Plantar na terra

pés com o coração

e não ir mais embora

agora que colocaste o mar no céu.

 

Enquanto na garganta brota-me

a língua dos antepassados navegadores

meu olhar permanece no horizonte.

 

 

 

 

 

 

GÓLGOTA

 

 

Aspiramos à alta liberdade

um bem sempre suspenso que nos crucifica.

Ana Hatherly

 

 

Atravesso a cavalo o calvário

por uma hora do teu júbilo de bronze

 

 

[Do livro Repátria. Demônio Negro, 2015]

 

 

 

 

[imagens ©laura makabresku]

 

 

 


 

 

 

 

Francesca Cricelli é poeta e tradutora. Curadora da edição italiana das cartas de amor de Giuseppe Ungaretti para Bruna Bianco, Ti aspettavo nel tempo (no prelo, Mondadori, 2017). Autora de Repátria (Demônio Negro, 2015) e Tudo que toca o olhar (Scriptorium, 2013). Organizou e traduziu as cartas trocadas entre Giuseppe Ungaretti e Edoardo Bizzarri, Lettere: 1966-1968 (Scriptorium, 2013). Estudou comunicação na Università degli Studi di Firenze e Teoria Política na USP. É doutoranda em Estudos da Tradução na USP. Traduziu Dias de abandono, de Elena Ferrante (Biblioteca Azul, 2016) e Nas margens de mundos possíveis, de Vincenzo Bonaminio (Imago, 2010). Foi curadora da exposição e ciclo de encontros De uma estrela à outra / Da una Stella all'altra na Casa das Rosas, em 2011, trazendo ao Brasil oito poetas italianos, durante o ano da Itália no Brasil. Leciona intelecção de literatura italiana na Casa Guilherme de Almeida. Participou de festivais literários na Itália, na Índia e na China.

 

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