Parte 1

 

 

"Fito-te... E o teu pensamento é uma cegueira minha".

Fernando Pessoa

 

 

Cegueira. Ensaio sobre a cegueira! Quem enxerga muito bem jamais vai entender por que alguém se preocupa com  uma banalidade tão à toa, a ponto de escrever um romance  com semelhante tema. O presente texto — previno desde logo — nada tem a ver com o livro do Saramago. Exceto, talvez, pretender abrir os olhos de quem concorda com o que está dito acima. Ou seja, quem supõe que a privação do sentido da visão teria o mesmo significado da ausência dos outros quatro. Experimente não ouvir, não sentir odores nem o sabor dos alimentos, não tatear. É terrível, pois não? Mas agora feche os olhos — como se nunca mais fosse abrir —, e compare.

Chama-se catarata à perda da transparência de uma lente natural chamada cristalino. A maioria dos leigos pensa que a cura da catarata pela cirurgia é um procedimento simples. E até pouco tempo atrás, era  mesmo, porque ou dava certo ou não dava! Bastava remover a lente natural e substituir por outra de vidro.

Era a "cesárea" dos oculistas. E ainda é! Qualquer Zé Mané é capaz de realizar este procedimento — hoje com muito mais segurança, porque o cristalino é dissolvido, e não mais cortado, como era antes. Mas havia um "porém": muitos pacientes cegavam completamente depois da operação. Por quê? "Ah, ele não teve o repouso recomendado". "Ah, ele sofreu uma hemorragia imprevisível". "Ah, o coitado teve azar". Nada disso! É que  pouco se sabia sobre a função e a patologia da córnea — aquela membrana fibrosa e transparente presa à esclera, constituindo a parte anterior do olho. Hoje em dia o "mistério" está praticamente esclarecido. Se o paciente impaciente possuir em suas córneas um mínimo de 1400 a 2500 células por milímetro quadrado, tudo bem. Desaparece a catarata e o doente volta a enxergar como se nunca a tivesse contraído. Do contrário...

Para mim, tudo começou — ou eu comecei a me preocupar — quando caí a todo pano num canteiro público de uma cidadezinha de Israel. Aquela mesma onde dizem que o Homem da cruz pregou o Sermão da Montanha. Tive vontade de dizer (e disse só pra mim mesmo), bem-aventurados os que enxergam, pois eles não tombarão. O meu diagnóstico já estava estabelecido. Tinha até sido submetido a exame de fundo do olho para constatar a integridade da retina. Quando voltei da viagem procurei um dos meus colegas oftalmologistas e disse: "Tá na hora de me operar". Eu sabia lá se precisava contar células de córnea, coisa nenhuma! "Pois precisa, seu doutor. Tome a requisição e faça logo ontem!". Fui fazer como se fosse dosar a minha glicose que nunca passou de 90 mg por 100 ml de sangue. Só que depois de olhar muito tempo dentro dos meus olhos através de aparelhos sofisticadíssimos, o doutor olhou sem aparelho algum, mas com um certo ar de preocupação: eu só tinha 500 células por milímetro quadrado de córnea. Em ambos os olhos! Consultei  outro especialista que me expôs a situação. "Suas chances de cura são de 50%. Fui curto e grosso: "Supondo que você estivesse no meu lugar, o que faria?" "Vou ser sincero: só me deixaria operar quando não enxergasse mais nada!".

Curioso! Cá no Brasil, em todas as outras profissões, existe uma certa hierarquia, como a das Forças Armadas, por exemplo, que começa pelo soldado, passa pelo cabo, o sargento, os oficiais e vai até os marechais... Assim, procuramos o melhor encanador, o melhor pedreiro, o melhor engenheiro, o eletricista exímio... Em medicina, não! Basta o sujeito ser médico: é tudo igual! E o pior, são todos nivelados pelo raso. Até eu — que me queixo de ser médico — fui nessa.

Já nem dirigia mais automóveis, quando meu cardiologista observou que eu não conseguia ler um determinado escrito que ele me apresentou.

"Por que não consegue ler?".

"Catarata".

"Por que não se opera?".

"Minha córnea não deixa".

