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eu já rasguei a mim, feito fotografias inúteis, e perambulei meu eu sem rumo. eu busquei abrigo no incerto e dele tirei razão. eu deserto, quase seco, mas de oásis o coração. oração não faço, me abstenho. deus decerto já é surdo, estraçalhou o tímpano pra aliviar... as pessoas andam imbecis demais...

 

 

 

 

 

 

~

 

e eu, gelado pelos amigos,
evitando absorver todo o brilho
nos caminhos que, em litros, derramamos
corpo adentro, embriagando, afundando...
é em sombra que eu desfilo meu lamento,
os seus olhos não investem mais nos meus
e os minutos, taciturnos, eu mascaro
numa certa de ser algo a mais pra mim...
infeliz festim, ator de risadas cruas,
e eu escrevo e escrevo e escrevo
crivando cada vez mais meu corpo, meu copo, 
com suas pernas, que se afastam, caminhando...
largo acima, acompanhada e eu olhando... olhando...

 

 

 

 

 

 

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eu sou o grito que reservo em dor...
sei há tempos dessa curva que me dói na coluna...
eu nego minha realidade e fujo de mim o tempo todo.
eu sou um ladrão e um mentiroso...
eu me retenho a beber soluções,
que vão me iluminar as condições
e eu vou perceber, sem pestanejar, sem escurecer,
que eu não passo de dores nos ossos
e choros na alma...
na visão distorcida desse espelho de mim
o real é baixo e cinza,
o irreal é remédio que abuso
e causo náusea espiritual, quase como nota mental, ao meu ectoplasma roubado de mim e meu esqueleto fraco trincado...
pronto, rachei...

 

 

 

 

 

 

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O escritor em mim é um vagabundo vacante, que se fecha num mundo gigante e dói a mente até conseguir desprender dos dedos alguma porção de palavras. Os elogios que recebo, em suma, jogo fora. De nada servem e não escrevo para isso. Não escrever por nada, na verdade, é o que queria. Escrevo, sólido na ideia de mim, como se não houvesse mais nada para ser feito, sobre meu eu e sobre os outros. Escrever é manter-me perseguindo a mim mesmo, em cataclismo errante, pela estrada do meu tempo. Tempo que já não tenho para me explicar e, mesmo se o tivesse, em toda a minha razão de pouco siso, não explicaria.

 

 

 

 

 

 

fragmento

 

 

Ele... Perdia tempo demais encabulado consigo mesmo... Chegou, em passos mornos, acompanhado de R..., ao Lado B. Estava duro e ainda por cima sem cigarros, cenário trágico e falido de um meio de semana qualquer. Ela... Estava lá... E para ele, embora não confessasse a si, tremia por dentro quando a encontrava.

Ao som dos carros em paralelo, riscando asfalto acima, jogava papo fora com um conhecido qualquer, mas sempre mantendo os olhos espertos. Pensava em, finalmente, fugir de toda aquela loucura, pegar aquela garota pelas mãos e lavá-la para onde fosse. Mas só pensava... Pesava-lhe o altruísmo tolo e, ao passo que o tolo se torna supérfluo, ele lutava, gritava e brigava internamente, silenciosamente. As horas vazaram do relógio e as chances derreteram na fissão da coragem... Ela sumiu, ele amanheceu...

 

 

 

 

 

 

rocksteady night

 

 

Pego de surpresa pela chuva que rapidamente desabou, corri para o Retrô. Era quase uma da manhã e eu estava encharcado e procurando problemas. Dei logo de cara com os fumantes espremidos feito atum na salmoura, num cantinho destinado à entrada das pessoas, que pipocavam para dentro e para fora da festa como formigas ordinárias em fuga da chuva ou em busca de drogas. Caía um toró daqueles e aqueles dançantes fumantes, um tanto conflitantes, se retinham lado a lado num espaço quase nulo para carburar.

— Merda de chuva — é obvio que pensei.

