nathalia, 22, bdsm

 

 

tirou minha coleira

e disse que eu estava livre

 

foi a única vez que machucou

 

 

 

 

 

 

guerra, 33, vinte de estrada

 

 

o segredo

é o cochilo depois do rebite

 

você toma

de preferência com a janta

e vai dormir logo em seguida

depois de duas horas o corpo acelera

o ponteiro bate lá na direita

e aí,

meu amigo,

é só estrada

mão couro volante

pé pistão acelerador

 

nesse voo

rebitado

você faz coisas que até deus desacredita

peso em duas rodas

ultrapassagens no gato vermelho

curva

motoqueiro

velhinha

é quando começam as alucinações

 

mesmo com os olhos querendo mais

fome de linhas amarelas e brancas

dançando no asfalto

é bom dar um

res

pi

ro

tomar leite quente

cortar o efeito

jantar

depois já entendeu, né?

 

rebite

cochilo

chave

    ronco

poeira

gato

velhinhas

 

já fiz juazeiro-são paulo

em 36 horas

2.200 km

minha mulher até deu festa quando cheguei em casa

meu chefe deu um sorriso

e uma nova encomenda

 

daquela vez pro norte

oito dias de BR e terra até santarém

e mais balsa para manaus

:

pranchão de madeira

com floresta dos dois lados

e oito ou dez caminhões em cima

é bom para descansar

fazer comida sossegado na boleia

 

fora as meninas

que sobem logo no começo

R$ 30 a hora e nem um centavo a menos

a maioria já meio passada

tribo de maracujás

mas é monopólio, né?

não tem jeito

 

todo mundo come

 

só precisa ficar esperto

pra não mostrar que tem dinheiro

ou carga valiosa

senão elas chamam os piratas

e, aí, para onde você vai correr?

quer se jogar no rio

com piranha e jacaré?

 

mas meu maior medo não é esse

nem a morte

já vi muito amigo cair na próxima curva

olhos estourados de rebite

parada cardíaca

última garfada de feijão com farofa

depois de um bocejo

meio do sertanejo

entrada de cidadezinha

 

 

não existe mais

sem entrega

doze marchas

borracha gasta de pneu

 

morro de medo mesmo é de ficar acordado

as pernas tremem a cada início de janta

na hora do pai nosso

e do comprimido

só de pensar que meus cílios não vão se encontrar

 

dormir é uma benção

que tiram de mim

 

sabe o que é passar

uma semana desperto

com saudades da mulher

e ver o sorriso dela

em cada pulo do velocímetro?

 

sentir o perfume

que comprei de aniversário

em toda coxa de puta

que deita no colchão magro

em cima do sistema de suspensão

e enquanto gozo

ouvir

no gemido de outra

minha preta pedindo mil vezes

para comprar um novo divã

e não piorar minhas dores nas costas?

 

sabe o que é ver seus cachos morenos

em todas as barracas de fruta de acostamento?

 

a cada atendente de pedágio

em todo centímetro de rua

no último volume do rádio

nas placas de velocidade

no carro indo para a praia

nas luzes do painel

nos mosquitos do para-brisa

nos muros pichados

no reflexo dos óculos

na rachadura do retrovisor

na espuma saindo do banco

no letreiro de motel

 

e não poder dormir para esquecer?

 

 

 

 

 

 

marcela, 43, casada

 

 

matei, sim senhor

porque quis

não, até que era bonzinho

na gaveta da cozinha. uma daquelas grandes, sabe?

isso, ele estava no sofá

de costas

não, não me viu

dei dois passos e a lâmina escorregou para a cabeça dele

não tirei porque mancharia ainda mais o tapete

ora, se sabe, por que pergunta?

desculpe. sim, o corpo ficou lá

depois saí

mansão. era muito rico

não. deixou tudo para as meninas

eu sabia, sim senhor

porque quis, já disse

cansei de subir em pau de sebo. deslizar fácil não tem graça

sim. mas vou ficar muito tempo?

