Êxtase

 

 

Quando eu morrer, lancem meu corpo à água do mar;

ao sal do mar.

Não sintam remorsos,

não conjecturem paixões, cismas ou superstições.

Deixem que a morte se multiplique em mim.

Permitam que o sol me coma ao amanhecer,

para que eu possa me dissipar envolvida por seu sêmen em chamas;

para que meus sonhos não adormeçam na lama escura é pútrida;

para que eu seja não mais um corpo, apenas, mas uma multidão em cena;

para que eu possa renascer todos os dias a gozar na água do mar.

 

 

 

 

 

 

Divino

 

 

Não quero ouro, nem incenso, nem mirra;

não quero o menino, nem a mãe do menino.

Basta de milagres!

Basta de falsas puritanas!

Eu quero os três reis magos;

eu quero José com seu cajado sagrado;

eu quero sonhar com a estrela de Davi viva entre minhas pernas.

Sou um anjo em quatro dimensões.

Dê-me um pouco de calor e eu serei sua salvação.

 

 

 

 

 

 

Volúpia

 

 

Todas nós, mulheres do mundo,

somos Virgens Marias,

parimos virgens e continuamos virgens;

todas nós, mulheres do mundo,

temos um José ausente, insuficiente;

todas nós, mulheres do mundo,

queremos um anjo Gabriel

que nos visite ao anoitecer,

todas nós, mulheres do mundo,

temos um amante invisível,

que nos acende,

nos santifica e nos penetra com seu fogo sagrado;

todas nós, mulheres do mundo,

somos o nosso próprio milagre,

o nosso próprio deus,

o nosso próprio diabo.

Todas nós, mulheres do mundo,

somos mães, irmãs e filhas de nós mesmas.

 

 

 

 

 

 

Transições

 

 

Levava o inimigo morto nas costas, sem remorsos e sem orgulho.

Os transeuntes pareciam não se importar. Cumprimentavam-no tirando os chapéus:

— Bom dia, Jurandir.

— Bom dia, Seu Nino.

— Bom dia, Jurandir.

— Bom dia, Seu Zezo.

E seguia Jurandir com o seu morto. Haveria de cavar cova rasa, sem grande esforço. Que virasse carniça pra urubu. "Morreu porque quis o estorvado. Teimoso de uma mula!"

Mas, no final do caminho, havia um menino de braços abertos e riso corado.

E o menino era ele, Jurandir de Paula Solto. Era ele menino. Bonito como uma pera. Forte e rijo.

— Queres o morto? Perguntou Jurandir a si menino.

— Não. O morto é seu.

Jurandir homem olhou-o, confuso, admirado, admirando-o.

Jurandir menino olhou-o, pragmático, indiferente. E partiu dizendo, enquanto se distanciava de si homem:

"O morto oto oto oto é seu eu eu eu.

O morto oto oto é seu eu eu.

O morto oto é seu eu.

O morto é seu.

O morto seu...

O morto eu...

O morto...

morto...

Eu.

Eu?"

 

 

 

 

 

 

Santa Clara

 

 

Se eu fosse Eva, eu amaria a Deus sobre e sob todas as coisas:

sobre o solo sagrado, sobre as plantas miúdas;

sobre as folhas secas da figueira;

sob o céu, ensolarado, enluarado, estrelado;

e sob os olhares voluptuosos dos anjos e dos santos guardiões.

Conceberia eu o seu filho unigênito,

filho do prazer, não da submissão.

Que comesse Adão da árvore do conhecimento,

e que fosse a serpente sua fiel procriadora.

Eu permaneceria ignorante e feliz no Jardim do Éden.

Seria eu a eterna sedutora do Grande Criador

e seríamos o princípio, o verbo, o prazer.

 

 

 

 

 

 

Remanescente

 

 

Achei um poema estranho no fundo do meu guarda-roupas.

Um poema surrado e rasgado.

Ergui-o pelas pontas dos dedos.

Parecia úmido.

Teria chorado?

Não. Não era meu aquele poema.

Se fosse, não estaria ali a viver tão precariamente.

Alguém o escrevera e o abandonara por descuido.

Eu é que não o queria ali.

E se fosse um poema contaminado?

Um poema maníaco?

Um poema obsessivo?

Um poema louco, descontrolado, assassino? ...

E se tramasse contra mim?

E se tentasse me violentar?

Contaminado, maníaco, obsessivo, louco, descontrolado, assassino!

E se se apaixonasse por mim?

Por mim? Por mim! Por mim.

Vesti-o, eufórica.

E pareceu-me que ele fora feito sob medida

para mim.

 

 

 

 

 

 

Eternidade

 

 

Eu sinto que fui gerada por criaturas celestes, de céus distantes, de noites distantes.

