[uma página de quadrinhos de robert crumb]
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

O senso comum costuma dizer que histórias em quadrinhos são coisas pra criança e a verdade é que existem motivos pra isso.

 

Quando se fala em História das histórias em quadrinhos, costuma-se fixar o ponto de origem na aparição do personagem The Yellow Kid, publicado em 1895 no jornal New York World. Na época, a tecnologia estava disponibilizando o uso de cores na impressão de jornais. Assim, cadernos ilustrados e coloridos tornaram-se mais um atrativo das publicações, os quadrinhos tornaram-se uma novidade cada vez mais popular, as vendas aumentaram e isso abriu caminho para o surgimento das revistas em quadrinhos e uma variedade de personagens e títulos.

 

É honesto dizer que nem todo mundo concorda que a origem das histórias em quadrinhos foi o Yellow Kid. Muitos atribuem ao suíço Rudolphe Töpffer (1799-1846), se não a paternidade, no mínimo o título de "avô" dos quadrinhos. Ele publicou narrativas que se pareciam muito com os quadrinhos de hoje. Ganhou elogios de Goethe, diga-se de passagem. Também é interessante lembrar que os quadrinhos se desenvolveram de maneiras diferentes no mundo ao longo do século XX. Cada país tem a sua própria trajetória. A Argentina, por exemplo, possui uma verdadeira tradição em histórias em quadrinhos, marcada pela publicação do épico El Eternauta, no final dos anos 50. Na Rússia, considerados propaganda do capitalismo, os quadrinhos foram proibidos durante todo o regime comunista e só começaram a se estabelecer por lá agora, no século XXI. Por questões de praticidade e espaço, este pequeno ensaio se concentra nos quadrinhos norte-americanos e brasileiros.

 

De qualquer forma, ao longo do século XX, os quadrinhos se estabeleceram como produtos da tal cultura de massas, produzidos às pressas e da forma mais barata possível para serem vendidos por 10 centavos em quantidades imensas. Nos EUA, os quadrinhos repartiam espaço com as pulp fictions e ajudavam crianças e estrangeiros com a alfabetização. Os envolvidos com a produção trabalhavam muito para receber pouco, o que afastava profissionais e resultava em tramas simples e desenhos toscos. Assim, as histórias em quadrinhos foram consolidando uma reputação de leitura rasa e infantil, embora houvesse muitos leitores adultos.

 

A ideia de que quadrinhos são para crianças foi a base argumentativa da perseguição levantada durante a década de 1950. Nessa época as histórias de terror e crime, com violência e erotismo, estavam fazendo o maior sucesso de vendas. Alguém percebeu que a maioria esmagadora dos delinquentes juvenis liam quadrinhos e deduziu que os gibis podiam transformar crianças em criminosos. Não foi levado em consideração que a maioria das crianças não delinquentes também lia gibi. No embalo das neuroses da Guerra Fria, foram feitos debates, processos e discussões. Nesse ponto, a trajetória história brasileira e norte-americana são muito similares. Lá e aqui, bem-intencionados pais confiscaram as revistas de suas crianças e as levaram para queimar em praça pública. O resultado disso foi a criação de códigos de conduta que ditavam o que uma história em quadrinhos não podia abordar.

 

Não podia abordar divórcio, crime, violência, aborto, desacato à autoridade. Qualquer sensualização, erotismo ou referência a sexo estava proibida. Mas podiam ser feitas histórias sobre macacos detetives, patos falantes e pessoas adultas que vestiam fantasias de gosto duvidoso e combatiam o "mal", que geralmente queria dominar o Mundo roubando os sonhos das crianças ou alguma ameaça do tipo. Assim, por decreto, os quadrinhos viraram coisa pra crianças. Puros, bobos e inofensivos.

