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A VIDA SOB MEDIDA

 

 

Com a promessa de uma vida curta

eu me animo.

Assusta-me é a possibilidade

de viver excessivamente

vendo dentes, botões caindo

e a poesia pedindo para morrer.

 

 

 

 

 

 

PRESSÁGIO

 

 

Quando entra vento

no meu apartamento

parece que a vida fica mais leve.

 

Que vento será este

que me espalha por aí

e nunca me recolhe?

 

 

 

 

 

 

IMPERFEIÇÕES

 

 

Desmembrando a rosa

podemos encontrar uma criança morta

um fio de cabelo azul

uma faca de corte cego

uma carcaça pré-histórica

um verso mudo

a agonia de todos os poetas.

 

 

 

 

 

 

ESSENCIAL

 

Além do mito

fito a palavra viva

divisa de saliva e grito

por onde transpira a vida.

 

 

 

 

 

 

OUTRO PORTO

 

Poeta

entrega tua mão

a outra dedicação

na falta da palavra-mestra.

Esquece da ideia.

Hoje a poesia não te pertence:

cresce afoita em outra matéria.

 

 

 

 

 

 

DIETA

 

 

Abstive-me de poesia

por 40 dias e 40 noites.

Troquei a carne pelo sal

e as mãos pelos pés.

40 dias e 40 noites

segurando o vício esperto

de pescar palavras

e depois fritá-las na gramática

 

 

 

 

 

 

ATESTADO DE VIDA

 

 

A tristeza que ora sentes

e o vazio que permanece mudo

cutucando com vara curta

tua agonia

tua ânsia de berrar

são os ingredientes dessa forma obscura

de sentir-se vivo,

inadiavelmente vivo.

 

 

 

 

 

 

ÚLTIMO AMOR

 

depois virão as pragas

depois as moscas

depois a morte

depois o pó

depois o esquecimento.

 

 

 

 

 

 

BAGAGEM

 

 

Levo no instante da morte

o poema inacabado

a dúvida flagrante

a poeira de minha rua

a saudade que nunca usei.

 

 

 

 

 

 

LIÇÕES DAS COISAS

 

A vida de solteiro

ensinou-me a fritar ovos

a esperar visitas impossíveis

e a ler nas janelas vizinhas

a exata dimensão do viver sozinho.

 

 

 

 

 

 

COM OS OLHOS NO FUTURO

 

Que sonhos virão

dessas noites quentes,

onde o travesseiro é um braseiro

e o lençol um nó no pescoço?

 

 

 

 

 

 

GUERRA SANTA

 

Sempre que bebia muito

cuspia terra no alvíssimo lençol

e declarava guerra ao Divino Espírito Santo.

No dia seguinte

acordava com gosto de quintal

e entendia o mistério da ressurreição.

 

 

 

 

 

 

REVELAÇÃO

 

 

Um cavalo desdentado

veio dar à minha porta.

Sobre ele

quase o arreando

vinha a humanidade

caquética de pretensões.

 

 

 

[Poemas do livro Retrato do Tempo. Edições Trote, 1983]

 

 

 

 

[imagens ©tobbe malm]

 

 

Raul Miranda. Nasceu em Recife (1954) e foi para o Rio, onde vive, aos três anos de idade. Da chamada "Geração Mimeógrafo", publicou os seguintes livros nesse tipo de impressão: Realidade versus Fantasia (1972), Fantasia versus Realidade (1973) e Impressões (1974). Em offset: Canto Mudo (1975, duas edições), Novo Ar (edição folhetim, 1976 e segunda edição, 1979) e Retrato do Tempo (Edições Trote, 1983). O novo livro, Inferno Portátil, está em fase de produção.