*

 

 

gosto muito da beleza dos segundos

que existem entre minha boca e tua alma

nosso beijo

 

 

 

 

 

 

Antes do dia 23

 

 

uma superfície fácil

uma tática displicente

toca

com os olhos

os teus olhos

um zoom

que liberta o poema

 

não morrem

os novos

as moléculas

de átomos

criados pelo beijo

elipses latentes

que frequentam as nossas manhãs

 

não morrem

carnívoros os amores

um simples

que projeta

os corpos

à esquerda

nus

 

a luz

que sopra

a ideia

que cintila

o eu

imerso

na manhã do teu umbigo

 

 

 

 

 

 

Humano

 

 

um coletivo de ilhas submersas

ondas galácticas

um universo

dezoito planetas despovoados

um abismo absoluto

aço

pedaço

felpa

gota d'água

grão de tudo

a saia a asa

a asa e o mandurim voam

o duplo salto é oco

o lavrador

agricultor

o agrônomo argentino

as maçãs

as maçãs argentinas

o cadarço

o passo

a bolha e o eu

o eu é uma bolha

 

"apareciam primeiro entre os dedos das mãos, pequenas, rosadas.

comichava um pouco e, quando eu as apertava entre as unhas, liberavam

um líquido grosso que escorria abundante, entre os dedos até pingar o

chão".

 

o eu é uma bolha na pele

o eu é uma bolha na pele com sangue

uma bolha na pele com soro

uma bolha na pele com pus

o eu é uma bolha na pele com 340 mulheres dentro

uma bolha na pele com 340 mulheres apedrejadas no Irã

uma bolha na pele com 340 mulheres estupradas esta manhã

uma bolha na pele com 120 mil pistolas americanas

e um encontro

uma bolha com música

uma bolha com música de Billie Holiday

Blue moon

You saw me standing alone

Without a dream in my heart

Without a love of my own...

 

uma bolha com dengue

uma bolha com o choro de 190 crianças tristes

uma bolha com 2 bichos cabeludos

e uma bergamota

uma bolha

uma bolha de ferro com lantejoulas

e dois laços

uma bolha com 815 refugiados

uma bolha de veludo

uma bolha de plástico

uma bolha com 139 palmadas

uma bolha aberta

uma bolha fechada

uma bolha que não tem escrito em inglês

please save me now

uma bolha com uma risada

ha ha ha

que estoura

uma bolha

uma bolha

uma bolha

 

 

 

 

 

 

Móvito

 

 

tem sempre uma dor

que se esconde entre uma cadeira e outra naquela sala estreita

 

há mais de fios de vida

e de morte

que vivem dentro dos segundos

entre os passos

até o banheiro ou até a sala verde improvisada

 

os horizontes

são queimaduras

de água

fervendo

fervendo

fervendo

a água corre dos dois olhos ao mesmo tempo

no tempo o aborto é um crime

no tempo

o aborto existe

 

o aborto existe

o aborto existe

o aborto existe

 

os buracos

negros

são seus

os buracos

brancos

são seus

os buracos

os pedaços

os acertos

os copos

quebrados

os cacos

de alma

ela diz que tá doendo

doendo

doendo

doendo

as agulhas

ou a residência de estados não definidos ainda

não interessa quantas rosas colombianas irão nascer

ou quantas palavras existem com mais de 7 sílabas

não importa

 

não importa o pêndulo

nem as revistas

nem o sino da igreja

sinalizando um pecado grave

não tão grave como aqueles dois meninos bolinados pelo padre

 

seus pés

seus pés

seus pés

sua mente

seu ventre

e dedos livres

ao rés do chão

ao bordel francês que não existe mais

a música que você quer ouvir

o entre parênteses

é outro

das clínicas e das 7,5 milhões

de mulheres clandestinas

do concreto

das despedidas

que não irão acontecer

do corpo inteiro e mais uma parte

do dia seguinte

imprescindível

perdão

pensar

de novo

sobre pedras

jogadas

sobre torres

e muros

sobre o que existe

sobre uma morte

e agora,

é um silêncio

 

 

 

 

 

 

Outro

 