Depois ele me disse: "pensei que Córnea, no caso, era o apelido da tua mulher, porque você andava pulando a cerca".

 

 

 

Parte II

 

 

"A cegueira também é isto: viver num mundo onde

se tenha acabado toda a esperança". José Saramago

 

 

 

Eu respeito o ladrão — até porque já fui um deles; sim! confesso que já tive de roubar alimentos para saciar minha fome —, convivi com assassinos, tolero corruptos, malandros, preguiçosos, e outras gentes do mesmo gênero. Mas nunca perdoaria um INGRATO! Devo a vida a alguns médicos e vou rezar por eles até a hora da minha morte. Deixo de relacioná-los aqui, porque este texto tem uma finalidade específica: agradecer de público ao homem que me fez voltar a enxergar o mundo.

Até agosto/setembro de 2014 eu era incapaz de guiar automóveis, ler, reconhecer pessoas a uma certa distância e identificar objetos pequenos. O olho esquerdo estava totalmente comprometido (cego). Mesmo assim, ainda consegui realizar uma viagem internacional. Sozinho. No princípio de outubro, meu cardiologista me mostrou o resultado de alguns exames e eu não fui capaz de ler. "Não consegue ler?". "Não. Catarata", adiantei. "Por que não manda operar?". "Porque meu próprio oculista não se operaria; é um cara ou coroa, segundo ele me disse...". "Tome, procure este oftalmologista", disse o meu médico do coração, entregando-me um papel. Fui!

"É, cara... quer dizer, cara mesmo, mas pode ser coroa... O nosso colega tem toda razão. Sua córnea não possui células suficientes nem para fabricar meia dúzia de amebas... quer dizer, amebas talvez sim, porque possuem um só núcleo. Já um mixomiceto, é duvidoso. Mas há um recurso: transplante de córnea. E existe uma doutora enfermeira encarregada de selecionar a minha fila. Mas escute, nem sempre o transplante é indispensável, mesmo em circunstâncias como a sua. Restitutio ad integrum (cicatrização total da córnea), depende muito da agilidade com que a cirurgia é executada e de traumatismos mínimos em seus tecidos. Recomendo, porém, que esteja preparado: existem 90% de chances de que você  venha a conduzir — para o resto de sua vida — a córnea de um morto nos seus olhos"1. E, com muita paciência e boa vontade, mostrou-me demoradamente, no computador, detalhes técnicos das duas operações: a da catarata em si, e a do transplante. Havia casos em que as duas, em um único olho, poderiam ser executadas simultaneamente. Mas dada a delicadeza da minha condição,  era mais prudente realizar cada uma delas em tempos diferentes. In other words: eu seria submetido a nada menos de quatro operações, com intervalos médios de trinta dias entre uma e outra.

A cirurgia da catarata, hoje em dia, consiste basicamente em remover o cristalino opacificado através de sua emulsificação (liquefação), seguida de aspiração e implante de uma lente artificial em seu lugar. Num passado ainda recente, tais lentes não existiam. O cristalino era substituído por um par de óculos de lentes grosseiras (tipo fundo de garrafa), que davam ao rosto do doente um aspecto deselegante e causavam a impressão, aos circunstantes, de que ele  estivesse ainda mais cego do que antes. Como disse, por conta de sua aparente simplicidade, considero a operação de catarata a "cesárea" do oculista.

Sucede que executar, de qualquer maneira, a  cirurgia de catarata é uma coisa. Agora, fazê-lo com rapidez, agilidade, segurança, com mínimo ou nenhum sangramento, sem trauma importante para a córnea e com a lente artificial corretamente implantada, enfim, com perícia extrema, é outra história bem diferente... Já o transplante é muito mais complicado... e demorado. 

 

 

Parte III

 

 

"A cegueira que cega cerrando os olhos, não é a maior cegueira;

 a que cega deixando os olhos abertos, essa é

a mais cega de todas". Padre Antônio Vieira: Sermões

 

 

O milagre aconteceu no dia 07 de outubro de 2014, às três da tarde. Antes, eu já havia sido inscrito na fila de espera dos transplantes e, óbvio, chegara a minha vez. Fui advertido das implicações psicológicas de um transplante, mas levei, o que para outros seria um mal-estar — por viver com partes de um cadáver no próprio olho —, como se fosse receber uma transfusão de sangue.

