©mira nedyalkova

 

 

 
 

 

 

 

 

ANTROPOÉTICA

 

 

engoli

a poesia

inteira

dentro da minha boca suja

de batom vermelho

 

mastiguei

a poesia

com meus dentes civilizatórios

comi

as suas carnes

degustei-lhe

os ossos

 

digeri

a poesia

que fundou um império

no meu estômago

criou raízes em meus

intestinos

tocou Chopin nos

meus órgãos

 

caguei

a poesia

mas

seu rastro

me ficou

 

 

 

 

 

 

ANTROPOFÁLICO

 

 

a poesia

me beija sussurra

sacanagens no meu ouvido

lambe o meu

pescoço apalpa

meus peitos passa a

língua

nos meus mamilos rosados

 

a poesia

me pega de jeito me

joga na parede

enfiando a mão na minha

calcinha correndo os dedos

famintos sobre

minha pele

doce

 

a poesia

me chupa gostoso

prova o meu

gosto

me provoca me

morde me dá o

gozo

 

a poesia

me come

me penetra

me descobre me revela

gozando em cima de mim

mas eu não cuspo:

engulo

 

 

 

 

 

 

NA CONTRAMÃO DA GRAVATA

 

 

às vezes

lendo o cânone

me bate

uma vontade de ser

sujeito lírico neutro bem-resolvido ótimo.

 

porque se eu

fosse

bem-resolvida poderia

tentar

resolver todos os problemas do mundo.

 

mas antes

sequer

de terminar o raciocínio

meu útero

bate na porta:

esse mês

não

 

 

 

 

 

 

CORPOÉTICA

 

 

                   Ouve-me então com teu corpo inteiro.

                   Clarice Lispector

 

 

a palavra

— corpo erótico —

se escreve

na minha pele

se inscreve

por debaixo

de mim

 

assim

livro-me

da frágil finitude humana

e me faço livro

 

de corpo

e palavra

              vivo

 

 

 

 

 

 

COTIDIANO

 

 

todo dia ela faz tudo sempre igual

um sacode

atrás do outro

 

privado

 

ô mulher

limpa meu chão

esquenta minha janta

 

público

 

ô gostosa

muito delícia

que rabão

 

reunião

 

ô querida

traz um cafezinho pra nós

executivos

 

particularmente universal

 

andando na rua

no meio de uma epifania

devaneando tecendo

impérios de tinta

borbulhando

ideias geniais ela

construía um poema na cabeça

intenso re vo lu cio ná ri o

por fim

com maestria

usando a pena mental das poetas urbanas

ela

delineava o verso último

 

mas ele

achou a cena muito estimulante

e a estuprou.

 

(jamais conheceremos

aquela revoluç

 

 

 

 

 

 

ROLETA RUSSA

 

 

vou preenchendo minhas lacunas

como um estressado pinta

seu livro de colorir

 

porém

no lugar de cores

a minha paleta

tem

 

dedos

balas

poemas

problemas

 

e pinto

 

com meus consolos

tolos

me penetro:

enfim

consolando-me

 

 

 

 

 

 

CHAMAMENTO AO AMANTE

 

 

                   Meu chamamento? Sagitário

                   Hilda Hilst

 

 

ô

guitarrista

perício das cordas

baixista

arqueiro que me acorda

homem violonista

certo da tua destreza

viola a barreira entre nossos corpos

— teus dedos meu violão —

e flecha-me

toca-me

como tocas teus instrumentos

 

 

 

 

 

 

ESPÉSSIMO

 

 

uma vez vi dois cães fodendo na rua

outra mosquitos fornicando em pleno ar

e nós

tão animais quanto eles

exigimos uma cama feita

e quatro paredes

para só assim

libertar nosso instinto

contido naqueles metros quadrados

 

evolução

ou frescura

 

 

 

 

 

 

INDECISÃO JUSTIFICADA

 

 

moro

numa esquina

confluência de duas ruas

 

cada uma

fica num bairro

confundindo as correspondências

 

hoje mesmo

recebi duas cartas

 

cada uma

pra um endereço

cada uma

de um amor

 

ambos

confluentes

no meu peito

 

assim

me vejo de novo na confusão

das escolhas

das esquinas

 

ferrou

sou de libra

 

 

 

 

 

 

DOMESTICAÇÃO

 

 

olha esse gato

tão domesticado

obediente

faz as necessidades

na caixinha

olha como ele se entretém fácil

com esse novelo de lã

tão manipulável

 

pensei eu

enquanto fazia xixi

na privada

durante o intervalo

da novela

 

 

 

 

 

 

VIRADA DE ANO

 

 

o bicho morto

na rua

fétido

 

o carro

passa por ele

veloz

 

quando

o sinal

vai abrir

fica alguns segundos

poucos

vermelho&verde

simultaneamente

 

é trinta e um

o carro passa

 

o cadáver do bicho

ano velho

fica pra trás

 

mas o cheiro de carniça

vai com a gente

 

 

 

 

 

 

A AUSÊNCIA? EU

 

 

guardo-a

dentro da caixa vermelha mais bonita

no canto vário da estante

___________

ela se exibe

pomposa redonda

sem fim ou início

dá adeusinhos

ao longe

marítima

com o tão feminino lenço branco

de renda

a ausência? eu guardo-a

sempre

bordada na caixa vermelha mais bonita

e transborda

espasmódica

pra fora

além

da borda

 

 

 

[Poemas inéditos]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Bruna Kalil Othero nasceu em terras belorizontinas, no ano de 1995. Estuda Letras na UFMG, com ênfase em literatura brasileira. Publicou, em novembro de 2015, seu primeiro livro, Poétiquase, pela Editora Letramento. Mais aqui: brunakalilothero.weebly.com.