©witchoria
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Existe um tempo na vida em que a gente só vive. Vai deixando-se viver, vive sem pensar muito, por ser o que se espera que a gente faça, sem uma reflexão mais abrangente sobre o que se faz. Depois as coisas mudam — e isso pode acontecer por diversas razões, variando de pessoa para pessoa — em geral quando se toma um baque muito forte, ou se sofre uma perda grande, ou simplesmente por que os anos vão se passando e se sabe que não há mais tanto tempo assim. O futuro já é bem menor que o passado, em termos objetivos, especialmente para as pessoas mais introspectivas, que têm uma necessidade vital de analisar o que sentem, o que viveram, de refletir sobre os seus aprendizados, seus equívocos e as suas dores.

Acalentei durante meses a ideia de escrever a biografia de uma personagem muito interessante e viajei ao Nordeste para concretizá-la. Contudo, ao me encontrar com as pessoas relacionadas ao projeto, percebi que não havia a menor possibilidade de dar certo. Senti uma decepção e uma frustração enormes e, ao mesmo tempo, uma necessidade urgente de não me deixar abater. A tristeza veio acompanhada de uma compreensão bastante profunda dos motivos apresentados por essa pessoa para não aceitar ser biografada. O problema é que tenho o temperamento jiboia, ou seja, preciso fazer a digestão e o processamento dos sentimentos e das emoções solitariamente, antes de tomar qualquer iniciativa. Sem jiboiar, não consigo passar ao próximo capítulo. Mas há que se tomar cuidado para que a etapa jiboia não demore, não ultrapasse um tempo específico, pois existe sempre o temor de que forças subterrâneas me empurrem e me façam descer a cavernas ainda mais fundas, ainda mais ocultas, cuja subida pode ser problemática. A etapa jiboia deve ser vivida, mas sem exageros. É necessário virar o jogo, antes que seja tarde demais. Há um ponto certo para isso, o ponto de mutação.

Deparei-me com a questão de como justificar a viagem (para mim mesma). Afinal, vim para fazer algo importante, longo, trabalhoso e que agora não faria mais. Não estava preparada para uma simples viagem turística, pois tinha uma expectativa muito diferente, além do investimento de conteúdos de naturezas complexas e sutis.

Horas depois, indo ao supermercado, caminhando, dei de cara com um arvoredo diferente, coberto de flores lilás. Chamaram-me a atenção as estranhas dobras das pétalas e parei para olhá-las de perto. Nunca tinha visto tal espécie. Observando-as um pouco mais, surgiu uma ideia completamente desvinculada da planta: lembrei-me de um antigo desejo de conhecer Fernando de Noronha, que sempre me parecera um destino muito longe e caro, trocado várias vezes por outros, sempre adiado. Em seguida, pensei que uma viagem curta a um cenário deslumbrante, relativamente perto agora, ou pelo menos muito mais próximo do que da minha cidade de origem, poderia ser uma etapa interessante para suceder a fase jiboia.

Seria uma maneira de me presentear, mimar-me um pouco, depois do desejo frustrado. Observando longamente a flor, a ideia foi tomando forma. Claro, Fernando de Noronha, por que não? Por que não transformar o sonho longínquo em algo palpável? Por que não pegar a ideia sempre no ar, aquela a ser realizada um dia, talvez, quem sabe, resgatando-a do plano do possível e nunca provável?

Feita a compra, arrumei as coisas e saí em busca de uma agência para acertar os detalhes da viagem. Essa corrida da fase jiboia à próxima etapa não pode ser determinada por ninguém. Só a gente sabe onde se situa exatamente o ponto de transição e o quão rápido deve-se andar para ir ao seu encontro.

Chega um momento, na vida, em que viver não é mais tão natural, não basta levantar-se, fazer as tarefas cotidianas e dormir. Torna-se necessária uma recriação constante, é preciso inventar e inventar-se o tempo todo para se manter de pé com alguma dose de verve, ainda que pequena, com alguma alegria, algum sentido. Uma viagem a Fernando de Noronha pode parecer algo fútil, dispensável, acessório. Mas, nesse caso, não. Deixa de ser uma viagem para ser a viagem, porque foi a única coisa que desejei após a frustração de um intenso desejo. Não se trata de substituição de um desejo por outro; trata-se de pegar o único desejo surgido no horizonte, agarrá-lo com mãos firmes e segurá-lo com força, para salvar-me do naufrágio.

É reconhecer, sobretudo, que a vida não é feita apenas de projetos literários e que a realização de ideias que envolvem mais de uma pessoa só é possível se estas forem comuns. Fernando de Noronha surgiu como o único desejo, a única lembrança que me ocorreu após o insucesso do plano anterior. Imagino que tenha outro sentido, são muitas ilhas, muitos Fernandos de Noronhas. Eu poderia deter-me, por exemplo, e ficar no lugar onde me encontro. Mas, sabendo de mim o que sei, deter-me agora seria mais ou menos como deixar-me vencer. Ficar parada seria me entregar à tristeza. Não sei o que será Fernando de Noronha e muito menos o que virá depois.

 

 

 

junho, 2016