Herança

 

 

Ao nascer,

de regalo, da vida ou de Eva,

recebi afamada caixa

de esperança contida

 

que por vezes me escapa

 

Se sofro de ausência

ou se de porvir tomo porre

me consolo logo no colo

daquela última que morre

 

E então tudo é papel

e do rosto tiro a tinta,

a pena imortaliza o estalo

da alma enternecida

 

Dessas coisas que lhes falo

eternizo cada estampido

As torpezas, disfarço

soprando cada acento renhido

 

É nas tais águas de março

que confesso essa inconstância secreta

que me tira o sossego

e faz de mim poeta

 

E assim agradeço

a herança ou o capricho

que me me presenteia essa vida

 

 

 

 

 

 

Menos um

 

 

Intrigavas tanto que entreguei

 

tua mediocridade escancarando minha dubiez

 

Nem notável, nem banal

Ordinariamente mediano

E, se lembrado, será como tal

 

E nesse rascunho, numa penada,

deixo-te à altura

Tchau.

 

 

 

 

 

Fra[n]queza

 

 

Quanta palavra sem sentido

Sim, sei ler

De todo, não pude, não posso, não consegui

 

O olhar desgostoso pegou de relance o ponto final e, a contragosto, cada ofensa

 

Canalha… piranha... vadia...

 

Joguei tudo numa caixinha. Sacudindo por horas de um lado para o outro, tentei separar as letras; m(f)ake new wor(l)ds.

 

Sou de juntar

Sou de dar

Só assim para tanta dor

Só pecando para perdoar

Ainda assim, nada funciona

 

As malditas palavronas continuam intactas na caixola.

Sinto. Minhas mentiras não acalmarão teu coração. E tua verdade, teu mar de ira, me afogou. Meu bravo guerreiro liquid(ific)ou o que restava de mim. Não mais meu, já não sou mais. Tu não queres resposta, mas darei mesmo assim. Aguarda correspondência. Crua e cruel. A última carta já não é tua. Essa é minha. Última promessa.

 

 

 

 

 

 

Ouvi dizer

 

 

De olhos verdes, quis gritar, espernear, o escambau. Trancou-se

no quarto e encheu o cu de cacau e cigarro

 

Nem Otelo explica

 

 

 

 

 

A carta

 

 

Quinze páginas de paixão diluída,

uma frase de verdade:

 

Não era amor, era amizade

 

 

 

 

 

 

Rimadavida

 

 

Levanto da cama,

tomo um café,

cheiro um pão velho

e o engulo na fé

 

Saio de casa

pronto pra luta

Quase no elevador,

sinto cheiro de fruta

 

Ah! É ela

de saia,

de salto

e óculos de sol

 

e um casaco dourado

e um lenço estampado

E na boca um paiol

 

Imagino onde estava

Em qual rua,

em qual casa

e em qual lençol

 

Ela é puta, é puta

Maldita cadela

Que se foda

Eu sou dela, sou dela, sou dela

 

 

Me desatina,

pedaço de mim

Costela,

delírio e canela

 

Bela

donzela

Canela

e avelã

 

Fugiu da favela

sem grana pra nada

A erva era cara

mas ela gostava

 

Pobrezinha

Marmanjo falou que dava jeito

que ela podia mostrar os peito

que ele dava fiado

 

Logo pediu pra moça

mostrar parte da coxa

que ele tinha cigarro

Depois disso, a pequena,

 

viciada em tabaco e atenção,

passou logo pro escambo

trocando amor por muambo

e migalha de pão

 

Como moça bonita,

logo foi vista

por algum lambão

 

Saiu da Afonso Pena

mudou o nome para Helena

Agora é alto escalão

 

Hoje mora no prédio

Me tira o sono e não tem remédio

que faça ela largar tudo e vim morar junto a mim

 

Então

 

Levanto da cama,

tomo um café,

cheiro um pão velho

e o engulo na fé

 

E sigo

 

e vou seguindo

 

assim

 

 

 

 

 

 

Acerto

 

 

Botou fogo

no meu corpo

Tragou meu

cerne todo

Ardil.

