É doce morrer de amor

 

 

Você não faz ideia do que esses brincos de pingente de ametista vão fazer ao seu pescocinho longilíneo e macio. Ao seu perfil suave. E aos seus olhos cor de hortênsia. Experimente e veja se não tenho razão.

 

Dizia coisas assim quando me presenteava com enfeites e bijuterias acompanhados de beijos. Tudo o que vinha dele me fazia bem, me alegrava o coração, despertava a mulher linda que se escondia em mim e que só acordou quando ele apareceu. É assim que me lembro dele, de cada momento amoroso que passamos juntos nessa felicidade difícil de explicar.

 

Foi ele que, muito tempo depois, aos prantos, me pôs os brincos de jade, presente do primeiro Natal que passamos juntos, escolheu o vestido, pediu à manicure a cor definitiva para minhas unhas e me arrumou no caixão.

 

Eu morria de amores por ele. Literalmente.

 

 

 

 

Portas de Paraty

 

 

Em sua única passagem por Paraty, encantou-se com as cores das portas e dos alizares do casario. Para ela, um espetáculo almodovariano a explodir nos olhos e na alma. Fotografou todas as que encontrou, principalmente fechadas, como se assim as cores se fixassem mais tempo na retina, sua e da câmera. Imprimiu as fotos, cobriu com elas uma das paredes de seu quarto e olhava-as todos os dias durante muitas horas. Tantas foram as portas fechadas à sua frente e em sua retina, que nunca mais conseguiu sair do quarto.  Ali ficou para sempre, em seu vestido rosa-choque, faixa amarelo-gema e sandálias azul-turquesa.

 

 

 

 

Intolerância

 

 

Seduza todas as mulheres que você desejar. Confunda-me com as desculpas mais esfarrapadas que sua imaginação criar. Convença-me de que o que estou vendo não é nada disso que estou pensando. Passe em branco o aniversário do nosso namoro e ignore os bilhetinhos de amor que deixo na porta da geladeira para você.

Mas nunca mais — ouviu bem? — nunca mais em sua vida recuse provar meu manjar de coco com calda de damasco. Isso eu não vou perdoar.

 

 

 

 

Irresistível

 

 

A cor escura e o brilho lisinho mais uma vez me seduziram, em um prenúncio gozoso do que aconteceria entre nós dali a minutos. A saliva, abundante, encharcou minha boca, umedecendo-a no antegozo do que eu estava a ponto de experimentar. Torturante a espera para o encontro já imaginado cem vezes, dia após dia. Impossível continuar resistindo. Quebrei a vitrine, peguei a nhá-benta com cuidado e, vagarosamente e de olhos fechados, enterrei meus dentes na casquinha de chocolate, que se partiu, e afundei-os no creme branco e fofo de seu interior. A espuma se desmanchou na minha língua, fazendo com os caquinhos de chocolate uma só delícia adocicada, cujo deleite estendi o quanto pude. Mais uma mordida e, como um delírio, o prazer propositalmente demorado tomou conta da minha boca e da minha alma.

 

Hoje comecei a namorar um sonho redondinho, recheado de doce de leite, crocante por fora e salpicado de açúcar e canela. Felizmente o vidro da carrocinha me parece bem frágil.

 

 

 

 

Ponto a ponto

 

 

Quanto mais ele a ignorava, mais ela adiantava o bordado. Quanto mais pesava o silêncio, mais energia ela passava para as flores que iam sendo criadas por suas mãos, mais empenho mostrava em encher os espaços, ir e voltar, enfiar e puxar a agulha, arrematar, cortar a linha e recomeçar. Estava há algumas semanas fazendo a barra de uma toalha de mesa para o jantar dos seus trinta e cinco anos de casamento. Uma noite, quebrando o silêncio de sempre, ele perguntou se tinham mesmo que festejar aquela data. Ela não soube responder, perdera o hábito de ser consultada. No susto de ouvi-lo dirigir-se a ela, espetara a agulha no dedo e a flor que arrematava ficou manchada com uma gotinha de sangue. Não houve toalha bordada nem jantar. O silêncio a dois voltou a reinar, e ela, feliz, começou a bordar "segunda-feira" em ponto de cruz no primeiro de sete panos de prato.

