CLARIDADES

 

 

Amar é para onde vou, minha vocação absoluta.

Veja a renda de meu vestido, toque-a, não há luta

nem armadilhas: apenas um vestido rendado.

E essas flores, e esse campo aberto, e esses teus dentes?

Deus, vejo Deus, nesse intervalo entre mim e o sentimento

de semelhança contigo, rindo e comendo as sementes

que nos plantam um no outro, sem qualquer retorno.

 

São prodigiosos nossos encontros por dentro

como quem da rosa não tira os espinhos, e fura os dedos

com o vento; e nada entende de poesia nem de semeadura,

mas faz da ternura coisa farta, enchendo a mesa de uma grande casa.

Percebes que não há diferença entre um homem e uma mulher e Deus?

Cósmicos, nos encontramos vivos sem sabermos a que veio

essa tarde; e, maior, essa claridade, crescendo vívida em nossa carne.

 

 

 

 

 

 

O TEMPLO

 

 

Olhar bem essa geografia

que desce do pescoço aos pés:

relvas, marcas e faróis.

Vislumbrar as costas, o dorso,

caminho de girassóis voando

até os olhos, profundos, risonhos.

Saber de cor esse mapa

braços e antebraços,

cotovelos e coxas.

E mais,

esses pelos

enraizados no corpo:

uma floresta espessa, devassa,

repleta de extravios e frutos

dos mais gostosos, como se o mundo

ali se representasse em fartura.

O rosto uma horta, um jardim

uma escultura, plenitude

de luzes, tão tarde, tão tarde...

É urgente que eu invada

o templo em seus ossos, e olhe

detalhe por detalhe, num alvoroço,

as carnes fartas desse moço,

suas curvas e fossos.

 

 

 

 

 

 

CERTIDÃO DE NASCIMENTO

 

 

Não sei em que reunião ordinária

resolveram que eu nascesse.

Não sei que insondáveis ventos

pediram que eu viesse.

1967. Novembro.

Em plena ditadura, recebi

logo de frente, uma granada

que fez com que meu coração

para sempre gemesse.

 

Não entendo acontecimento

tão vão, tão supérfluo, como esse.

Os alto-falantes do povoado

em profunda ironia

cantavam "Índia", enquanto

meu pai soltava um foguete.

Para que essa comemoração

tão besta? Para que essa festa

diante de raízes que se desfalecem?

 

Desde então morro dia sim

dia não.

Desde então a melancolia de ser

é um arremedo de intenção.

Desde então Hamlet me assombra

e Ofélia me aconselha

a amar os salgueiros

perto dos riachos

que habitam o quintal.

 

Virginia Woolf diz: 'não,

encha os bolsos de pedra

e morra com leveza:

a água te leva

mais leve, menos presa

à terra, à mágoa

desse nascimento

tão à toa; desse sofrimento

que nunca te perdoa'.

 

 

 

 

 

 

"O QUE QUER A MULHER?"

 

 

Seios táteis

Pelos no púbis

Clitóris em punho.

"O que quer a mulher?"

 

Freud sem testemunhos.

Ela quer um pássaro

com a faca do mundo

no meio das pernas.

 

 

 

 

 

 

NÃO SÃOTEMPOS PARA AMAR

 

 

Não são tempos para amar.

Calamos, preparando o silêncio

de nosso corpo desguarnecido.

 

Nem um lençol, nem um cobertor,

sequer um travesseiro:

nossas mãos se curvam sobre nós

 

para ampararem um sono que não veio.

 

Não são tempos para amar.

Dilatamos a memória do que somos

na tristeza imensa — do que não temos:

 

um riso, uma gargalhada, uma mesa repleta

desse conforto contemplado: a secreta alegria

de quem não está só

 

diante da morte de todos os pássaros

nesse tempo congelado e frio

pernicioso e fatal.

 

 

 

 

 

 

A VIDA E A MORTE

 

 

Entrei na barca de Caronte,

nua, como é preciso, para a barca

não afundar. Leve, lívida, marcada

a ferro, sangrando, como sói a um boi

sangrar. Mortíssima, pronta a atravessar

o Aqueronte. Sonhava com a figura de Menipo,

lendário Menipo, para poder rir.

Eu que não ria há milênios, desde que

me mandaram nascer.

 

Com o óbulo na mão, centavos em forma

de milhão, dei ao velho mal-humorado.

Meu ser acabado sonhava com risos, gargalhadas,

e a falta de Menipo, nessa jornada,

doía mais que a grave ferida

acolhida, sem querer, por meu espírito.

A falta de Menipo ali, perto do velho,

era a mesma lacuna que a vida me deu

 

dia a dia, inventando saber sobre o Mistério.

 

Mistério que agora descobria

nunca ter existido. A vida e a morte eram apenas

isso.

 

 

 

 

 

 

POEMAS CIRCUNSTANCIAIS

 

 

VI

 

 

Vou amar para sempre sua imagem

chegando, aos vinte anos.

Depois disso, tudo foi engano,

estrada que peguei errada, trem

sem trilhos, estrada que voltava

em vaivém, encruzilhadas

íngremes paredões,

juventude

desertada.

 

Me comprometi com a ausência.

