TRANSPOR

 

 

transpor é condição nova de vida

transpor um corpo no outro e a costela na outra

o queixo transposto de boca em boca

a palavra transposta de folha em folha

até se consumarem todas as queimas

e a salamandra transposta de pele em pele

esta é a nova lei

transpor

 

e de assim vermos vegetar os poetas domesticados

de transpor rima de um verso ao outro até o branco

e inodoro verso se transpor do verso

e não caber mais na existência de apenas

verso/ isto e todo o resto é transpor

 

acordar de manhã e ir trabalhar

tomar um café amargo/ limpar a poeira do rosto

apenas o grosso/ só o grosso

porque o resto é tragável

transpor gosto em desgosto

felicidade em impedância

trabalho em descanso

transpor o amor

 

acatar todas as regras

e quebrar apenas uma de cada cem

a lembrança como um alter ego

a doença como reinvenção

o mar transposto em cansaço

e a voz segredada de fundo

 

transpor é coisa de louco

que não quer perder a vida

 

e é fácil transpor/ não é difícil

têm coisas que transpomos sem dar pela causa

tem coisa que já referve/ e transpomos

por casual violência

tem coisa que nem é preciso transpor

e gruda na testa da gente

 

 

 

 

 

 

NARCISOS PINGADOS

 

 

é cedo e um menino brinca de ser rio

brinca de tapar o sol com a ponta dos dedos

e o sol desconhece o menino

o sol por inteiro rasga o cetim dos olhos do menino

descolore da beira um fio de areia movediça

uma areia pisada levemente

pisada antes da possibilidade de haver um menino

 

qualquer menino sabe que é morte o fundo do rio

sabe onde nenhum peixe borra na cauda

uma lança de cor indefinida ou qualquer cor

sem referência nos olhos do menino

e o menino existe pelo que nele morre

o menino morre porque nele vive

um ninho de areia movediça

e um minguante rio

 

 

 

 

 

 

NIL EST DICTU FACILIUS*

 

 

eu planejo a eternidade não planejo o dia

arquiteto nos subsolos teorias melódicas

arranco páginas ardendo em chupadas

repente repetível traindo-me pela rima

eu arquivo tudo que não posso suturar

 

 

*Nada é mais fácil do que falar [Terêncio, Phormio, 300]

 

 

 

 

 

 

ALGUÉM INSCREVE NA GAIOLA O SEU GRITO DE ÁGUA

 

 

alguém inscreve na gaiola o seu grito de água

na garganta imperfeita na caverna

onde a escuridão deleita

a escuridão escuta o frio

a palavra fere de tato

os membros inferiores

os passos anteriores

 

alguém inscreve num espaço alto e surdo

impele contra a própria inteligência

subordina aos perímetros os bicos

plantados de bicarem a realidade

que nem ardem nem sublinham

a ferocidade incauta

a fuligem paralisada

nas patas cobreantes cobálticas

patas minimalistas

sombra de um sonho safo

 

e é não alcançar com o corpo a lâmina

não poder morder a úlcera cálida

o seio cheio de esperança

para as manadas arrogantes

nauseabundo de uma nota ária

revertendo o jogo a contra gosto

invertendo a urina desde o gosto

presilhas tomadas de ilhas

filhas vaquejando a vaca mãe

e um novo desafeto

partindo meio a meio o câncer

marcado no topo do mapa

 

 

 

 

 

 

CAVO PELA TERRA UM MEDO

 

 

cavo pela terra um medo

afugento pela curvilínea saliência do dedo o medo

tropeço de cara na frigidez do medo

refaço-me pela cratera de uma trapaceada luz

e novamente o sedentarismo obturado de um medo

a possibilidade de ovular de refestelar na carícia

 

sarmentosa fala do medo coisas polidas coisas

rebentadas e deduzidas um imposto corrigido

uma trepadeira entre pó e viga

indelicadamente o medo

derrete perfume e cera

 

se me entorto estou entortando pelo medo

pela possibilidade da vingança da carnivorança

da enxada porreando com ferro a madeira a retangular

estrutura do medo inchando os poros infectados murchos

a dentição sem esperança adentrando a moldura infeliz

da janela centrada nos braços de um muro

 

o medo galante e a voz esporando envernizando

as facetas imprevisíveis de um fruto perfurado

na toalha nefando as partes íntimas do sabão

tudo lavado desde a costela

num enxáguo exímio

 

o medo reverencia os seus talhes

cobre de amônia

as unhas enfezadas

 

 

 

 

 

 

O LIVRO MORTO

 

 

sobre o torrão

do escuro asfalto

repousa ele

o livro morto

 

nenhuma palavra

interditada

nenhuma data

nenhum assombro

 

repousa ele

sem aparatos

o corpo rígido

a página rala

 

no meio de tudo

trombose e entulho

o livro é morto

sem boca sem olho

 

e se restar palavra

uma única palavra

que seja pólvora

numa mata seca

 

 

 

 

 

 

UM ABISMO

 