 

Talvez seja por causa dos quadrinhos serem considerados coisas pra crianças que as histórias criadas por Robert Crumb e seus amigos sejam tão impactantes. Sexo explícito, uso de drogas, apologia da vadiagem. Era 1968, em São Francisco, e o movimento underground ganhava as páginas dos quadrinhos da revista ZapComix. Agora era declarado e sincero: sim, mamãe e papai, os quadrinhos vinham para corromper as crianças. Ensinavam a fazer o béque. Nem todo mundo acompanhou ou deu continuidade ao estilo de Crumb e seus amigos, mas eles deixaram a sua marca.

 

Os quadrinhos mainstream passaram as décadas de 70 e 80 bem comportados, mas ensaiando. Tinha muita coisa acontecendo já na Europa e no Japão. Nos EUA, o pessoal segurava a mão, pensava nas crianças, nas vendas, na censura, mas, ups, de repente, o herói Arqueiro Verde pegava seu parceiro mirim no flagra, com  a seringa de heroína enfiada na veia. Isso no gibi de super-heróis dos anos 70.

 

Nos anos 80, Alan Moore, um inglês danado, virou o mercado do avesso com suas histórias de supers. O Monstro do Pântano era um cientista que tinha virado um super-herói vegetal depois de um daqueles acidentes típicos do gênero. Nas mãos de Moore, O Monstro do Pântano virou história de terror séria, com um texto muito bem elaborado e serviu para abordar diversas questões. Por exemplo, em uma história a maldição do lobisomem era usada como alegoria para falar de menstruação e da opressão da sociedade machista sobre a mulher. Mas é outra obra de Moore que marca o período como a história definitiva de super-heróis: Watchmen.

 

A verdade é que quadrinhos tem essa coisa, essa suposta inocuidade compulsória, essa indissociável aura de inocência. Pra alguns autores, essa é a graça dos quadrinhos. Eles não são levados a sério. Pode-se experimentar bastante com eles justamente por isso. Despretensão é a palavra. Os tais super-heróis são um exemplo disso. Eles são a base da grande indústria de quadrinhos norte-americana. A transposição do gênero para o cinema, com suas bilheterias espetaculares, ilustra bem o potencial comercial dos super-heróis. E super-heróis carregam em si uma simplicidade, uma simplificação dos problemas do Mundo a algo que pode ser resolvido em uma troca de tapas entre dois sujeitos fantasiados, um "herói" e um "vilão".

 

Watchmen, de Moore, tinha entre seus muitos méritos justamente a problematização desse maniqueísmo através do desenvolvimento de personagens complexos e contraditórios. A intenção do autor era imaginar, da maneira mais convincente possível, como seria um mundo em que houvesse um ser com poderes extraordinários. Rico na descrição detalhada dos aspectos políticos, econômicos e sociais que a existência do poderosíssimo Dr. Manhattan supostamente implicaria em nosso mundo, Watchmen também explora e subverte de maneira espetacular as convenções do gênero de super-heróis. Como curiosidade, vale mencionar que Watchmen é o único quadrinho a entrar na lista, feita pelo New York Times, dos 100 melhores livros em língua inglesa.

 

Outro título que extrapolou as expectativas do gênero de super-heróis foi Sandman, do inglês Neil Gaiman. Hoje um autor extremamente popular, Gaiman começou sua carreira com a proposta da editora DC Comics (a mesma do Batman e do Superman) de escrever uma revista mensal a partir de um velho e obscuro personagem. Nos anos 40 Sandman era o nome de um super-herói milionário que usava capa, chapéu e máscara de gás e fazia as pessoas dormirem usando uma pistola com pó soporífero. Sem super-poderes, histórias nos moldes das pulp fictions de terror. Mais tarde, nos anos 70 surgiu um novo Sandman, em uma vistosa fantasia de amarelo e vermelho berrantes, que morava na dimensão dos sonhos e tinha toda uma parafernália científica para combater o mal. A tarefa de Gaiman era criar uma nova versão do personagem para os anos 90.

