©martin hirsch

 

 

 
 

 

 

 

. 1 .

 

 

curtos os braços

boamente margem

às vezes comisso 

sempre desordem

 

amansados à posse

embora curtos aqueles braços

diante da podridão — doze horas

 

um cheiro encravado stultiferanavis

teima

vazados os badulaques

os reis e desterros

 

qualquer cravo

lastro muito lastro 

forçada a passagem

fraude às veredas

 

ai de ti ai de ti

teus dias mãos ao alto

trrá trrá trrá detrás das legendas

 

os braços os curtos braços                    

indulto aos brasões e banheiros

bondade expatriá-los sem nome

 

 

ai de ti ai de ti apátrida inominado

jogado em todo dado

dê-lhe às costas

 

 

o mero arremedo isso

lançá-los ao rol dos culpados

 

 

 

 

 

 

. 2 .

 

 

o grito alouçado entre as falanges 

quase estômago por rezas ou doce

archotes ora mediante muito troco

com o g a menos da letra de câmbio

ai ai ai meu deus assim o quadro

"a expulsão com golpes de cana"

 

de repente o boa-noite aos poucos

além-ar alijados às armas brancas

com a licença dos barrancos o cão

o cão seu dono sob a lua em câncer

 

o grito — dos espanhóis seu rabo de olho

a espera do tutano para algum embrulho

como se retinta a caixa onde o seu crânio

aos trancos só por toleima rinhas e canto

 

o osso na tampa   

o soba — camareiro amaranto  

o entulho nas unhas os troços

o que essa gente e seus amiantos?

 

vento ao sul chutes à proa

a colher (em seu estojo)

penas para a boca   

 

por que aos braços sobra                                      

o consolo de que gyges

(noutros tempos)

fez a festa na trácia louça

 

 

 

 

 

 

. 3 .

 

 

se mancenilhas na língua

norma de pedra e sabão

se às prontas tortilhas

dois pulos

sobre as patas do boi

 

se o sôngoro sabe

se contra o couro

querela a savana

 

e se irene não-à-lei

e se irene não-sinhô

e se não-tão-preta

e nem-tão-boa

e se ainda aos piores mortos

o amém das moças

 

e se não-não-iá-iá

e se tome

e se ainda o amontoado atamanca

 

e se alguém o pano   

 

disfarçá-lo com um manto

a animália-dilúvio

a cruz-escudo

a rotina dos túmulos pela úmida vez

 

au-delá

oh gente do alabama

 

tombem as louças contra a lâmina

seu manuseio — a convenção mais antiga

banida dos brasões (aqueles)

ranhura na sala dos infantes

 

 

 

 

 

 

. 4 .

 

 

tal seu ofício

ofício negro

hera em cada mano

nelúmbio e sonho

ofício de negro

o mais americano

desses que se acossam nas vértebras

à esquerda de um canto

 

oficialato já disseram sem mando 

quebranto e ordálio

nem o mississipi

pelos bantos aí afogados

 

negrisísifo se for o quase

junto à gordura dos soldos

a marcha (a medula) — os sovacos

entre ônibus e obituários

a propriedade

(e por que não)

de qualquer hotentote

 

a salvo apenas os ombros

ouve: aqui uma vez bandos

 

também uma vez nibelungos

quando a querença dos anéis

outra vez mameluca

 

mas a cucharra 

como se nuvem

ofício enterrá-la no domingo

 

 

 

 

 

 

. 5 .

 

 

então tudo limpo até o prato que se lava

dos velames aos sacos a se estenderem nas amuradas

biografia e retrato

e bem junto ao muro bem desse tom azul-oscuro o desdito

enquanto alguém oração de graças

por que de algum distante a língua para a assepsia da tarde

 

são quatro

 

os punhos desde que algo os delate

e se dilatem os pés. chagas os seus calços

e permaneça a boca velada feito fósforo na caixa 

ou amarração da âncora aqui ao lado do que se paga

a erdosain remo em busca da rosa metálica pouco importa 

importa menos ainda o ferro forcado

a carta ao enforcado 

tudo metades do corte de uma só vaca

 

são quatro

 

a moléstia do matarife com o que fora fermentado

mas cuidado o manquejo da vergonha exala

o fermento os louros diamantes que se os moleste agora

tudo qualquer lodo inclusive esse pedaço de bolo

ou a pecinha dos fundos túmulo sem cruz ou nome: assim não se usava

 

são quatro

o pulo sob a poça que foi barco a noite da sede pelas canoas ou dos entalhes

tudo fede a alho

também o vagão que traz os cacos da carga

 

são quatro

 

o ganido do cão sob as tábuas a quem se proíbe o charque

aí a postos a oficiala com as mãos cheias na cara dos finados

são quatro também contra o risco

de quem tranquila com a latitude da porta

saber-se cômodo do sem emenda e nem pássaros

assim o utensílio feito

que faça ele o teu café e pão o teu dia com o rebento das algas

 

 

 

 

 

. 6 .