 

ela estava na flor da idade/ a da esquerda

a da direita teria uma ligeira asma

os vestidos combinavam em contida alegria

mas as faces evidenciavam o que não podiam falar

os brinquedos largados no chão

lampejavam

 

a da direita seria sempre a mais lépida

a que teria um coração descompassado

o cabelo aparentemente mais arrumado

o olhar inutilmente mais sereno

seria sempre uma prova cabal

da sua intuição emaranhada

 

a da esquerda apenas queria brincar

as bonecas gritavam alto

com pernas desproporcionais

as cabeças muito pesadas

mas ela ainda queria falar/ detida

e abraçada

 

seria fácil decifrar ambos os lados

seria fácil desatar todos os laços

 

se não houvesse um abismo ao meio

e a indelicadeza toda que se espraia

e petrifica os móveis da sala

se não houvesse uma insana certeza

de que tudo está errado

 

 

 

 

 

 

A CABEÇA É A PARTE MAIS PESADA DO CORPO

 

 

a cabeça é a parte mais pesada do corpo

nela podemos guardar frigoríferos e geleias

cem quilômetros de paisagem e preconceito

sendo possível espirrar cuspir engolir sorrir

e sustentar cerca de 150.000 fios de cabelo

 

ela acomoda um cérebro de um quilo e meio

queima dúvida e certeza por nada de cinzas

abre-se nela uma boca e salta pelos olhos

um punhado de riqueza num dente de ouro

uma pobreza um desprezo num duro murro

 

entende o que é lentilha e o que é gordura

administra vinte e dois ossos extremamente

em harmonia com as orelhas que só ouvem

compactua com a língua e o apuro obsceno

capaz de cortar desaforo e computar gozo

 

a cabeça é a parte mais pesada do corpo

nela o café é fervido a carne é amaciada

nela aniquilada a bondade e a simetria

nela um barco de água é muito dinheiro

e da cabeça ao peito se abre um buraco

 

 

 

 

 

 

DEBAIXO DOS PAPELÕES

 

 

eles trocaram sonhos numa tarde de chuva fina

trocaram moedas roupas íntimas de dez dias

trocaram alianças de cipós trocaram juras

de falso amor de qualquer amor pele na pele

amor coxa na coxa trocaram saliva amanhecida

 

eles trocaram retratos três por quatro inventários

herdades melecas apaixonadas trocaram castigos

motivos para nunca fugirem motivos para não

ficarem sentaram na praça com um sol a pino

trocaram cascas de feridas e muitas alegrias

 

trocaram livros ilegíveis isso é que era a vida

trocaram pernadas coisas que só eles teriam

um pouco de rotina um pouco de hipocrisia

não se vendiam não se importavam não cediam

qualquer lugar era lugar tocavam-se e se nutriam

 

 

 

 

 

 

A ESTA HORA DA NOITE

 

 

a esta hora da noite qualquer demônio

acredita em milagres revezam-se as freiras

no feitio justo e sofrido de assar a mais feia hóstia do mundo

quebram-se as taças só as compridas as delgadas

a esta hora da noite qualquer demônio

empresta amor e vício a qualquer condenado

 

como devo cremar o destino quando o destino

cremado evoca vácuo qualquer coisa qualquer

coito requer mais calor requer um por acaso

que a tesoura se remoa fingida entre as fitas

e o alimento gozoso preso aos dentes

 

como devo apagar um fogo se é tolo o talo

arriscar-me num frio a barriga após um desastre

se não for alguém que depois de outro alguém

chegar no mais nefasto dos princípios

adentrar no impacto da mera coincidência

afastar o corpo para desatar os nós

 

 

 

 

 

 

QUASEXACTO

 

 

os prostitutos engomados espalham perfume pela noite

e imitam os amores falsos de salsas rasteiras

começam a cantarolar com as respirações ríspidas

são como éguas amargas de demasiado florirem

remexem nos órgãos genitais emasculando a horta

 

são como colinas alucinadas num organismo uno

morrem pela simetria e de mastigar a cana

de caçoarem das juntas endurecidas

e acordam assustados e com os dedos atados

 

empurrados pelo crime de apenas ferir

os beijos venenosos em ato de fenda penetrada

e os coturnos brilhantes por detrás do esconderijo

a ilusão extenuante de um trabalho ímpar

 

meninos suados no tabaco de visível espessura

os instrumentos esterilizados e induzidos

hausto de sopro redondo na luz dos postes

riqueza de uma ameaça se alguém enrola uma luva

e um número fêmea converte a humana secura

 

 

 

 

 

 

PÁGINA

 

 

a cada dois passos que dou

um passo vai para frente

o outro vai para trás

 

se olho pela brecha da porta

um olho arde de sol e sertão

o outro congela no paraíso

 

se penso nos grãos vencidos

é maior a fome da lombriga

afogada no suco de uvas

 

a cada dois dias vividos

um dia é para ser esquecido

o outro será sempre lembrado

 

a cada página que reivindico

uma deverá ser rasgada

a outra corrigida

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Flavio Caamaña é um trabalhador braçal e poeta nascido em Tamboril, desertão do Ceará. Vivenciou o auge da ditadura, a infâmia e a injustiça. No início dos anos noventa, participou como voluntário em campanhas de apoio às vítimas da Aids. Primeiro lugar no XVI Prêmio Literário Ideal Clube de Literatura, foi publicado em coletâneas, livros e revistas literárias virtuais. É autor do livro de poemas Aquedutos (Patuá, 2016).