©antti viitala
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Na juventude, ele descobrira a obra de um escritor. E apreciou-a tanto e absorveu-a com tal intensidade que chegou a lhe escrever através da editora, fascinado pela escrita do mestre. Uma maneira comum de contatar escritores, mas com um desfecho não tão comum: ficaram amigos e, quando ia à cidade onde morava o grande escritor, não deixava nunca de visitá-lo.

Nunca fora uma amizade de igual para igual, pois, além da significativa diferença de idade, moravam em regiões diferentes e as circunstâncias impediam o estreitamento da amizade. Mas ele fazia questão de cumprir certos ritos: todos os anos telefonava nos Natais e enviava exemplares de seus próprios livros a cada novo lançamento. O autor retornava as ligações, embora as conversas fossem curtas. No fundo, ele sabia que a amizade era recíproca.

No vinte e cinco de julho, dia em que se comemora o dia do escritor no país, ele pulou da cama bem cedo. Queria prestar uma homenagem a todos os escritores, mas ficou pensando como fazê-lo. Imaginou que a maneira mais adequada seria divulgar uma mensagem aos colegas por meio da figura de seu amigo, publicando um pequeno texto.

Deparou-se, contudo, com um problema: como fazê-lo, se o grande escritor — provavelmente em virtude de sua idade avançada, de sua artrite e até mesmo de seu temperamento um tanto arredio — não utilizava os meios eletrônicos? De que maneira poderia fazer para que ele recebesse a mensagem, que era dirigida também aos outros escritores?

Lembrou-se então que o filho do escritor, que também era escritor, tinha uma página em uma rede social. Redigiu cuidadosamente um texto enaltecendo as qualidades do conjunto da obra que tanto admirava, ao tempo que parabenizava os companheiros de ofício. Orgulhoso de sua ideia, postou a mensagem na sua página. Para assegurar-se ainda mais de que o amigo tomaria conhecimento de seu ato, resolveu compartilhar o texto na página do filho do escritor. Inocentemente, estava absolutamente convencido de que a resposta, quando viesse, seria calorosa.

Dedicou-se às suas atividades. Ficara devendo a escrita de dois contos para revistas eletrônicas, tinha aulas para preparar, pois produzia quase que obsessivamente. Durante algumas horas não se lembrou mais do assunto, dando o caso por encerrado. Julgou ter cumprido o seu papel reverenciando o mestre que o incentivara no início da carreira literária. Sentia-se realmente grato pela atenção que tinha recebido durante décadas.

Quando acessou novamente a rede social, viu que tinha várias mensagens. Entre elas, havia uma do filho do escritor. Leu-a antes de todas. E ficou perplexo. O filho, enfurecido, passou-lhe uma descompostura que nunca recebera de ninguém. As primeiras frases foram de concordância em relação à qualidade da obra do pai. Logo depois, o tom do discurso mudou radicalmente. O escritor filho lhe disse que não o conhecia, não era seu amigo, e que a amizade virtual fora aceita somente por se tratar de um amigo de seu pai. E que nunca mais aquele gesto deveria ser repetido, pois ele, filho, também era escritor, publicara vários livros, e que a página lhe pertencia. Se algum dia o pai tivesse uma página própria, aí sim, o desafortunado escritor poderia escrever o que bem entendesse. Antes disso, não. Sem ação, de queixo caído, ele, que só queria agradar, percebeu que não só tinha sido excluído da lista de amigos virtuais do escritor filho, como também lhe tinha sido negado, tecnicamente, o direito de resposta. Nada a fazer, portanto, a não ser amargar o baque sozinho.

Chegou a duvidar do que lera, imaginou que não enxergara bem, que poderia estar com problemas de visão, que fora acometido de um lapso mental ou talvez de um problema neurológico surgido repentinamente. Fez de conta que não era especialista em análise do discurso. Leu e releu o texto, trocou a ordem das palavras, fez a leitura de baixo para cima, mas realmente não havia dúvidas. Sem supor de modo algum que algo assim pudesse ocorrer, concluiu que o filho do escritor se sentira profundamente ofendido. Mais do que isso, tinha se colocado na posição de vítima de uma injúria ou algo do gênero.

Como era do seu feitio, fez o velho exercício de se colocar na situação do filho. Lembrou-se da letra da canção "Pérola negra", que adorava, e tentou usar a roupa que ele estava usando. Fez outros exercícios de empatia, mas todos foram vãos.

Concluiu então que eram pessoas muito diferentes. Se seu pai tivesse sido um escritor, ele sentiria um imenso orgulho e apreciaria aquela homenagem. Certamente teria escrito ao autor do texto, agradecendo e elogiando a ideia.

Decidiu não contar a ninguém o ocorrido. Seria necessário esperar até que a ferida cicatrizasse, até que a vergonha desaparecesse, até que a sensação de injustiça se esfumaçasse. Não havia absolutamente nada a fazer.

Naquela noite, antes de dormir, entregou a situação aos arcanjos. E lhes pediu com muita força que um dia o escritor filho do escritor não pensasse mais naquilo. E que ele, também, recebesse uma das graças mais sublimes que existem. A graça do esquecimento.

 

 

 

março, 2016