Não pagou a

conta

 

 

 

 

 

Trecho de Cartas para a próxima amante

 

 

Amor de manga, amor de laranja, amor de fruta:

suculento, melado, carnoso

Amor de pica, de mica: doi, arde e so é gostoso no cu do outro

 

 

 

 

 

 

Luto

 

 

Da boemia arraigada

que causa dor à morada,

quero distância e beirada;

paradoxal.

Das suposições enveredadas,

quero nadica de nada

e acho supernormal.

Do embaraço e sandice,

se bem lembro já disse:

um abraço! Vai tarde.

O mesmo ao achismo,

que atiça o juízo,

desperta o olvido,

sobretudo o proposital.

E a tudo que quero tanto

junto ao senso que se diz santo,

por Deus,

um funeral

 

 

 

 

 

 

Três amigos

 

 

Três amigos

Três jornalistas

Trejeitos

 

Um escritor

Um jovem ator

Um cineasta

 

Três amantes da poesia,

da literatura,

da astrologia

 

Dois produtores

Três professores

E alunos convictos

 

Um atleticano fanático

Um homo muito macho

Um indeciso decidido

 

Três amantes do amor

Dois conhecedores da dor

e da beleza de ser o que é

 

Uma puta

Um viado e meio

Dois maconheiros

[levemente sensuais e definitivamente

prontos para o amor]

 

 

 

 

 

 

A canção

 

 

Sou

beija-

-flor

 

Sambar, se quiser, é assim/ Se não quer, vão dar fim [nessa dor]/ Te avisei, no jardim,/ que eu não sei bandolim/ nem nenhuma canção de amor/ E que eu gosto é de gim,/ tutu e cetim/ e do velho botequim [sou ator]/ que não largo e não deixo por nenhum din-din/ nem nenhuma canção de amor

 

Pra mim, não passa

mesmo depois da cachaça

De vingança e ameaça,

continuo achando graça

dessa sua barba

 

[Não passa]

 

Mesmo sem me dar nada,

nem uma bela noitada,

nem uma boa trepada

pra jogar nessa sua cara

que prefiro beber

 

E você, mesmo dissimulado,

bancando o pobre coitado,

pedindo whisky e pecado

Vai continuar apaixonado

por esse meu jeito de ser

 

Mas, se quer ficar sozinho,

fazendo jogo e beicinho,

vou ali tomar meu vinho

e procurar outro neguinho

pra me satisfazer

 

 

 

 

 

 

Arrelia

 

 

Fogo? Sempre emprestado

Marmanjo: só bem dotado

 

Na boca acende. Suspira e arde,

e então fuma pela metade.

 

Nem terminou, levanta e sai

Diz que de altruísmo é que se vai

 

Ele já fraga que é covardia

diz que bituca não é poesia

 

E tem que fumar até o final,

mas a moça faz teatro, não faz sarau

 

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Agatha Almeida (Belo Horizonte/MG, 1989). Escritora, produtora e poeta. Escreveu o primeiro livro ainda na infância e, em 2016, publicou Amordaça (Benvinda Editora). Cresceu na cidade de Passos/MG, onde passou a maior parte da infância e pré-adolescência. Concluiu o ensino médio em London, uma cidade da província canadense de Ontário. Lá, aperfeiçoou o Inglês, "arranhou" o Francês e, então, retornou ao Brasil para graduar-se em Comunicação Social e Jornalismo, pela PUC-MG. Apaixonada por comunicação e pelas palavras, cursou pós-graduação em Processos Criativos (Imagem e Palavra), em 2014, na mesma Instituição. Atualmente, cursa MBA em Comunicação e Marketing, e tem se dedicado à produção audiovisual, à escrita e aos estudos sobre gênero e autoria. Atua também, nas mesas de bar e redes sociais, como defensora do feminismo.