Havia sido prevenido para suspender qualquer alimento depois de um leve café da manhã. Cheguei à clínica por volta de meio-dia. Durante cerca de duas a três horas uma enfermeira instilava, de 15 em 15 minutos, diversos tipos de colírios no meu olho esquerdo. Afinal, fui chamado. O ambiente tranquilo não ensejava qualquer ansiedade ou estresse. A anestesista me tomou pelo braço e pediu que eu me sentasse numa cadeira que, a princípio, parecia de dentista. Mas dentro de poucos segundos inclinou-se para trás, transformando-se numa mesa cirúrgica. A seguir, puncionou-me uma veia, na qual injetou uma substância que, longe de me fazer dormir, me relaxou ainda mais e trouxe aquela sensação que devem sentir os viciados em morfina, logo depois de injetar a droga. Mas não perdi a consciência em momento algum. Percebi o operador aproximar-se, e imaginei que estivesse praticando a assepsia. Precisamente dez minutos depois, a anestesista me falou: "sua operação terminou: foi um sucesso como poucas vezes assisti. Levante-se devagar e venha comigo caminhando lentamente". Pensei que estivesse brincando. A operação durou o tempo equivalente a uma extração dentária. Levou-me a uma sala de recuperação, ajudou-me a deitar numa cama e meia hora depois mandou-me para casa. Sem qualquer tampão ou curativo. Eu enxergava tudo. O cirurgião também chegou até mim e falou: "Mantenha um pouco de repouso, mas não é necessário (nem conveniente) repouso absoluto. Poderá caminhar para ir ao banheiro, e executar atos de rotina. Poderá assistir à televisão e ver o que quiser".

O único incômodo que eu sentia, e só durou até a manhã seguinte, foi uma leve sensação de areia no olho operado. "Volte daqui a quatro dias para checagem e avaliação quanto à necessidade do transplante de córnea".

Voltei. O médico projetou letrinhas na parede para testar minha acuidade visual. Com exceção das menores, eu reconheci quase todas. Depois apresentou-me um texto, que consegui ler sem problema algum. Impossível descrever a minha felicidade... Eu que, desde os dez anos de idade, lia diariamente até contrair aquele troço.

Cerca de vinte dias depois, o mesmo procedimento foi executado no outro olho, com idêntico resultado. Imediatamente após a avaliação pós-operatória, o médico tomou o telefone e ligou para a doutora enfermeira. "Pode retirar esse paciente da fila de transplantes de córnea e chamar o seguinte", ouvi-o dizer.

Hoje, mais de cinco meses são passados. Enxergo tudo de longe sem necessidade de óculos, os quais utilizo somente pra ler. O autor desse milagre é um jovem que não deve ter ainda trinta anos. Seu nome: Doutor José Newton Dias da Escóssia.

 

 

1Em verdade, a oftalmologia — tal como a medicina como um todo — progrediu tanto que atualmente, na maioria dos casos, em vez de empregar o transplante de toda a córnea, o cirurgião destaca e usa apenas a camada interna das células de revestimento — o endotélio. Esse detalhe traz inúmeras vantagens dentre as quais a mais importante é a ausência quase absoluta da probabilidade de rejeição.

 

 

 

junho, 2015

 

 

Raymundo Silveira [Raimundo Nonato de Albuquerque Silveira] é médico e escritor. Membro da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (SOBRAMES), em 2010 ganhou o Prêmio Literário Para Autores Cearenses, com o livro de crônicas Louca Uma Ova. Em 2011, recebeu o Prêmio "Correio das Artes 60 Anos", promovido pelo Governo da Paraíba, com o livro de contos Lagartas-de-Vidro. Foi contemplado com a Bolsa FUNARTE de Criação Literária 2010, pela qual produziu a obra Medicina Crônica. Em 2013, recebeu o Prêmio Talentos da Maturidade, patrocinado pelo Banco Santander.

 

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