 

a minha alma

lágrima

meu espírito

hélice de ossos magros

sempre hei de ir em rasantes íntimos

e encontrar o que eu não preciso

o que se move e

quando quebra

estilhaça-se

de tudo que eu fui

eu parto

e antes que coloque máscaras na minha cara

para aguentar o pesofardo meu

eu parto de mim

e parte muda

oxida

decompõe-se

partir é deixar parte ir

 

 

 

 

 

 

Dois

 

 

somos coisas entre as coisas

talvez algo além de

fígado

bacia e pernas

algo além do ilíaco e um pescoço descoberto

 

talvez a gente seja

a voz quando embarga

ou aquilo

de tentar conservar o minuto

 

talvez sejamos

uma manhã

 

não,

talvez a gente seja

a densidade do silêncio que cabe numa manhã

 

ou talvez sejamos uma espinha dorsal

não,

talvez a gente seja o arrepio

de uma espinha dorsal

 

ou as nossas gavetas as nossas camisetas pretas

talvez a gente seja apenas coisas entre as coisas

 

ou talvez

a gente seja

tudo aquilo que cabe

na expectativa dos segundos

entre estar sozinha

e o mexer da maçaneta

 

 

 

 

 

 

Procura-se a nudez

 

 

os joelhos parecem andar sozinhos

atrás algum fundo que esconde os barulhos dos

passos rápidos

dos passos lentos

dos passos cegos

desconcertados

o quarto ao lado

a impermanência

o mundo crispando cedo nos arames do peito

a tua voz aguda:

 

"tudo depende tudo depende"

 

a impressão de eternidade se desfaz

pictórica

desfaço eu

e vejo que é apenas um

como um sistema feito por engenheiros de barcos

algo para dar sustenção ao teto que é maior que o assoalho

 

"tudo depende"

carregar o peso

como pedras de cantaria

ou madeira tirada em mês que não tem R

é como se os cabelos derretessem na cabeça

na pele

escorrem fio a fio amarelos

até o ralo

oito gatos sobre as sobras do dia de ontem e uma Doroteia nua

trava uma guerra pessoal com

a morte em vida

tudo aquilo que come por dentro

um câncer, um aborto, formigas ou caramujos

a armadura as ervas daninhas

 

 

 

 

 

 

Oitavo andar

 

 

me asfixia

a latitude da América em que estou

a caneca de flores

a blusa listrada navy

você me chama

de minha olhudinha, de minha Brigitte Bardot

e é proibido não sorrir

 

percebo que estou

num ponto perigoso em que não se pode permanecer

todos seguem adiante

cheios de olhos

vestidos

de armas na mão

egocêntricas

silêncios

desamparados

 

os homens se enganaram em relação ao amor

e eu tô agora

sozinha

planejando uma fuga

azul

dessa gaiola louca que é você

 

e isso já é um plano falido

algumas ideias ja nascem mortas, eu sei

 

Eu penso em você

 

 

 

 

 

 

A última madrugada de abril

 

 

a cabeça veloz

e a sala vazia

 

(é impossível te ver no meio de tanta gente

em meio a tanto barulho

em meio a tanta voz)

 

o sol lá fora pulsa

mas a culpa

mata os dias de sol

 

bebido o vinho

vem o tropeço

a madrugada

a impossibilidade da palavra

cada centímetro

meu

são 490 pedaços descosturados

 

há uma longa desordem

a luz que nos cerca, não

as tulipas

os sapatos

o jantar de ontem, não

 

as partes

esquecidas na cozinha

na antessala

no elevador

cada fio desconstruído

pela urgência

que se afoga

nos dias ímpares

nos dias pares

ao meio-dia

sob a sombra

dos telhados

cambaleantes

as linhas

na mesa

cintilam

cintilam

cintilam, não

acendo

um cigarro

acendo

a janela

a luz que me cerca

contínua

 

os edifícios

a cabeça

 

veloz

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Claudia Sehbe nasceu no Rio Grande do Sul, em 1984. Morou em Nova York, onde aprofundou sua produção poética. Hoje, vive no Rio de Janeiro e desenvolve um trabalho que une poesia e artes visuais. Publicou Somos Instantes (Olhares, 2016).