Herdei de meus antepassados os hábitos noturnos, o gosto pela solidão.

Meu canto não é compreendido porque é verdadeiro,

e triste porque é solitário.

Nasci em um ninho de ervas daninhas,

de um ovo apodrecido.

Nasci morta, cresci morta, estou morta.

Não tenho motivos para temer um estado permanente de luto e de escuridão.

Eu sempre estive morta.

 

 

 

 

 

 

Piralina

 

 

Rima rica, rima rara, rimem minha ira, minha cobiça, minha tara;

rimem a rua onde moro e o menino que não para;

rimem minha lírica fleumática, minha euforia pragmática, minha alegria tétrica e minha fé cética;

rimem minha falta de ética e de vergonha na cara;

rimem o crime interrompido, o beijo, o gemido;

rimem o sexo e a traição, a miséria em decomposição;

rimem meu desespero, minha falta de dinheiro e minha rica ilusão.

 

 

 

 

 

 

Atrócita

 

 

Oh, meu bom Hades! Dancemos um jazz, um blues, um bom rock n roll.

Dai-me um pouco de erudição; devolva-me Bob, Janis, Jim.

Sou o palco de Artaud, uma tela de Balthus, um poema de Tzara; e, à noite, uma adolescente sensual a girar em torno de si, um Cérbero acuado.

Três cabeças e nenhuma imaginação.

Santa Maria, eu não sei rezar. Sou filha da heresia, uma mulher sem educação, nascida para amar, nascida para errar.

 

 

 

 

 

 

Hino à morte

 

 

Apesar destes desvarios,

destes constantes desatinos,

destas vis covardias,

tu, minha morte,

ainda me acolhes,

me afagas em teu colo maternal

e não me deixas cair,

e não me deixas partir;

antes, repousas teus lábios frios em minha testa tétrica.

Por isso, tenho dito que te amo, morte lúgubre;

que te amo com toda a ferocidade divina;

que te amo nesta ausência de dor;

que te amo nesta desrazão,

nesta extinção de abismos,

nesta oclusão de conflitos;

que te amo antes do grito derradeiro,

antes do amor primeiro;

nas mãos que tateiam o corpo inerte,

na ausência de meus mortos,

na perspectiva do inalcançável,

no luto,

na luz,

no abstrato que me conduz,

previsível e permissível,

submissa a tua doce voz,

eternamente submissa a tua doce voz.

 

 

 

 

 

 

Nada

 

 

Nada de deuses, de santos e de anjos;

nada de papas, de bispos, de padres, de pastores, de diáconos, de coroinhas, de catequistas;

nada de religiões, de sagradas escrituras, de igrejas;

nada de missas, de cultos, de pregações;

nada de pecados, de confissões, de orações, de penitência, de remissões, de indulgências;

nada de ofertas, de centésimos ou dízimos;

nada de batismos, de comunhões, de crismas, de casamentos;

nada de extrema-unção ou missa do sétimo dia;

nada de alma, nada de espíritos, nada de céu, nada de inferno.

Quem precisa de tanta hipocrisia?

 

 

 

 

 

 

À morte e à morte

 

 

Ao nada,

minhas ilusões.

Ao nada!

Só, eu rio e morro.

Rio de mim e dos outros,

do que fui e dos que se foram.

Vou-me e é justo que me vá assim,

com o corpo envolto em pedras,

e o peito repleto de dores ignoradas.

Não digam que cometi suicídio.

Não se envaideçam.

Não será por suas perversidades.

Será por mim.

Egoisticamente por mim.

As pedras hão de me conduzir,

E é justo que assim seja;

afinal, apenas elas me venceram na arte de rolar.

Morro do mal da pouca vida,

Desta sina insana,

deste destino certo.

Envolvida em pedras,

para evitar despesas,

e dispensar protocolos vãos.

Lanço-me ao mar

também por vaidade.

antevendo a primeira mordida,

a disputa por cada lasca de pele,

por cada porção de víscera.

Lanço-me ao mar

a fim de me tornar útil na morte.

Perdoem-me os vermes da terra,

perdoe-me o proprietário da funerária Hees,

perdoe-me, Liz. Cancele as rosas amarelas;

mas os braços do coveiro serão poupados,

uma árvore será poupada,

velas brancas e litros de combustível serão poupados.

Nem rituais, nem hipocrisias.

Esta será a vez das piranhas.

 

 

 

 

[imagens ©rafaelle monti]

 

 
 
 

Tereza Du'Zai, natural de Itajaí, Santa Catarina, é poeta, contista, cronista e professora de Língua Portuguesa e Literatura. Em 2015, publica seu primeiro livro, A Morte e Alguns Poemas.