Me enfiei num cantinho perto duma porta que dava pra pista. Olhava a chuva como quem admirasse aquilo tudo, mas não admirava. Pra piorar as coisas meu isqueiro resolveu falhar. Ao meu lado estava uma estranha criatura, interessante em seus defeitos, porém linda, no entanto, enquanto algo lhe tirava o sossego. Pedi um fogo, ela deu a brasa, me olhou feio. Falei qualquer merda e fomos dessa forma, fumando apertados. Lá de dentro emanava "... stop that train / I wanna get on" e as pessoas dançavam esquisito, eu podia vê-las de revesgueio enquanto fumava...
Alguns se aventuravam rapidamente para fora do bar, porém desistiam ao passo que a chuva aumentava a intensidade. Outros, em dúvida, atravancavam o fluxo marginal, que despencava diretamente da pista de dança, amaldiçoando o temporal... Lembro de constatar quase que num desabafo: "Eu não aguento mais ouvir skinhead reggae e tô aqui há apenas alguns minutos...".

Terminei de fumar e, quando eu menos esperava, uma garota apareceu feito um furacão, esbarrando em todos, e vomitou aos montes todo e qualquer tipo de restos de comida em cores deprimentes. Em meio à êmese daquela infeliz, consegui me desvencilhar da multidão de fumantes encubados e fugi ao balcão do bar.
[...] E não é que me chega o Glauco Caruso: "Te foder, meu velho... É impressão minha ou tá tocando a mesma música há horas???".

 

 

 

 

 

 

solitário vespertino (saudosa Ivete)

 

 

Relutei bastante em meus pensamentos, mas eu, de fato, tinha alguns problemas dentro da minha cabeça cheia de nenhures. Esses dias caminhei sem rumo pelo centro. Era um daqueles dias típicos daqui: choveu, esquentou, esfriou, ventou, choveu mais um pouco e assim por diante. Meus pés cansaram. Eu andei o Largo, lá de cima até a Riachuelo reformada com aquelas calçadas rosa-alaranjadas, andei da Santos até a Dezenove, subi a Paula Gomes só pra descê-la de novo, baseada num cigarro que fumava solitário. Tive visões malucas de um centro explorado em vespertino: um maluco sóbrio, que de noite era louco, um metrônomo de eletricidade que seguia em ritmo por dentre os fios de luz (TEC... TEC... TEC...), a Trajano vazia com suas cores diurnas, pálida nas desérticas calçadas, obstante a velha varandinha de aparências, cortadas pelo trânsito corrente como um rio abarrotado de troncos de metal em direção ao Relógio... Bem, o ponto final das pernadas era sempre a Ivete. Nesse dia tinha gana, anseio ou receio. Tinha só a mim... Ou não. Lá chegando, contei os primeiros trocados que tirei do bolso com dificuldades. Umas cédulas baixas e amaçadas, umas moedas, uma palheta e duas xepas de cigarro apagado com cuspe. Pedi uma e um salgado podrão...  Bar adentro, percebi que as clássicas mesas "amarelo insano" agora davam lugar a versões de madeira, em verniz bordô de Canela-merda. Novinhas. Cheiro forte... Vários lugares vagos e aquilo foi estranho. Sentei na solitária rumo ao banheiro. Bebi um bocado. Suficiente não, mas quase. Como quase sempre escrevi num papel rasgado que a Ivete nunca negou em me arrumar, aquela folha com detalhes de florezinhas e morangos de seu caderno infantil para a contabilidade diária ou marcação dos devos das galeras que lá navegam. Isso era no mínimo engraçado. Fiquei ali por umas horas, ouvi a conversa de uns, ignorei o papo de outros, fugi daquele poeta intruso que, ao me ver escrevendo, veio tentar me empurrar algum zine ruim... Busquei me resguardar ao máximo até algum amigo chegar. Nesse dia ninguém apareceu. Bati um papo com uma garota, não lembro o nome dela... Morena nos cabelos, mas pele clara de veludo. Bebi mais um pouco, dei as costas ao bar e caminhei... Não me lembro do final daquele dia ou se teve um fim... Indo embora tirei do bolso o papel amassado onde escrevi algumas palavras enquanto na Ivete e elas diziam: Eu sou esse espelho do passado, amargando meus defeitos e estragos, sou um conflito errado entre os meus mundos e desejos. E, em realidade, eu nunca quis encontrar a mim de verdade... Foi apenas mais uma desculpa para culpar a mim por me ser... E nada mais.

 

 

 

 

 

 

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as palavras... tem horas que me dá vontade de escrevê-las. por mais que sem motivo, sem um rumo direito. essas palavras são revérbero daquilo que calo e ouço. são conflitos em que acuso a mim, defeitos que exalo. arcabouço de meus trâmites mentais, calabouço obscuro que atraio ao abstrato da voz das letras que ajunto em punhados para gravar nesse fragmento besta.

