A invasão

 

 

A casa não era grande, pelo contrário. O caminho até o escritório era feito de alguns passos. Fácil tomarem o pouco espaço e abocanharem o que existia com fome de traças. Ele não percebia porque estava bêbado. Quanto mais ele bebia, mas elas avançavam loucas. Entravam por todos os vãos possíveis, afunilavam-se na máquina de escrever, contorciam-se lá dentro como minhocas. Faziam um som pequeno e confuso, eram vermes em agonia. Ele bebia o vinho bom. Não tinha mais ninguém naquela casa, que parecia um quarto. O homem tomava mal conta de seu mundo minúsculo e pensava que nada estava acontecendo. Mas estava. Aos poucos, elas entravam nos livros, enchendo-os de perturbação. Se tivesse alguém ao lado, uma irmã mais velha que o ajudasse a ver o que ele não via, ainda que silenciosa em seu canto fazendo tricô, talvez ele pudesse perceber o tamanho do horror que avançava e tomava conta da casa, mas não. Ele estava só ao lado da garrafa de vinho. Enquanto isso, elas surgiam em nuvens como marimbondos e pareciam cegas; guiavam-se por uma espécie de faro ou antena — eram bichos que avançavam? Queriam tomar conta de tudo o que estava escrito e, especialmente, do que ele, embriagado e feliz, tentava escrever. Ele deixava porque não percebia e — quanto estrago! — o que suas mãos produziam eram um reflexo do horror: elas deixavam manchas, rastros imundos por onde passavam e invadiam. Que falta fazia a irmã que ele não tinha, aquela que tricotava, e com quem poderia dividir a suspeita de que alguma coisa muito estranha o acometeria de repente, tomando de assalto seu pequeno mundo guardado. Irmã que tricota faz falta, e a noite tomada não alcançaria a madrugada sem ela. Mas ele não sentia falta dela porque não tinha irmã, muito menos uma irmã que tricotava. A noite avançava. Quem o visse por trás não acreditaria na cena: o escritório infestado, a máquina de escrever completamente tomada. Nas estantes não tinha mais espaço para nada: estavam repletas de negras colmeias nojentas. As megeras famintas entravam em todos os livros e não se podia mais tocar em nenhum deles sem sentir o asco de também tocá-las. O pior, porém, não era isso. Em qualquer palavra que ele colocasse no papel, elas grudavam. Não havia frase que não estivesse manchada por duplos de palavras que não foram escritas por ele — eram sombras malditas. E o pior era que ele não via nada. Sua casa, as estantes, a máquina de escrever, a vida das palavras, tudo estava sendo tomado silenciosamente sem que ele percebesse. Foi então que pensou ter finalizado o conto. Este ele guardaria em uma gaveta como tudo o que havia escrito antes — não mostrava nada do que escrevia para ninguém. A gaveta onde ele guardou o conto estava igualmente tomada por elas. Saíam pela fresta como se pusessem a língua para fora. Eram bestas. Ele não viu. Não achou nada de estranho. Sequer releu o conto antes de tirar da máquina — quem sabe ele veria as intrusas ali, manchando sem dó tudo o que ele escrevera? Não releu, não viu, não suspeitou. Deitou mais um conto na gaveta que foi imediatamente tomado ainda mais pelas outras tantas de tocaia. E assim, sem perceber que fora tomado no mais íntimo de seu mundo, ele apagou as luzes do escritório. Deixou a garrafa de vinho vazia — realmente vazia por que esta elas não quiseram o vidro nem a bebida. Saiu na direção do quarto — eram alguns passos. Não sem antes fechar a porta do escritório e trancar ali um mundo cheio de horror e excessos. Quem as mataria? Ninguém poderia enfrentar aquele exército de lesmas invasivas se não pudesse antes enxergá-las. Ah, onde estaria a irmã que tricotava, mas que não existia porque o homem não tinha irmã? Muito menos uma irmã que tricotava. Pobre homem. Não tinha uma irmã que tricotava.

 

 

 

 

[imagens ©Caitlin McCormack]

 

 

 


 

 

 

 

Claudia Nina. Jornalista e doutora em Letras pela Universidade de Utrecht, na Holanda, com tese sobre Clarice Lispector, publicada pela Editora da PUC-RS (A palavra usurpada, de 2003). Trabalhou como professora-visitante na UERJ, em Teoria Literária. Dessa experiência, nasceu a base da pesquisa para seu segundo livro: A literatura nos jornais: crítica literária dos rodapés às resenhas (Summus, 2007). O livro A barca dos feiosos, com ilustrações de Zeca Cintra, foi sua primeira obra de literatura infantil, lançada em 2011. O texto, que fala de diversidade, foi apresentado como trabalho final de curso do Publishing Management — O negócio do Livro, pela Fundação Getúlio Vargas. Pela Editora DSOP, publicou seu segundo livro infantil, Nina e a Lamparina, com ilustrações de Cecília Murgel. Também publicou o perfil biográfico ABC de José Cândido de Carvalho (Editora José Olympio), e os romances Esquecer-te de mim (Editora Babel, 2011) e Paisagem de porcelana (Rocco, 2014). Os lançamentos mais recentes são os infantis A misteriosa mansão do misterioso Senhor Lam (Vieira & Lent, 2015) e A Repolheira (Aletria, 2015). Participou, em 2014, da antologia Vou te contar (Rocco), com o conto "Na solidão da noite". É colunista da Revista Seleções (Reader's Digest). Em 2016, participou da 3ª edição do Printemps Littéraire Brésilien e foi finalista do Prêmio Rio de literatura.

 

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