é que deixei a panela no fogo

 

 

 

 

 

 

andré, 4, deus

 

 

meu deus é um inseto

de corpo besourento

perninhas articuladas

olhos tão miúdos que somem em exoesqueleto crocante

casquinha que faria clact

de barata amassada

à menor pressão dos meus pés

o que eu jamais ousaria

afinal

adoro suas patinhas traçando rotas por minhas bochechas

incitando-me a uma gargalhada gostosa

cheia de dentes

divina

andança que não se priva às maçãs do rosto

mas vai por todo o corpo

 

meu deus é tão pequeno

que conhece todos os meus caminhos

sobe-me pelas ancas

ziguezagueia pelos dedos

caminha pelos mamilos até deixá-los durinhos

e só então parte para a boca

arisco, sisudo

detesto essa segunda parte

até sair por uma das narinas

com uma pose feliz

onipotente

e então rimos por horas

ele na minha barriga

sentindo o movimento do diafragma

tal qual um parque de diversões

 

certo dia, quando briguei com o anonimato,

coloquei-o no bolso

ele se lambuzava com o calor das minhas coxas

levei-o à sala

e, com todos reunidos assistindo à televisão,

trouxe-o à luz

ao mesmo tempo em que uma tsunami de interjeições devastava os móveis

                a TV ficou imprestável

 

"meu deus, é um inseto?"

 

justamente

meu deus era um inseto no meio daquele reboliço

à caça do inseticida que desse cabo

de figuras apoteóticas

 

diante de tal assombro

só havia uma coisa a fazer:

                  recolocá-lo na calça

                  e correr

parei no jardim

escolhi um cantinho de terra fofa

                  o cheiro da laranjeira ditava o pôr do sol

e tirei do bolso dois palitos de fósforo

                  mas com muito cuidado

                  afinal

                  não se mistura deus e fogo

minhas mãos tremiam frente à solução do impasse

só assim eles aceitariam

a ideia era genial

                  já teriam encontrado o veneno?

                  

prendi os pauzinhos perpendicularmente

e colei meu deus na cruz improvisada

                  com a ajuda do chiclete que mascava na hora

                  framboesa

deixei-o ali

vestindo uma armação tosca de madeira às costas

com uma pose nada usual

exoesqueleto grudado em massa mascada

olhinhos cheios de lágrimas

                  mas não podia vê-los

                  eram tão pequenininhos

 

a hora era sem sombra

e eu também

 

meu inseto é deus

 

 

 

 

 

 

carolina, 15, queimou

 

 

pegaram tudo

 

geladeira armário

banco cadeira fogão

cama pia toalha TV

colchão

roupa discos tênis bicicleta

copo isqueiro baralho

 

nenhum livro

 

a gente tinha acabado de montar a biblioteca

bem ao lado da vendinha

:

canjica

temperos

bolo

doces

tortas

 

e livros

sempre à mão

 

queimou tudo

 

foi um estalo de noite

aquele laranja

pintando todas as casas

e uma correria

para salvar o importante

 

ombro a ombro

de pijamas

ficamos em cima do morro do campinho

vendo o fogo lamber nossas vidas

 

alguns até ajudaram os bombeiros

a controlar a fome dançante

enquanto eu gritava para jogar a água do outro lado

salvar a biblioteca

 

ninguém ouviu

queimou tudo

 

de manhã

enxada na mão

vizinho era barata tonta

cachorro sem dono

olho baixo

um chinelo de cada cor

costas apoiadas no carro

lotado de gente sem casa

colchão no teto

homem vestindo roupão da sogra

ferro retorcido

cinza onde era vermelho

marrom onde era azul

árvore sem folha

camiseta na cabeça

 

fita amarela

em volta do meu crematório de histórias

 

queimou tudo

 

menos

uma página de drummond

e um vaso com planta

palito de sorvete fincado na terra

que seguiram verdes

no amontoado de telhas e tijolos

quebrados

 

 

 

 

 

 

priscilla, 19, dois três sete

 

 

o que mais me irrita aqui dentro

é o espelho em forma de losango

 

mais que a árvore de natal

encostada no pole dance

ou que os tapas na bunda

e meu sorriso cimentado para não desagradar o cliente

mais que pau de obra

cavocando o meio das minhas pernas

como se procurasse petróleo

mais ainda que o grupo de amigos

tão bêbados

que nem conseguem fazer o pau subir

mas exigem que continue chupando borrachas molengas

até dar câimbra na boca

 

o vidro irrita mais

porque não instalaram outro

e é tão pequeno

que a gente mal pode retocar a maquiagem

 

já reclamei um milhão de vezes

pedi para colocarem um dos grandes

no teto de cada quarto

o que agradaria os rapazes

e me ajudaria um bocado

 

mas não

sempre dizem a mesma coisa

é muito caro

não temos verba

quem sabe no mês que vem

 

o que ninguém imagina

é que, se chego em casa

de manhã

borrada

roupa amassada,

meu namorado nem me olha

vira de lado

sem dar bom dia

um beijo no pescoço

ou puxar meu cabelo

 

de propósito

 

pois já está careca de saber

que adoro quando ele faz isso

e que a culpa

é do maldito espelho losango

que não deixa eu me arrumar

quando saio do trabalho

 

