[spathodea campanulata]
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Faltam quatro meses para completar quatro anos que ele morreu. Como hoje, fazia sol. Mas não estava seco como agora, em dezembro os gramados são tão verdes que parecem pintados à mão. Não havia flores nos ipês, mas em compensação as espatódeas estavam no auge de sua floração carmim; de uma árvore do cemitério, caíram algumas pétalas vermelhas no momento exato da descida do caixão.

Quase quatro anos. Não saberia como dividir esse tempo, como "arrumá-lo" em retrospectiva. O único que sei é que estou entrando agora numa livraria, sinto as mãos geladas e, apesar do calor e da secura, suo frio. Antes de chegar aqui, pensava em coisas rotineiras, na lista de coisas que tenho a fazer, no vidro do meu carro sujo por algum passarinho sem que eu percebesse, na dificuldade de encontrar no mercado a escova de dentes infantil que eu gosto de usar e que desapareceu dos balcões, no conserto do meu computador. Refaço mentalmente os passos do trajeto da garagem até o segundo andar, onde fica a livraria. Aparentemente, nada ocorreu que pudesse provocar esses batimentos rápidos dos pulsos, as pontadas no peito, essa suadeira, essa estranheza.

E então, me lembro da vitrine da farmácia e do vidro de Omeprazol. Li algo anteontem ou ontem sobre esse remédio, ao que parece proibido agora pela ANVISA. Como ele ingeria diversos medicamentos fortes, especialmente nos seus dois últimos anos de vida, tomava Omeprazol para combater uma gastrite.

Insisto na leitura dos títulos, procurando a autobiografia de Philip Roth, que vi no catálogo que a editora enviou pelo correio. Esse suor vai passar, daqui a pouco isso acaba, como é possível, ter visto o Omeprazol na vitrine não pode ter causado isso. Não, o livro ainda não chegou. Busco outras letras nas prateleiras, quem sabe há alguma novidade de J. M. Coetzee, mas não há, já li todos os livros dele que vejo aqui. Praticamente agachada para ver as prateleiras de baixo, sinto uma espécie de tontura. Dura pouco, muito pouco, mas o suficiente para que uma violenta onda de calor surja de uma fogueira invisível e me cubra da cabeça aos pés.

Depois, por alguns segundos, não sei direito onde estou. Ergo-me, caminho entre as estantes, e de repente tudo volta ao normal. Sim, sou eu mesma, a de sempre, estou dentro de uma livraria, vim aqui rapidamente, o mal-estar vai passar logo, tudo isso é resultado da visão de um frasco de remédio. De novo em plena posse dos meus movimentos, dos meus passos, sinto uma enorme vontade de chorar. Mas não permito que se concretize, não quero lágrimas, não aqui, não agora, estou em um shopping cheio de gente, ia logo dar na vista.

Compro um livro de um autor desconhecido, para não perder o hábito, pois nunca resisti a livrarias. Vou ao toalete, retoco o batom, lavo as mãos, sempre me olhando no espelho para ver se há alguma marca visível do que ocorreu, mas tudo parece normal. Sim, é preciso parecer normal — uma das primeiras lições aprendidas na infância. É necessário ter compostura, ninguém precisa saber quando e quantas vezes estivemos na fronteira tênue entre a realidade e o delírio.

Já tive várias manifestações dessa coisa outras vezes, logo depois da morte dele eram mais frequentes e duravam mais tempo. Aprendi a lidar com elas e a reconhecê-las. Sei que surgem a partir de um estímulo geralmente banal, como o vidro de Omeprazol, mas só se apresentam em determinados dias, mais delicados e frágeis, se eu estiver muito cansada, preocupada ou triste.

Quando os episódios terminam, pode surgir uma saudade intensa ou o rebobinar de fitas das cenas ligadas à morte. Essa revisitação não é periódica, nunca se sabe quando aparece ou desaparece. As pessoas não morrem para nós quando morrem concretamente. Elas morrem muitas vezes, e vamos vivendo as mortes do pós-mortis.

Alguns, que têm pavor da morte, encaram de outra maneira, a meu ver equivocada: querem acreditar que existe um período certo, marcado no calendário para o luto; vencida esta etapa, estarão refeitos e as coisas voltarão a ser o que eram.

A vida nunca volta a ser o que foi, nada retorna por mágica. Cada peça é reconstruída, restaurada, emendada, encaixada em uma nova configuração, novo desenho, o único desenho possível para determinada pessoa — aquele que ela sabe ou pode fazer.

Como é um assunto desagradável, a fuga aparece como o caminho mais fácil. E há algumas pessoas que negam aos seus amigos o direito ao sofrimento. Que é cansativo, às vezes irritante mesmo, disso sabe melhor que ninguém aquele que sofreu a perda. Mas não há descanso possível que passe longe do cansaço das rebobinagens, das repetições, dos casos sobre quem partiu contados à exaustão. Cada detalhe do cotidiano serve de pretexto para o recomeçar da cantilena.

Creio que há algo que dificulta também, embora seja fruto de reflexões, estudos e pesquisas, existindo, inclusive, estatísticas sobre o assunto. Refiro-me aos prazos que os profissionais da saúde mental estabeleceram para o luto. Alguns dizem que dura um ano, outros que dura dois, e por aí vai. Não sei bem o que chamam de luto, talvez pensem nos primeiros tempos depois do fato. Ocorre que somos diferentes, e sofremos de modos diferentes. Ninguém é estatística e não tem obrigação nenhuma de comportar-se como tal.

Por vezes a pressão externa é tão forte que quem passou pela perda emudece, não tem mais coragem de falar no morto, pelo menos com alguns. Uma mágoa que me marcou profundamente nesses quase quatro anos foi motivada pela atitude de uma pessoa que eu julgava muito minha amiga. Meses depois da morte de José, creio que não tinha completado nem um ano ainda, essa pessoa comentou com um amigo comum que eu não saía do luto, que não conseguia escrever sobre outro tema, que tinha me tornado muito redundante e desinteressante e que não suportava mais ler meus textos.

O amigo comum — este sim, verdadeiramente amigo — me contou e fiquei perplexa com o egoísmo e, sobretudo, com a falta de empatia e de sensibilidade de alguém de quem eu gostava tanto. Com o passar do tempo, embora tenha gradativamente me afastado dessa pessoa, consegui perceber que o problema não era meu, era dela, pois lhe falta maturidade; não é uma pessoa adulta no sentido exato do termo. Ela sim tem problemas graves com a dor e com a finitude da vida.

 

 

 

setembro, 2016