 

A caracterização que Neil Gaiman deu ao personagem foi extraordinária. Não mais um super-herói, mas uma entidade que era a personificação dos sonhos. Um sujeito pálido, com milhares de anos de idade, presente em todas as culturas capazes de sonhar. A partir daí, Gaiman construiu um universo ficcional que valia-se dos super-heróis, mas também estava impregnado de diversas referências à mitologias, culturas, arte, música, literatura. Publicado entre 1989 e 1996, Sandman impactou os quadrinhos mainstream, tornou-se um cult e tem suas histórias republicadas até hoje em edições luxuosas e caras.

 

Gaiman produzia roteiros para serem publicados de maneira seriada, mensalmente. Isso acarretava alguns problemas de ordem criativa. Ele tinha ideias para fazer conjuntos de histórias que se desenvolviam em seis ou sete capítulos, mas a publicação acontecia simultaneamente com a produção do texto. Assim, ao contrário de um romance, em que o autor conclui toda a obra e a apresenta completa de uma vez só, na elaboração de uma série mensal o que tinha sido escrito no primeiro capítulo era irrevogável. Se Gaiman tivesse alguma nova ideia antes da conclusão da história, não poderia alterar nada do que já tinha sido escrito e publicado. Apesar desse processo de trabalho, ou talvez por causa dele, Gaiman concebeu histórias incomuns, originais, onde mostrava uma poética que retratava não apenas seres fantásticos, mas também o cotidiano, a solidão, as desilusões e, principalmente, a criação de narrativas. A grande maioria dos leitores concorda que Sandman é uma grande história sobre o ato de contar histórias.

 

 

sandman | arte de marc hempel

 

 

Finalmente, um aspecto muito importante de Sandman é o modo como ele tratava as questões de gênero. Homossexuais e transexuais eram representados de maneira muito natural. Uma personagem marcante da série foi a transexual Wanda. As personagens femininas eram muito elaboradas e interessantes. A mais evidente é Morte, a adorável personificação da morte, irmã mais velha do protagonista, que conquistou os leitores com sua simpatia e personalidade. Rose Walker, Barbie, Ishtar, Hazel, Foxglove e outras tem papéis de protagonismo ou de destaque na série. Por isso tudo Sandman é tão cultuado e celebrado até hoje.

 

Contemporâneo de Sandman e igualmente marcante é o livro Maus, de Art Spiegelman. Deixando os super-heróis pra lá e abraçando a herança underground, Maus é a história de Art entrevistando seu pai sobre a sobrevivência aos campos de Auschwitz. No desenho de Spiegelman os judeus são representados como ratos, os alemães como gatos. O recurso proporciona resultados impressionantes na narrativa das brutalidades do Holocausto, nas dificuldades da relação entre pai e filho, na tensão de criar uma obra que aborda uma tragédia sem cair no drama piegas ou na exploração descarada da desgraça alheia.

 

Em 1992, Maus ganhou um Prêmio Pulitzer especial e, até agora, é a única história em quadrinhos a ter conseguido esse feito. Na época, uma revista de arte abordou o fato e procurou explicar porque Maus era uma obra de valor, "apesar" de ser uma história em quadrinhos. Foi na década de 90 que os autores de quadrinhos começaram a ser percebidos por obras que não abordavam os tais temas "infantis".

 

O desenhista David Mazzucchelli, que tinha uma boa reputação no mercado de super-heróis com obras como Batman: ano um e Demolidor: a queda de Murdock, migrou de vez para a "produção autoral". Editou e publicou três edições de uma revista chamada Rubber Blanket, na qual apresentava histórias curtas de caráter experimental. Os super-heróis não davam as caras, os desenhos eram feitos com um pincel expressivo, as formas eram quase abstratas e as tramas variavam do introspectivo a um surrealismo melancólico. Muito difícil de achar essas revistas por aí. Mais fácil encontrar a adaptação que Mazzucchelli fez de Cidade de Vidro, parte da A Trilogia de Nova York, livro de Paul Auster.

 

Com a colaboração de Paul Karasik, Mazzucchelli valeu-se de recursos gráficos dos quadrinhos, como a grade de painéis, os balões e o lettering para não só "adaptar" a trama de Auster, mas para criar algo único, com identidade própria. Essa versão em quadrinhos de Cidade de Vidro foi publicada no Brasil pela editora Via Lettera em 1998, mas ainda pode ser encontrada por aí. Já está na hora de alguém pensar em publicar uma nova tiragem desse material.

