Priscila Merizzio - Em entrevista a Márvio Câmara, do Posfácio, você disse que seu próximo romance está previsto para 2016, e que está quase todo no Vida Breve, onde você publica suas crônicas. Pode dar mais detalhes sobre ele?

 

Rogério Pereira - Tive de rever o prazo de publicação para 2018. Sou uma tartaruga na tempestade quando escrevo. Encaro a literatura com lentidão e calma. Sem pressa, num ritmo que me interessa na construção de algo que realmente me agrade (quase nunca nada me agrada). Será o segundo romance na Trilogia do Abismo, iniciada em 2013 com Na escuridão, amanhã. Pretendo tratar em 52 capítulos (26 já estão escritos) de temas constantes na literatura: passagem do tempo, morte, esquecimento. No núcleo da narrativa, dois personagens: uma mulher com câncer terminal e um velho que acredita ser sobrevivente de Auschwitz. E, de maneira sutil, haverá um diálogo com Na escuridão.

 

 

PM - Em seu livro Na escuridão, amanhã, por que você é tão duro com as personagens?

 

RP - Os personagens têm o tratamento que considero adequado à construção do romance. São personagens acuados num ambiente um tanto inóspito. E em torno há o crime (o pecado) cometido pelo pai. E a figura de Deus. O livro foi definido como claustrofóbico. Talvez seja um pouco. Não há muita folga para o leitor. A tensão é quase permanente do início ao fim. Mas é o tipo de literatura que me agrada, que gostaria de ter feito. É claro que pretendia construir algo muito mais consistente, mais significativo. Mas a literatura é apenas o possível. E por isso gera tanta insatisfação no autor, que busca incessantemente o livro de sua vida. Muitas vezes, nunca o alcança.

 

 

PM - Diante de sua grande experiência como crítico literário, editor e principalmente leitor e escritor, quais são os principais erros cometidos pelos aspirantes a escritores? E os acertos?

 

RP - Talvez não tenha competência para responder a essa pergunta. Sou apenas um leitor. E busco escrever algo que me agrade. Como editor, tento manter um jornal de literatura. E jamais me considerei um crítico literário. Mas vamos lá. O principal erro de qualquer escritor (novato ou não) é a pressa. A pressa leva ao desespero e à falta de critérios. É preciso ter paciência para escrever e publicar. E não estou falando em sofrimento (o velho clichê de muitos escritores). Falo em rigor, em capacidade de olhar o texto e desconfiar sempre. Muitos autores são bestas desgovernadas na ribanceira. Dão à luz uma frase razoável e desembestam a publicar, em geral, coisas completamente descartáveis. É claro que cada um sabe a fome que lhe corrói as entranhas. Por outro lado, acho admiráveis autores de 40 anos que já publicaram 30 livros. E eles existem. Em 42 anos de vida, publiquei um único e magricelo livro. E acho que publiquei demais. Por outro lado, o acerto me parece o caminho contrário: desconfie, reveja, pense bem, tenha cautela. Enfim, pare diante do abismo, respire fundo e só se jogue quando tiver certeza de que realmente deseja morrer.

 

 

PM - É bastante frisado, especialmente entre editores independentes, que há mais escritores do que leitores no Brasil. Você acha que a curadoria do mercado editorial deveria ser mais acirrada ou considera que é um avanço o fato de que muitas pessoas possam dar espaço à sua voz?

 

RP - Sempre digo: você tem o direito de escrever e publicar; eu tenho o direito de não ler. Não vejo nenhum problema de ter tanta gente escrevendo e publicando. Cada um sabe como gasta o tempo que lhe resta antes de ser soterrado por crisântemos e devorado por vermes. Recebo livros todos os dias. Muitos livros. Obviamente que não os leio. A maioria absoluta nunca lerei. É impossível. Preciso viver, levar os filhos à escola, jogar futebol, tomar café, correr na rua, desviar dos carros, confundir as cores, etc. Espero que esses autores que estão publicando na puberdade também sejam leitores. Já ouvi várias vezes: agora, não estou lendo nada, apenas escrevendo. Há muito escritor que apenas escreve. E não lê. Ou seja, não é nem escritor, nem leitor. Não é nada. Por outro lado, não se deve levar tanto em consideração a tal curadoria do mercado editorial. O mercado editorial, em geral, gosta de dinheiro. Os donos das editoras, em geral, não gostam e não entendem de literatura. Eles entendem de negócio. Alguns não entendem de nada: nem de literatura, nem de negócio. É claro que o mercado editorial é composto por muita gente capacitada. Mas, muitas vezes, com pouco poder de decisão. Os escritores não devem se preocupar com essas questões. O verdadeiro escritor deve se preocupar em ler e escrever. O resto, cedo ou tarde, acontece. Às vezes, infelizmente, quando os vermes já fizeram o seu trabalho.

 

 

PM - Quais os pontos a ser ressaltados sobre o grande número de editoras independentes e da facilidade que se tem hoje de editar e publicar livros?