 

 

 

 

 

polaco, 26, procurado

 

 

— não

— porque é muito caro

— já disse que não

— porque seu presente de dia das crianças está comprado

— chega, maurício. tenho que trabalhar

— olha, é a última vez que falo. vou precisar dizer de novo?

— se continuar a chorar, vou dar um bom motivo para derramar essas lágrimas

 

frente a tamanha insensibilidade

precisei resolver a questão

por mim mesmo

 

subi num banquinho

alcancei a última prateleira

e, nas pontas dos pés,

peguei o urso de pelúcia

que tinha acabado de pedir

(na verdade, implorar)

para minha mãe

 

escondi meu novo amigo

dentro da camiseta regata

e marchei até o segurança

da loja de brinquedos

com passos firmes

última fronteira da liberdade

ultrapassada com a convicção

dos que têm o mundo a seu favor

 

ou quase

 

mamãe logo descobriu

as orelhas felpudas

saltando pela cava da manga

 

— desce

— não tenho filho bandido

— aqui é o carandiru, maurício. lugar de ladrão

— já falei para descer

— vai ficar aí para sempre

— não quis roubar a loja? arque com as consequências

 

ainda escuto o barulho do carro partindo

como se fosse hoje

 

mas ela logo voltou

deu só uma volta no quarteirão

enquanto eu chorava sozinho

em frente à caixa de grades

 

um susto

disse

uma lição

para não fazer de novo

 

deu certo

nunca mais cheguei perto de um presídio

 

quando meus colegas perguntam

como nunca fui pego

mesmo depois de tanto corre

e oito policiais mortos no currículo

sempre digo que a culpa é da minha mãe

que me ensinou

aos cinco anos de idade

a maior lição de um homem

:

jamais usar regata
 
 
 

 
 
 

lúcia, 51, canhota

 

 

a morte do meu pai

é minha lembrança mais bonita

 

estávamos nós quatro na cozinha

eu

mamãe

vó marta

e meu irmão

quando veio a bomba

 

— papai morreu

 

vestida de rosa e bolinhas amarelas até o tornozelo

vovó se levantou

subiu no banquinho em frente à pia

esticou-se para alcançar o pó de café guardado no armário

e disse lentamente

enquanto colocava a água para esquentar

 

— calma, lucinha. nós já vamos vê-lo

 

entramos no landau azul

chumbo

e logo imaginei meu pai da mesma cor do carro

algodãozinho no nariz

terno preto

gravata fina

 

mas quando chegamos ao porão

em que meu velho tinha dormido para sempre

quase caí para trás

 

meu pai estava enforcado

mas não era um morto qualquer

caído

frouxo

flácido

 

ele morreu enforcado

em um quarto colorido

cheio de brinquedos

vestido de palhaço

e com milhões de bexigas amarradas no pé esquerdo

tantas

mas tantas

um exército de bolinhas cintilantes

que puxava o corpanzil de 120 quilos pelo tornozelo

em direção ao céu

e só não o levava para a lua

porque a corda amarrada ao pescoço

insistia em fazê-lo flutuar de ponta cabeça

 

meu pai morreu enforcado

espelhado

ao contrário

invertido

 

ele sempre me surpreendia

aquele bandido

até na morte tinha que fazer palhaçada

 

deitei no carpete cinza

olhei os cabelos feito morcegos ao meio-dia

e adormeci com o cheiro forte de café que inundava o ar

 

 

 

[Poemas do livro Alarido. Patuá, 2015]
  

 

[imagens ©harry callahan]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Bruno Molinero é jornalista. Foi vencedor do prêmio Jovem Jornalista, do Instituto Vladimir Herzog, e representou o Brasil no World Event Young Artists, em 2012, na Inglaterra. Seu livro de estreia, Alarido (Patuá, 2015), faz parte da coleção Patuscada 2, projeto premiado pelo Proac.