 

 

 

 

 

 

rabo de galo

 

 

Detestava a cor dos táxis. Aquele xadrez somado ao laranja... 
Acordava sempre cedo, pelas oito horas, e lentamente preparava sua velha carcaça para mais um dia. Seria esse o último deles? Penteava pra trás meia dúzia de fios brancos, colocava os óculos colados com durepoxi e o sapato velho com solas novas, feitas de borrachas baratas...

Morava numa pequena gaveta na Paula Gomes, que entre um açougue e um sapateiro... Lá dividia o banheiro com traficantes, putas e alguns jovens viciados em coca ruim e bar da Ivete. Já não trabalhava, vivia com uma aposentadoria fétida e inútil, útil apenas ao pensionato e coisas outras irrisórias...

Caminhava, lá pelas dez horas, diariamente, até a 19 de Dezembro, comprava uma pipoca de ontem e distribuía em lançamentos lúgubres às pombas aleijadas. Comia algumas, mas os piruás lhe machucavam a boca na falta de dentes. Fumante desde os 15, fumava qualquer cigarro... Obviamente os que custavam um ou dois pilas...
Meio-dia, sol atrás de nuvens negras, olhava o céu... Hora de almoçar... Sortido da Ivete. Ia lá somente nesse horário, muitos adolescentes imbecis com suas maconhas nas outras horas... Com bucho cheio, costumava parar pra pensar na vida, no tempo que passou, nas coisas que deixou de fazer... Lembrava sempre de um velho amor, que nas falhas da vida deixou escapar. Pensava nele todo santo dia, que de santos nada tinham... Era a dor maior, doía em agudo no peito, já oco e idoso.
Mais tarde, ia sempre ao mesmo china. Ou seria coreano? Japonês? Lá dava um jeito de desviar do gaúcho inchado de cachaça, sempre a contar suas piadas infames...

— Bah índio véio...!!!

Apenas driblava e seguia ao balcão.

— Rabo de galo! — Bebia um, dois, dez... Dependia do dia, do calor... Naquela tarde, em especial, chovia e lá, naquela lanchonete barata de esquina, observava as pessoas, os casais de namorados a serem ultrapassados. Até mesmo os malditos porcos rondavam em casais por ali. Pensou muito nela. Ah ela! Sentia e chorava internamente debruçado na mesa suja daquela espelunca oriental. Foi então que, numa brecha insana da vida, a viu! Não podia acreditar! A viu! Isso só pode ser loucura, pensou... Atravessava a rua, solitária, embaixo de seu guarda-chuva transparente. A viu! Era ela! Seus olhos maltratados pelo tempo e pelas lentes grossas de seu óculos quebradiço não lhe deixavam dúvidas! Era ela...

Em súbito bater de asas de seu coração, já murcho e enrugado, levantou e correu, como que num último suspiro de vida, sem pagar a conta... O velho oriental correu atrás! 

— Seis leais! Seis leais! — Mas o japa nada pode fazer...

Como se passassem em câmera lenta aqueles segundos, ela desceu correndinho a Treze, ele atravessou a Barão. Foi então que ouviu o grito histérico da freada. Sinal fechado para seus passos. Atropelado por um táxi, lançado aos metros... 
Agonizando, a viu continuar, treze abaixo, e adentrar a um importado sueco que esperava em alerta. O sangue mal escorria de tão velho e coagulado. Nem a chuva diluía. Morreu ali mesmo na Barão. Detestava a cor dos táxis.

 

 

 

 

 

 

Chinasky

 

 