 

O trabalho mais recente de Mazzucchelli foi Asterios Polyp, publicado em 2009. Antes disso, o autor manteve um período de 10 anos sem publicar praticamente nenhum trabalho, dedicando-se apenas as atividades de professor e à elaboração desse livro. O resultado foi uma obra impressionante. Asterios Polyp é um arquiteto mergulhado em depressão e crise pessoal, que vê sua casa pegar fogo na noite em que completa 50 anos.  À medida que a trama avança, ficamos sabendo sobre suas inquietações e que ele tinha um irmão gêmeo natimorto chamado Ignazio. A sombra do irmão falecido o acompanha a vida toda. Aliás, ele é o narrador da história.

 

Asterios Polyp é uma obra sobre identidade, alteridade e arte. Mais uma vez Mazzucchelli explora os aspectos plásticos da linguagem dos quadrinhos para amplificar a narrativa. Cores, traços, estilos de representação gráfica. Cada personagem tem uma tipografia específica criada pelo autor para representar sua fala. A dualidade e suas tensões são o tema principal da obra. Racionalidade e irracionalidade, curvas e retas, destino e acaso, vão sendo visitados pelo protagonista em desconstrução. Se eu tivesse que indicar um quadrinho para alguém que não conheço, provavelmente indicaria Asterios Polyp.

 

Mazzucchelli encara os quadrinhos como um meio de expressão desvinculado de gênero narrativo ou limitações de tema. Essa abordagem dos quadrinhos como um meio de expressão legítimo tem diversos outros exemplos. Vou citar brevemente uma relação dos que eu acho mais interessantes, mas é apenas uma pequena parcela e não tem a pretensão de incluir todas as obras relevantes recentes.

 

Alison Bechdel é autora de Fun Home (2006) e Você é minha mãe? (2012). Ativista LGBT, Bechdel relata nessas duas obras autobiográficas a relação complicada com o pai e a mãe. O primeiro livro é de leitura mais fácil e de maior intensidade emocional, mostrando o conflito entre pai e filha, ambos com dificuldades de assumir suas sexualidades. O segundo é muito mais denso, pensando não só a relação entre mãe e filha, mas também mostrando uma complexa auto-análise da autora a respeito de suas inseguranças e de seu processo criativo. Alison Bechdel também é a responsável pelo "teste Bechdel", que avalia a representação das mulheres em filmes.

 

Joe Sacco é jornalista e faz reportagens em quadrinhos. Sua abordagem do conflito entre palestinos e israelenses rendeu dois livros lançados no Brasil: Notas sobre Gaza, em 2010, e Palestina, em 2011. O trabalho de Sacco é marcado pela narrativa em primeira pessoa e pela clara tomada de posição dentro do conflito, abrindo mão de qualquer suposta neutralidade. Essa atitude oferece a visão de um lado que frequentemente é ignorado pela mídia estabelecida.

 

Também seguindo a linha "autobiográfica", a iraniana Marjane Satrapi relata em Persépolis (2000) sua infância e adolescência no Irã, vividas durante a revolução islâmica. Novamente, as esferas pessoais e políticas se interpenetram. As experiências pessoais de Satrapi ganham outra dimensão dentro do contexto em que as vive.

 

Fugindo da esfera autobiográfica, vale muito mencionar os trabalhos de Chris Ware, com Jimmy Corrigan (2000) e o monumental Building Stories (2012), uma caixa que contém diversos livros, livretos, posters, revistinhas, cartões e tabuleiro para serem lidos em qualquer sequência e contar uma única história em quadrinhos. Segundo os cálculos de Rich Johnston, jornalista especializado em quadrinhos, a forma como Building Stories foi produzido permite que essa mesma história possa ser lida de 87.178.291.200 maneiras diferentes.