Com palavras que não podem nunca

ser ditas. Me doei ao que sempre achei

que não era: apaguei a minha imagem

na parede, no grande livro

das mais desertas

circunstâncias.

 

Brusca, fiquei adulta.

E nunca mais te vi chegar, para

a pizza, para a música.

Nunca mais sua ternura

voltando da rua, pura,

para mim.

Eu achava que eu não merecia

a bravura do amor que eu sentia:

que era da largura da serra que nos cobria.

 

 

 

 

 

 

ESPERA

 

 

Tampe os buracos da fechadura

Não posso ver cenas mais fortes.

 

Fure meus olhos: não quero assistir

à tarde que se estende, vermelha.

 

Nem à primeira nudez do dia

se mostrando perversa e silenciosa

 

à estrada sinuosa, que se abre.

 

Peça às aves que não cantem.

Ainda não é a hora.

 

Peça ao dia que me acolha

na severa mudez, de outrora

 

e ore por essa espera que dói,

estrangulada.

 

Mas antes disso,meu amor,

livra-me de tudo que é feliz,

 

porque ainda não sou.

 

 

 

 

 

 

MINHA PÁTRIA

 

 

                   Para Você, que escreve com nobreza

 

 

Um português tão perfeito

que não sei se é seu corpo

que desejo

ou sua palavra em discurso

sua palavra como uso

mais propício

para a ternura.

 

Um português tão castiço

em solenidade antiga

e refinada

que estou a ver Machado

escrevendo

à sua Carolina

em simples lida.

 

Um português limpo, lírico

vindo do além-mar.

Camões, Pessoa, o Tejo

molhando meu olhar

debruçado sobre a sua escrita

que é a minha pátria

mais bonita.

 

 

 

 

 

 

MOÇO,

 

 

dê-me tuas mãos: são grossas, e as linhas buscam

outras linhas, fora do mundo. Os pelos dos teus braços

são fartos. Dê cá teus pés, que eu os lavarei

como as antigas senhoras faziam

com seus amos. Dê-me teus cabelos

que os penteio, fio por fio, como as devotas

nos santuários. Clamo teu nome, soletro

escandindo verso por verso.

Amo. Dê cá teu corpo, deite nessa cama

que vou decorar-te morto:

entender o vão que separa tua perna

da outra, o desenho que tua sombra

acolhe na parede; o desenho que teu pescoço

reflete do outro lado do meu rosto.

Dê cá tua vida, moço,

pois que há muito sou cuidadora

tenho jardins para o teu gosto.

 

Mas se nada disso quiseres, não peças pouso.

 

 

 

 

 

 

ANATOMIA

 

 

Carnes.

Barriga. Dorso. Cabelos.

Penhascos. Pelo nos braços.

Dantescos paredões. De frente.

Doce paisagem fálica.

Asperezas que se desfazem.

 

Quem criou esse corpo?

Pelo nas axilas, gigantescos.

Pés enormes, transatlânticos

Extensa curvatura de ombros

e uma ternura sempre escondida

nos flancos.

 

Pele do rosto resistente.

Assim como o resto do corpo:

forte. Macio. Cama para dormir

vários dias, e não se deforma.

Róseos lábios, devotos

ao riso, em dentes antigos

 

de feras enjauladas.

 

Eis o Homem: sempre domesticado

apesar de suas alturas imensuráveis.

Amamos seu mar imenso, a anatomia

de que é feito, mesmo com espinhos

adornando cada caminho de seus dedos.

Rabiscam em nós, com seus carinhos,

 

dolorosos arabescos.

 

 

 

 

 

 

A DOR DO POETA

 

 

A dor do poeta é uma dor esquisita:

não lhe dê sermão espírita.

Ele já é médium da dor do Mundo

que lhe envia, em palavras, suas desditas.

 

Não lhe impeça de chorar, não leia sua dor

ao pé da letra. Sua dor se aproveita

em flores dilatadas, sombras que libertam.

Não mande o poeta ao terapeuta.

 

A dor do poeta é comum e igual:

ele se deita sobre a cama, e se interna

em solidão. Mas ele é um arremedo de si mesmo

e se desvia em trajetos que não sabia, sem qualquer medo.

 

Sem qualquer medo se joga em palavras

colhendo a dor do Mundo, maior que a sua:

e escreve, escreve, escreve... expurga, nua,

a infelicidade da vida: a miséria, a mais sangrenta ferida.

 

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Ângela Vilma nasceu em Andaraí/BA. Começou a escrever aos doze anos, numa aula de português da professora Margentina Guimarães: esta, mãe de sua poesia-criança. Aos 22 anos, em julho de 1990, lançou seu primeiro livro de poemas: Beira-Vida. Em 1994, publicou Poemas escritos na pedra, também de poesia. Teve uma breve incursão pelo conto, mas parou. Publicou Poemas para Antonio (Coleção Cartas Bahianas, P55, 2010) e em 2016, A solidão mais funda, pela Editora Mondrongo. Participou de algumas antologias poéticas, como Concerto lírico a quinze vozes: uma coletânea de novos poetas da Bahia (SSA: Aboio Livre, 2004). Atualmente, é professora adjunta de Teoria da Literatura na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), campus de Amargosa/BA. Escreve o blogue Aeronauta e publica poemas no Facebook.