prólogo

 

 

porque eu posso

atravessar o deserto

comigo mesmo

 

levá-lo

debaixo dos pés,

dos olhos,

dos sonhos,

dos medos

 

porque eu povoo

 

sou além

das areias que somem

no horizonte

além        das miragens

 

o deserto,

 

me teme

 

 

 

 

 

um canto onde |

entre cantos

| auscultar o silêncio

 

 

 

 

 

 

*

 

 

sim,

asas.

 

um voo indômito,

solitário.

nenhuma certeza, ou

querência.

pouso, sequer presença.

 

nenhuma espera,

e o tempo

que (só) passa:

uma ausência

 

já quase sem nome,

 

um sol (só) indubitável,

labirinto de luz

entre sombras,

o passado:

 

campo escasso

para pés cansados.

 

(só)

 

sim,

ambos.

 

uma fera

sem rota,

vagando sedenta

por qualquer lembrança.

 

 

 

 

 

 

notas escassas de silêncio.

 

 

um templo e um monge

sobre a calda do piano

velho e de pedra:

 

de mármore empoeirado,

suas teclas nuas

densas de vento.

 

rio represado pela falta

de dedos vibrando as cordas,

não acorda a árvore sonâmbula,

 

a pintura na parede,

o vaso sobre a moldura,

a nuvem sobre a chama

do som que lembra algo,

 

neste assobio entre frestas.

 

música,

é impossível lembrá-la,

por mais que vibre.

 

lágrimas, impossível

contê-las, como um bonsai

florido.

 

 

 

 

 

 

*

 

 

isto. uma doçura

que diz com lâminas

como se abre uma carta.

 

raros reflexos rubros

transeuntes de lembranças

numa boca pálida.

 

marinha névoa azulada

encobre o verde em fumaça,

os cabelos da mata.

 

cemitério de automóveis

em plena chuva, poços

de ferrugens sobre a terra.

 

placas me falam da distância

de teu corpo em outra rota

nauseante entre os passantes.

 

no fundo, será mesmo a água

que inunda os corpos

e iguala todos nesta praia:

 

piano na garganta do oceano

em que ainda tentamos

tocar com os dedos dos pés:

 

ausculta esse silêncio de algas.

 

marulha essa agonia de concha.

 

sussurra no tímpano da areia

 

 

[poemas de Lírica Abissal]

 

 

 

*

 

 

na cegueira do tempo

intangível,

ora um coração com o amor

nas mãos:

 

mãe e rebento

no eterno momento do corte,

chora o próprio vento

a fuga do agora,

a folha sem volta,

 

os olhos de sempre sobre os fardos

do sol e da noite, amalgamados.

 

tantos fantasmas

no som das miragens

se pensam mais vivos

do que as orações que ressoam     no oco         das horas,

 

         no quanto do amor

ainda arde

 

 

 

 

 

*

 

 

nada diremos do tempo,

essa sombra sobre as águas,

essa salina de luas

que nossos corpos devassa.

 

nada ouviremos do canto

que à espreita morte se lança,

em silêncio contra pedras,

contra inquietas encostas de nadas.

 

nada daremos de nosso,

nem nossa mínima hora furtada

em sono, em tédio, em mágoa,

que o sangue o coração renova.

 

nada deixaremos sobre nada,

que de tudo nosso amor se salva

lançando-se um ao outro à vida:

corpo, alma, e se preciso, armas

 

 

 

 

 

 

*

 

 

nada escapa

à pele,

enquanto a pele vibra,

roça e fere outra

que não lhe foge e quer:

 

nessa geografia tátil,

todos os caminhos

de um universo

completo:

 

um mundo sem mistérios,

desnudo,

quase apenas alma,

íntimo

 

 

 

 

 

 

*

 

 

a boca voraz do tempo

na lâmina-fátua de seu corpo,

 

 

o acetinado céu no âmbar

do sol de seu nome,

 

 

(a fuga-fugaz do relevo

de minha fome)

 

 

o fogo madrepérola

de seu corpo insone,

 

 

a urgência da vida

queimando em silêncio

 

 

nossa ausência de versos

para as flores que morrem

 

 

 

 

 

 

*

 

 

desmesura, acresce sentidos,

legião de desenganos esquecidos,

quando descansamos juntos os sais

do ócio, (riocorrente rumo à luz),

eterno

retorno à exata linguagem-ária:

 

revoo do pó das palavras-garras,

as mãos entre os cabelos,

as pernas entre as pernas,

olharlincesilencioso

sobre tudo

o que engravida a vida:

a levita!

 

 

 

 

 

 

*

 

 

indomável,

 

cio de ciclone

prenhe de amplidão

e calmaria,

 

olhos inundados de mundo,

coração querendo tudo:

 

princípio e precipício

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Alex Dias é poeta, ator e produtor cultural. Autor do livro de poesia Lírica Abissal, lançado pela editora Urutau, em 2016. É pós-graduado em Gestão Cultural pelo Senac SP (2016), onde pesquisou a relação da poesia com a gestão de projetos culturais. Possui graduação em Ciências da Informação e da Documentação e Biblioteconomia pela Universidade de São Paulo (USP), Campus de Ribeirão Preto (2006). Fundou e dirige a empresa Osnáuticos — de Arte, Cultura e Educação — onde desenvolve projetos que englobam poesia, literatura, cinema, música e artes cênicas e visuais. Também fundou e coordena o "Poéticas — Laboratório de Pesquisa e Criação Literária e Poética" e o projeto "Bagagem... Poesia!", voltado à mediação de leituras. Fez Magistério (2002) em São José do Rio Preto. Atualmente, também é Produtor Cultural do Sesc Ribeirão Preto.