 

Embora pareça não ter um design gráfico tão elaborado quanto o de Building Stories, Umbigo Sem Fundo (2008) é uma obra que aborda de maneira fascinante as complexas relações dos membros da família Loony. O autor Dash Shaw tinha 23 anos quando produziu as 720 páginas desse seu primeiro livro em quadrinhos. Também impressionantes são os complexos arabescos entre as 672 páginas que Craig Thompson elaborou para Habib, uma história de amor instigante profundamente calcada na cultura muçulmana.

 

Há diversas outras obras de autoras e autores relevantes, de diversos países, trazendo ficções, biografias, releituras de obras literárias, relatos jornalísticos. A narrativa de uma única história, sem pretensões de seguir os cânones da produção seriada e contínua, acabou originando um novo nicho de mercado. Para distinguir o produto, foi cunhado o termo graphic novel. Além do apelo comercial do termo, há alguns que acham que realmente ele é necessário para descrever um novo tipo de história em quadrinhos, "mais adulto". É importante ressaltar que muitos autores não concordam para o termo graphic novel e alguns se sentem bem desconfortáveis com ele, por causa de uma suposta presunção que carrega em si. Independente do termo, percebe-se que há autores que procuram tratar os quadrinhos como um projeto expressivo específico e único, e não como parte de uma produção contínua visando comercialização ininterrupta.

 

Marcello Quintanilha é um niteroiense, que mora há alguns anos em Barcelona, produzindo ilustrações e quadrinhos para editoras europeias. Em 2014, ele publicou o livro Tungstênio, sua primeira história longa, com 192 páginas. Antes disso, tinha publicado histórias mais curtas em dois álbuns: Sábado dos meus amores (2009) e Almas públicas (2011). Além de uma arte extremamente detalhada e realista, a grande característica do trabalho de Quintanilha é a elaboração dos diálogos, que fluem de maneira extremamente natural e convincente. Mais do que isso, ele parece conseguir representar legitimamente os sotaques e as culturas de cada região brasileira. Em Tungstênio, a história é ambientada em Salvador e as pessoas, suas particularidades e cotidianos, são fielmente retratadas. O ritmo da narrativa também é empolgante e prende o leitor da primeira a última página. Para construir sua ficção, Quintanilha tomou como base uma notícia de jornal.

 

Marcelo D'Salete tem um mestrado em História da Arte pela USP e usa suas histórias em quadrinhos para falar sobre o negro dentro da sociedade brasileira. Em Cumbe (2013), com quatro histórias, apresenta um painel das relações e relacionamentos contaminados pelas estruturas de poder e controle do período da escravidão. Não há estereótipos nem maniqueísmos, o que aumenta ainda mais o impacto seco das narrativas.

 

 

arte de marcelo d'salete

 

Um projeto bem ambicioso dentro do mercado brasileiro de quadrinhos foi o livro Cachalote (2010), que resultou da parceria entre o escritor Daniel Galera e o quadrinista Rafael Coutinho. Autor dos romances Mãos de Cavalo e Até o dia em que o Cão Morreu, Galera experimentou escrever um roteiro de HQ pela primeira vez. Com a colaboração de Coutinho, explorou diversas silenciosas sequências de imagens para ajudar a construir uma atmosfera de introspecção quase onírica em seis relatos paralelos que se intercalam pelas mais de 300 páginas. Na minha opinião, uma experiência fascinante.

 

Nos últimos anos, a produção de quadrinho nacional tem visto crescer bastante os chamados "independentes". Vale dizer que, dentro do contexto brasileiro, quadrinista independente é todo aquele que produz sem apoio de nenhuma editora, responsabilizando-se sozinho por todas as etapas de produção: criação de roteiros e desenhos, preparo dos originais para impressão, custos de gráfica, distribuição, divulgação. Independente é a pessoa que se encarrega de tudo isso sem uma estrutura considerada "profissional". O interessante é a diversidade de trabalhos que podem se abrigar sob o rótulo "independente".

