A estética do romance gótico, surgido na Inglaterra no século XVIII, mostra-se ainda bastante atual no século XXI. Afinal, quem de nós não convive com medos, demônios internos, fantasmas ameaçadores, monstros de instituições ou vampiros sedentos por nosso sangue no dia a dia de nosso ir e vir? A presença ou a ausência de castelos medievais não impede que sejamos descastelados em busca de castelos, encastelados ou não em MSCs (Movimento dos Sem Castelos) e cotidianos doadores de sangue, suor e sono para nos mantermos vivos. Somos, portanto, com ou sem consciência, zumbis, que vivem e dão vida a vampiros e vampirizados, sugando e fornecendo sangue para uma população de mortos-vivos que caminham por ruas e passarelas em noites de lua cheia, em dias de sol pelando ou em tardes de tempestades.

Nessa busca pelo sangue nosso de cada dia, encontramos, com grande chance de nos enxergar em suas páginas vermelhas, o romance Drácula, do inglês Bram Stoker. Com uma estrutura maniqueísta e que lembra um conto de fadas, a leitura dessa obra-prima tem o poder de fazer muitos leitores (ainda que secretamente) se deliciarem e se umedecerem com água (ou sangue) na boca. Sangue que, escrito em 1897, continua a correr em veias, através de uma transfusão literária que atravessou todo o século XX e ainda é capaz de acelerar corações nas primeiras décadas deste novo século.

O paralelo com a história de Chapeuzinho Vermelho deixa um gosto doce nesse sangue. Como sugere a crítica literária Carolina Vigna, há um vilão (lobo mau/conde Drácula), que se alimenta de uma mulher não necessariamente apetitosa (vovozinha/Lucy), que é o aperitivo do prato principal (Chapeuzinho Vermelho/Mina) e cuja sobremesa é justamente a salvação (ou cultivo) desse alimento proteico pelo herói (o caçador de lobos/de vampiros). Nesse cardápio, portanto, fica evidente que a mulher não passa de um acessório em uma narrativa recheada com amor e boas intenções, mas com um objetivo didático que deixa, por sua vez, um pouco amargo o gosto sanguíneo com a seguinte mensagem de fundo: mulher, não saia do seu quadrado, não seja rebelde; caso contrário, muito sangue será jorrado.

O ano de 1897, quando Drácula é publicado, é também o ano em que as mulheres começam a votar na Inglaterra. E a luta pelo direito ao voto era uma bandeira revolucionária, uma atitude subversiva, passível de punição por espíritos (homens) mais conservadores. Bram Stoker deixa clara essa visão: mulheres que buscarem pensar "fora da caixa", ou seja, não se submeterem à subserviência dos homens, mulheres que buscarem a independência através do pensamento crítico devem ser punidas. Aí encontra-se uma das tantas leituras possíveis desse romance de terror: as mulheres devem seguir o exemplo de Mina, que é dedicada ao marido e se deixa engolir pelo poder superior dos homens, que a ela oferecem proteção, já que se assume como frágil e submissa. A dentada do Conde Drácula (o mal) encontrará na força dos homens de bem o antídoto para seu veneno. Os antissufragistas receavam perder o poder de decisão e de escolha, que poderia ser mordido por mulheres independentes, sedentas pelo sangue dos homens. Portanto, mulheres vampirizadas, como Lucy, precisavam, para não contaminar outras, afastar-se das pessoas, pela da fé cristã, com crucifixos, e da superstição, com colares de alho, além de ver seu coração atravessado por uma estaca. O direito ao voto e à igualdade entre homens e mulheres era uma batalha que precisava ser sufocada: Drácula representava um feminismo que tentava dar alguns passos em direção ao futuro; portanto, era preciso segurar, com unhas e dentes caninos, essa avançada conduta de mulheres além do quarto e da cozinha.

O enredo é centrado na luta para sufocar o monstro zoomorfizado em um morcego, animal noturno, que vive na escuridão. A narrativa é escura, sombria, mal iluminada em alguns momentos por luares e alvoradas e recheada por ventos, uivos e peles pálidas, olheiras fundas e perda de vitalidade. Logo, é nesse clima de penumbra, de uma claridade nebulosa e pouco explícita, que os fatos se revelam: na tentativa de traduzir à luz do dia o que se passa no escuro da noite; em outras palavras, na tentativa de transformar em consciência o que existe no inconsciente. Não me parece ser coincidência o fato de Bram Stoker ser contemporâneo de Freud.

A "cura" de Mina é realizada por meio de seguidas sessões de hipnose, já que, inconscientemente, a vítima se comunica com o Conde Drácula. Se Freud conseguiu decifrar o "elo perdido" entre o que somosm sabendo que somosm e o que somosm não o sabendo, essa ponte, no romance de Bram Stoker, é construída por passagens que ocorrem em espaços não apenas concretos, como a terra, a rua e o trem, mas também em locais mais voláteis e menos palpáveis, como o mar e barcos, que transportam os personagens por meios menos definidos, com rotas menos evidentes. Há várias páginas em que os personagens dormem, caminham com sonambulismo, com sonhos e descrições oníricas. Todos precisamos carregar, em nossas veias, o alimento que mantém vivo o vampiro adormecido dentro de nós. Essa é nossa eterna dicotomia, que, vista por apenas um ângulo, nos leva, de maneira incompleta e maniqueísta, a encontrar apenas parte das respostas em religiões ou em doutrinas absolutas.

Entre mordidas que tingem de vermelho boa parte das páginas lidas em Drácula, entre longos momentos de sono, em eternos jejuns e com muita noite, chega-se ao quarto final da diegese desse romance: a parte mais fraca dessa obra-prima, com trechos arrastados e com pouca ação, nos quais Bram Stoker tenta "enrolar" o leitor com uma narrativa estática que nem mesmo acrescenta tensão psicológica ao enredo, empobrecendo uma ideia que nasceu poderosa. No seu todo, no entanto, entre tapas, mordidas e beijos, o saldo continua bastante positivo.

Drácula, afinal, é um romance escrito há mais de um século e pode surpreender o leitor, que, inconscientemente, pode achar que está jantando, na escuridão da noite, uma entrada, um prato principal e uma sobremesa apetitosos, mas, na verdade, pode estar sorvendo, na claridade do almoço, a taça de um vermelho e seco vinho tinto.

 

 

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O livro: Bram Stoker. Drácula.

São Paulo: L&PM, 2000, 552 págs., R$ 29,90.

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dezembro, 2016