A garoa caía fina, quase seca ao chão. Não molhava nem minhas roupas, velho trapo elegante e sujo. Sujo como meus pensamentos, descarados ou disfarçados nos prazeres que prezam minhas poucas qualidades. Qualidades não atribuídas aos meus sapatos, cansados de mim. Caminhei em solidão, cortando pela viela por onde se pode fugir a pé da Manoel para a Inácio, descendo de canto pelo viaduto da avenida em direção ao baixo São Francisco, poluído pela luz dos faróis dos carros que, naquela fatídica terça feira, 20:37, rasgavam em vácuo rumo às Mercês. Um vento soprou tão forte que, em assovio, me arrancou o cachecol, que voou em direção à rua. Por um instante não tive ímpeto algum de resgatá-lo. Mesma falta que cometia contra mim diariamente. Resgatei-o. Bati calçada, o vento em navalha, até a esquina com a Trajano, que me ultrajava em bares fechados, nem o G... nem o Burguer... Nem mesmo a varandinha de aparências do Brook. Única opção aberta era o velho Chinasky, que vacilava entreaberto detrás de mim. Chegando defronte ao bar observei, sem reação, um grupo de topetudos esquisitos com seus suspensórios e garotas tatuadas. Obviamente não chamavam muito minha atenção. Passei batido. Entrei no chinas, sem porteiro ou leão de chácara. Recanto dos sujos, inferno dos sentidos. Subindo as escadas pude logo observar que Iggy Pop balançava o pau num show nas duas TVs dos anos 90 que lá existiam em culto ao punk rock e episódios de Pantera cor de rosa com trilha sonora do Dr Feelgood. Salão vazio, três pessoas. Chegando ao balcão me assustei com o tamanho daquela mulher, sentada de forma sensual, o que era, em mínimo, mais bizarro impossível. — É uma Sasquatch — pensei gratuitamente.

Troquei algumas palavras com J..., dono daquela porra, compelido na azáfama de uma porção de batata que valia por dez, carregadas de congestionantes venosos, a ser entregue a um casal entrelaçado na mesa aos fundos, perto do banheiro. Inverno que só, pedi uma cerveja bem gelada. Sempre gostei da interação da goela em choque térmico com a cerveja estúpida e ingrata, ainda mais em dias frios e quase molhados. Tomei duas delas, das mais baratas, vale lembrar. Até tinha dinheiro, mas preferi poupar. Entrou no bar apenas mais uma pessoa nesse meio tempo. Um cara estranho e feio, óculos fundo de garrafa, carregando uma valise de couro preta, carcomida nas pontas... Veio até o balcão e, é obvio, teve que se sentar bem ao meu maldito lado. Falava de forma esquisita. Pediu uísque para acompanha-lo em sua divagação de sabedoria estratosférica sobre Pop cantando Search and Destroy correndo de um lado para outro no palco. Aquilo realmente me chateou o bastante para querer ficar o mais longe possível daquele cara com bafo de Natu Nobilis. Fui ao banheiro e lá desferi uns tapas contra meu rosto e depois me aliviei do desconforto agudo. Nem lavei as mãos... Desci para fumar um cigarro. Os topetudos já haviam partido rumo... Mas tinha alguém ali, um sei lá quem, punk qualquer com sua garrafa de tubo pronto comprada, provavelmente, no Copo Sujo... Fumei dois cigarros e quando no fim do segundo pensei: "não poderia ter sido pior essa caminhada em busca do inalcançável." ... Culpa minha não ter atendido os bons alvitres que fiz para mim mesmo, umas horas antes. Foi então que o jogo virou. Em raio intenso, dobraram a encruzilhada L... e G... . Abri um sorriso safo, num grito interno da conscientização corporal eufórica que tive. A noite havia se concertado em quebra de estado, em orquestração frenética, de tédio em madrugada adentro. Eles atravessaram a rua em passos lógicos, e os olhares fixos em seus rostos congelados confirmavam a coriza firme. Cumprimentamo-nos em abraços. Finalmente amigos. Tardam mas não falham... Não esses! Vinham estáticos do Largo. Sapatos, lenços, ternos e parcas. Trocamos algumas risadas e, depois de um silêncio súbito, nos olhamos estraquinados. Trovejou.

 

 

 

 

 

[imagens ©f lemos]

 

 
 
Yan Lemos é um cantor e compositor da cidade de Curitiba, cidade onde vive e é mais atuante. É integrante das bandas Escambau, Les Infâmes e Red Floor Blues Band e também tem seu trabalho solo. Além disso, é um dos tenores do Vocal Brasileirão. Em meio a essa agenda maluca de ensaios, gravações e shows, arranja tempo para escrever reflexões sobre si e seu entorno.  Muitas vezes em narrativas de autoficção, registra em seus escritos algumas situações que viveu. A maioria são minicontos, onde as ambientações flertam com o cinza do centro da cidade e seus detalhes mórbidos. Quando introspectivo, conversa consigo numa tentativa de se descobrir — coisa que parece estar longe de seu alcance, por mais que busque se encontrar incansavelmente.