 

Vitor Cafaggi, de Belo Horizonte, produz a história em quadrinhos Valente. Produzida originalmente para a internet, a resposta positiva do público levou Vitor a publicar Valente como uma série de livros. Com o sucesso, ele recebeu o convite para participar do projeto Graphic MSP, que envolve uma série de autores nacionais com liberdade criativa para fazer novas leituras dos conhecidos personagens da Turma da Mônica, de Mauricio de Sousa. A exposição resultante desse trabalho fez com que Vitor fosse o primeiro autor independente brasileiro do século XXI a ter suas publicações distribuídas nacionalmente pela Panini, responsável também pela maioria esmagadora dos quadrinhos das editoras Marvel e DC publicados no Brasil. Valente é uma história sobre relacionamentos e amadurecimento, onde os personagens são desenhados como figuras zooantropomórficas. Isto é, como em Maus, os personagens parecem bichinhos falantes.

 

Além de Cafaggi, há diversos outros autores e autoras que produzem as mais diversas histórias em quadrinhos. Magno Costa, Gabriela Masson, Ana Recalde, José Aguiar, DW Ribatski, Bianca Pinheiro, Paulo Crumbim, Cristina Eiko, Danilo Beyruth, Antonio Eder, Fefê Torquato, Juscelino Neco, Raphael Salimena, Fabio Coala, Shiko, Guilherme Caldas, André Diniz, Luciano Salles, Camilo Solano... É muito difícil conseguir acompanhar toda a recente produção nacional. Paulo Ramos, responsável pelo Blog dos Quadrinhos, contabilizou que no FIQ de 2011 houve cerca de 40 lançamentos de publicações de quadrinistas nacionais independentes. No FIQ de 2013 esse número foi de 140.

O FIQ é o Festival Internacional de Quadrinhos que acontece na cidade de Belo Horizonte, bienalmente. Trata-se de um evento de grande porte, que recebeu 148 mil visitantes na edição de 2011, superando a conhecida San Diego ComicCon. Além do FIQ, há diversos outros eventos dedicados aos quadrinhos pelo Brasil, como a Gibicon, em Curitiba, e a Multiverso ComicCon, em Porto Alegre. Em São Paulo, acontecem as Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos, um encontro onde pesquisadores trocam informações sobre diversas abordagens de estudos com as HQs. De fato, não é mais novidade no Brasil o interesse acadêmico por quadrinhos, utilizando-os para discutir questões de educação, história, sociedade, cultura, psicologia, arte e diversas áreas de conhecimento.

 

Há uma paixão genuína pela linguagem que impulsiona a produção. Ainda não há uma certeza de viabilidade econômica, ainda assim existe uma comunidade engajada que parece cada vez maior. A discussão sobre a relevância ou os limites temáticos dos quadrinhos não faz mais sentido para essas pessoas, que atuam como autoras, críticas, jornalistas, estudiosas e leitoras. A relação com a tradição norte-americana de quadrinhos, com seus super-heróis e graphic novels, a produção japonesa de mangás, os álbuns europeus, tudo isso entra na formação das diversas autoras e autores brasileiros, mas é transformado e resulta em obras com identidade própria.

 

O senso comum, porém, continua dizendo que quadrinhos são para crianças. Reportagens, discursos da mídia, mostram sempre um sorriso condescendente, uma simpatia por algo que se imagina ser completamente inofensivo e uma surpresa constrangida ao descobrir certas obras.

 

As coisas nunca estiveram tão bem para os quadrinhos.

 

 

 

março, 2015

 

 

 

Liber Paz é professor do curso de Design da UTFPR. Doutorando em Tecnologia, Mediações e Cultura, desenvolve uma pesquisa sobre a produção de quadrinhos independentes no Brasil. Também é autor de quadrinhos e participou de publicações como as revistas "Café Espacial" e "Quadrinópole" e das coletâneas Cidade Sorriso dos Mortos-Vivos, Bocas Malditas e Fronteira Livre. Em 2013, publicou seu primeiro álbum solo, As coisas que Cecília fez.