 

 

 

 

Overdose

 

 

Desistiu de ler com lupa. As emoções descritas ficavam tão aumentadas, que ela não conseguia chegar inteira ao fim da leitura.

 

 

 

 

Presságio

 

 

Quando o ouvimos pela primeira vez, a letra dizia o que não queríamos ouvir.  Estávamos juntos e acreditávamos verdadeiras nossas juras de amor eterno.

 

Tempos depois o ouvimos novamente, e percebemos que era de nós que ele falava.

 

Ainda estávamos juntos, mas já nos faltava a eternidade.

 

Hoje o ouvi, sozinha. Não sei mais de ti, por onde andas ou que outros fados te sobressaltam o coração. O meu está gelado como a madrugada da nossa despedida. Exatamente como pressagiava o fado que não queríamos ouvir.

 

 

 

 

Quartas-feiras aqui

 

 

Procurava um professor de violão e publicou um anúncio. Dos que responderam, ela escolheu um de expressão especial. No primeiro dia, pediu que ele tocasse um pouco, antes de começar a aula. Ouviu uma, duas, várias peças à escolha dele. Algumas ela ouvia de olhos fechados, como se não estivesse ali. Uma hora depois, agradeceu, pagou, e pediu-lhe que viesse sempre naquele mesmo dia da semana e à mesma hora tocar para ela, e ofereceu um bom preço. Nunca aprendeu a tocar, mas toda quarta-feira, à mesma hora, sua alma se abria para a vida que ela voltava a apreciar.

 

 

 

 

Tédio mortal

 

 

Abri um espumante. Choco.

Olhei as flores no jardim. Secas.

Conversei com os retratos na parede. Mudos.

Tentei lembrar uma canção de amor. Nenhuma.

Saco... Não imaginava que a morte fosse tão monótona quanto a vida.

 

 

 

 

You look so sick, honey

 

 

Ultimamente andava pálido demais, chegava a assustar quem olhava para ele. Decidiu aprimorar-se na escolha de seu alimento. Tinha que parar de só morder carótidas de gente pobre.

 

 

 

 

Quero minhas asas de volta

 

 

Chegou marrento e cheio de regras.

 

Mudou o canal de TV que eu estava vendo, declarou que me queria com exclusividade, pontificou que o amor não existe, só a paixão, e essa dura pouco.

 

Avisou que não me queria mais de batom vermelho-amora nem de meia arrastão. Sumiu com meus CDs do Roberto Carlos porque me faziam chorar por outro amor, trocou minha bromélia em flor por um pé de comigo-ninguém-pode para espantar bicões e falou muito sobre o que ele gostava e não gostava.

 

Eu só ouvia, muda. Dias depois, abri minhas asas, recolhidas há muito tempo, e, sem me despedir, saí voando pela janela.

 

 

 

 

A coleção

 

 

Colecionava tudo o que se referia a momentos memoráveis de sua vida. Lá estavam na cristaleira o dente que perdera com o soco da irmã, um tufo de cabelo da enfermeira, quando, aos sete anos e aos berros, tomou uma vacina injetável, a bolinha de gude que engoliu quase se sufocando só pra ver o que acontecia, o chicote de um domador de leões do único circo que vira na vida e os óculos de um ex-professor quase cego. Havia muitas outras peças, todas etiquetadas e datadas. Mas as que se destacavam na prateleira central eram o vidro com o feto de três meses que sua prima removera quando ele lhe disse que não queria ser pai de um bastardo incestuoso, e o coração da prima, retirado na autópsia depois de seu suicídio por ingestão de inseticida. Eram o orgulho de sua coleção.

 

 

 

 

[imagens ©chiharu shiota]

 

 

 


 

 

 

 

Ana Flores. Carioca, professora de Português e Literatura. Vinte anos lecionando na Escola Americana inspiraram a criação do livro didático Muito Prazer! Curso de Português do Brasil para estrangeiros, em 2 volumes. Publicou Corporco e outros contos (2003) e a tradução para o português de Sete conversas com Jorge Luis Borges (2009, entrevistas realizadas pelo autor argentino Fernando Sorrentino). Tem minicontos publicados no blogue Minguante, crônicas na Folha Carioca e no site do jornalista Marcio ABC. Prepara monografia para o Liceu Literário Português: Influência do Tupi-Guarani na toponímia fluminense.