 

 

quando às espumas se partir a noite

a menor das facas caberá  

se a raiz do teu nome

o que suportará o peso

(dos elefantes)

 

oh escape kapo oberkapo captain oh my captain

capitão do mato

 

a singrar o incontinente 

a manada dos apátridas

e na garganta o gorgulho 

 

com o cheiro dos crustáceos

os remendos na boca 

o mandado de lhes atirar merda

de cortar a luz à vela  e

no escuro o que se arrasta para os cantos

 

— a marcha —

 

oh escape kapo oberkapo captain oh my captain

capitão do mato

pegue sua panela 

 

a ablação da bandeira nas quinas

o remédio sobre os caralhos

em cada solo o teu colo pelo dono

flora aos fulanos nos fundos da casinha

 

oh escape kapo oberkapo captain oh my captain

capitão do mato

pegue sua panela e vá buscar água

 

se a sombra às coisas clamar sua paga

para limpeza dos dentes e dos laços

não saberá soletrar a palavra salso

e nem lave a louça em sua cozinha de marfim

querida de dar dó

 

oh escape kapo oberkapo captain oh my captain

ainda capitão do mato

 

 

 

 

 

 

. 7 .

 

 

o focinho desse preto é nosso

qual prosérpina terra

à míngua de algum diabo

 

há que se atrever a mostrá-lo

 

de um só longo trago

outono e arado aos destroços

como um rapto

 

alguém grite: xeque-mate

talvez um pé entre os catres

com seu espelho bem negro

e mesmo assim

herança de cinco mil acres

 

bebida a água benta

pique repique na tarde

de um só longo trago

o hálito nem tão fresco

ao menos na metade

 

dê um só e longo trago

(sustém desse preto) o focinho

é nosso

 

 

 

 

 

. 8 .

 

 

amo a amo

o retorno das águas ao poço 

feito quem definha clandestino

arado às trouxas mil quilômetros

 

amo a amo

a ponta dos pés nos adobes

demais para se ficar bastante alto

 

ao reino das pás entre todos

carpida com águas daquele poço

amo a amo uma chávena de chá:

 

"Han Shan, veja bem, foi um catedrático chinês que se cansou da cidade grande e do mundo e foi se esconder nas montanhas."

 

as morgues porém que as devorem

 

veja bem han shan na sutura do mundo 

um negrego com seu naco e seus trecos

tampouco o poço um subteto

 

nem o perceberiam

no fundo no fundo tão vago

pano a pano nubário dos cabelos bantos

 

pretinho brabo quase dogmático

é mesmo esse — juzin

o enclave suicidado

sinal que ainda demora o berro d'água

o banho de farinha branca  

 

(a galinha vai e forja

 e ele de cócoras fica ciscando)

 

juzin teu na beira desse poço

amo a amo o enterro osso

que dona tereza tão gentil

 

juzin no entorno desse abandono

teu crânio negrilho

 

amo a amo

o arresto do teu corpo juzin

 

teu nome amo a amo

o cheiro dos jasmins um copo de leite morno

 

teu nome pano a pano pão sem patrimônio

 

juzin o tal grito (dos teus espanhóis)

caído na beira daquele poço

tão resistente quanto às louças

 

 

 

 

 

 

. 9 .

 

 

número 22.179/16. (vinte e dois mil cento e setenta e nove/dezesseis). a escritura anterior a esta é outorgada por elmo e sua esposa lícia a favor de leo lynch um homem de língua inglesa que sabia do novelo em maço das raças nostálgicas que soube do lugar dos inhames no mercado e da quantidade certa de terra e de peças para a casa. saibam todos quanto esta pública escritura virem que aos vinte e cinco dias do mês de outubro do ano de mil novecentos e setenta e quatro (1975) na cidade do livramento estado do rio grande neste primeiro tabelionato perante mim segundo ajudante substituto compareceram as partes entre si ajustadas a saber: de um lado como outorgantes o senhor emílio brasileiro criador de gado filho de alguém de punhos carniceiros coloridos pelo céu ondulado e sua esposa lina brasileira de afazeres hereditários filha do senhor estácio alabado como tocha entre bastões e da senhora noela ambos domiciliados nesta cidade e donos do edifício de onde pende. de outro lado juzin  sem margens sem memórias nem rastros de pai ou ilhas ou traços de morada os pés uivos e lagos pelo pisoteio do barro entre os espinhos abandonados y (quién há contado todos sus muertos?). os presentes conhecidos como os próprios pelo tabelião que a esta subscreve por mim segundo ajudante substituto e pelas duas testemunhas adiante nomeadas do que dou fé. e logo perante as testemunhas das quais se pedia outra coisa (el humo en la mañana el fuego sobre la noche y el cuchillo como un  duro pedazo de luna) foi dito pelo senhor emílio que é senhor e legítimo possuidor de um terreno apto para las pieles bárbaras y sus sillas de seguridades cómodas situado nos subúrbios desta cidade entre as orquídeas e os porcos lindando pelos lados e nos fundos com terrenos que são ou foram de sua propriedade e na frente com uma rua abocanhada pelo sem nome que está quite com as fazendas e desembaraçado de qualquer ônus que vendia como de fato vendido o citado terreno com suas pertenças com exclusão de cousa alguma bem menos as louças pelo certo e ajustado de um mil e quinhentos cruzeiros moeda corrente que neste ato e perante as testemunhas declara já ter recebido do outorgado juzin y (quién há contado todos sus muertos?) o dos olhos baixos e que por isso mesmo as mãos cortadas e que dá quitação e que por isso mesmo e em consequência o senhor emílio tira e demite de si todo o domínio e tudo cede e transfere ao gume de um grito o que se obriga a fazê-lo para sempre e bom. pelo outorgado comprador juzin foi dito que tudo tudo era verdade que aceitava a presente escritura na forma em que redigida a quitação e o preço como se de sempre o seu lugar e bom que também aceitava el cuchillo como un duro pedazo de luna e que do contrário agradecia. os vendedores nada devem às fazendas públicas conforme certidões negativas arquivadas no ofício. assim me pediram e eu lavrei a presente escritura.

 

 

 

 

 

 

. 10 .

 

 

No dezoito de julho de nosso senhor fugou da casa dos gonçalves sem motivo aparente a parda escura de nome anagilda lavadeira pequena estatura olhos de azulejo pouco falante quase muda idade entre quatorze vistosa feito alguma helen de santa lucia também engomadeira também cozinheira também planchadeira também de pés tão inchados e sumarentos quanto a promessa de algum domingo. 

 

"Mão de milho e marulho". Não calçava chinelos. Não sofria castigos.

Gostava de certas horas, como às quinze para cinco.

 

Suspeita-se que sobre cada um dos ombros sacos de juta cheios de arroz branco suspeita-se que sobre cada um dos ombros tigela com água e pano de prato e a cristaleira que com tanta diligência e o serviço de chá com margaridas nas bordas suspeita-se que entre os dez dedos um caco de cerâmica portuguesa suspeita-se.

 

Não calçava chinelos. Não sofria castigos. Usava saia comprida de algodão bata encarnada e no coração de ferro em brasa o preço do crucifixo doado pela senhora.

 

Seu senhor é de beira.

Seu senhor é de tribeira.

Manda assim a quem apreendê-la que faça sua entrega.

 

A promessa é da lei para quem a acoutar.

A promessa é da boa paga para quem a devolver. 

 

"Mão de milho e marulho". A fugitiva não calçava chinelos. A fugitiva não recebia castigos. No entorno das cadeiras um saiote de algodão o batom encarnado e no pescoço de garganta dilatada o crucifixo de madeira bem usado contra a senhora.

 

Soube-se que assim vai vai quase acocorada.

 

 

 

 

 

 

. 11 .

 

 

Mil réis a quem (com vida) aos seus donos (família brochado) braço da fazenda.

A senhora sem fome e fortes dores no peito.

A negrinha na primeira noite de abril — em sua posse o lampião a querosene da cozinha.

 

Ossuda alta a cabeça guirlanda.

A boca um pote de terra.

Ainda com anjos maometanos.

Atrevida. Desconhece dinheiro.

 

Pelo nome "justina" que talvez ainda atenda.

 

 

 

 

 

 

. 12 .

 

 

os artelhos em cada poço-de-aguada

ainda que rasos

os cortara à faca a facão

— que jamais tocassem o solo —

agora a hora da onipotência das togas

a bunda embarrada e vermelha sob a mobília de ráfia

que não se assopre (jamais) a flauta do velho unoka

— o corpo inchado o ikengaa partido por única dentada —

antes o antebraço as patas da mesa

e nosso garçom com a gravata borboleta

e toda delicadeza os potes

 

entre os próceres em umuófia

o estômago do grande deus

no seu uniforme engomado

 

vês isso okonkwuo?

 

um defeito na mola dos calcanhares

metidos no compound

teu obi teu obi a toalha arrastada

 

okonkwo

okonkwo

 

se o mundo vira lascas é bom amansá-los

diante do que virá talvez os carrapatos

na macia cama de hospital em londres

ou a eucaristia às cinco da tarde

 

e mais as bodas

 

 as de um pretinho de vilarejo

 que se bandeia para a trincheira entre as orquídeas e os porcos

 o vinho de palma

os pés batidos sob os comedores

e mais o inchaço sem curandeiro a coceira nos tornozelos

pouco afeiçoados ao corte

okonkwo

okonkwo

 

há gaiolas em meio aos fulanos

com seus cantos-de-galo

sem queixas

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Eliane Marques (Porto Alegre/RS). Publicou e se alguém o pano, Relicário e, com outros autores, Arado de Palavras. É coeditora da revista de poesia Ovo da Ema e coordena a Escola de Poesia. Graduada em Direito e Mestre em Hermenêutica Jurídica, trabalha no Tribunal de Contas do Rio Grande do Sul como Auditora Pública Externa.