 

RP - Acho que o grande problema das editoras independentes é encontrar leitores. A distribuição dessas editoras é precária ou inexistente. E os meios digitais ainda não são a salvação. Podem ser. Mas ninguém sabe muito bem como.

 

 

PM - Em sua opinião, os departamentos de graduação e pós-graduação em Letras, das universidades brasileiras, estão com bom currículo e formando, em geral, pessoas capacitadas para lecionar e questionar a literatura de forma consistente?

 

RP - Não tenho a menor ideia. Não frequento o meio acadêmico. Mas se tivesse de arriscar, diria que há sérias deficiências na formação dos professores que irão trabalhar com literatura e leitura. Comprovo isso com muita facilidade na prática. Vou com certa frequência a universidades e escolas falar sobre leitura. Às vezes, sinto-me um ET magricela e estabanado a gaguejar em língua estrangeira. Ou não entendo nada de leitura. Ou aterrissei no planeta errado. É impressionante a fragilidade do conhecimento sobre literatura entre os estudantes das universidades e os professores das escolas de ensino médio. A literatura brasileira contemporânea é um ET magricela e estabanado.

 

 

PM - Se houver mais espaço para suas vozes, de que forma os críticos podem contribuir para o cenário literário brasileiro e para a própria evolução do autor?

 

RP - Uma boa crítica é sempre bem-vinda. Uma boa crítica expande os limites do livro, dilata a consciência do livro, abre fendas para o autor, aproxima o leitor do livro. Todo autor busca escrever um bom livro, encontrar leitores e ser lido de maneira consistente pela crítica. Ou seja, a crítica é fundamental nesse processo todo.

 

 

PM - Como está a tradução literária brasileira? O Brasil está bem ajambrado de tradutores?

RP - Parece-me que a tradução literária vai muito bem no Brasil. Temos tradutores de reconhecido talento. E, sem eles, eu não teria acesso a muitos autores. Sou um completo analfabeto em qualquer língua. Hoje, vemos a obra de autores de todos os pontos do planeta por aqui, traduzidos diretamente da língua de origem. Antes, tínhamos a tradução da tradução do francês ou inglês. Ou seja, parece que evoluímos um pouquinho. Darwin tinha certa razão.

 

 

PM - "A arte é completamente inútil". O que vem à sua mente com essa frase de Oscar Wilde?

 

RP - É apenas uma frase de efeito. Todas as noites, antes de dormir, digo "a arte é completamente inútil". Aí, pego no sono e sonho com o Guernica, de Picasso. Tenho pesadelos com esse quadro há muitos anos. Ou seja, a arte serve para nos entregar pelo menos um pesadelo na vida. Ainda não tive pesadelos com Wilde. Espero não tê-los. Não gosto nada dele.

 

 

PM - Para você, assim como no processo de escrever crônicas, na poesia também é importante ao poeta que se distancie de "seus pares" e se envolva com o povo?

 

RP - Cada louco inventa sua loucura a sua maneira. Essa coisa de que o cronista tem de sair à rua em busca de histórias é só uma frase que quase todo cronista diz nessas mesas em bienais e feiras do livro. Todos dizem a mesma coisa. Na verdade, todo escritor carrega um embornal de clichês para entregar a seus leitores. O poeta precisa se envolver com o povo? Só ser for para assuntos carnais. De onde vem a poesia? Nem o poeta sabe.

 

 

PM - Para quem escreve é relevante ler seus contemporâneos? Qual a sua opinião sobre os cânones e sobre pesquisas que especulam a desconstrução deles?

 

RP - Para quem escreve é relevante ler. Ler os contemporâneos não é uma obrigação, é algo natural. Todo escritor é curioso, egocêntrico e invejoso. Então, é preciso ler os contemporâneos para sentir inveja, pena, raiva. E também para saber o que não fazer, o que não escrever, para desviar de caminhos, para tentar criar um caminho próprio, para fingir indiferença, para não ser invejoso. É quase uma terapia. O melhor é ler apenas os bons autores contemporâneos. Quem são eles? Cada leitor/escritor tem o seu cânone. Em relação à desconstrução dos cânones, digo que estou há algum tempo tentando descontruir Dom Quixote. Mas todo dia, Rocinante me dá um coice e me quebra um dente. Sancho apenas balança a pança às gargalhadas. Estou quase desistindo.

 

 

PM - Como o Prêmio Paraná de Literatura, quais são os outros prêmios brasileiros que você considera de grande excelência? Além da bonificação financeira, os prêmios trazem outros benefícios palpáveis ao escritor?

 

RP - Prêmio bom mesmo é aquele que deixa o gerente do banco feliz, mesmo sendo que ele jamais tenha lido um livro a não ser o manual internacional do Excel. Para alguns autores, o prêmio garante uma visibilidade que dificilmente teriam sem a premiação. O prêmio, às vezes, tira alguns bons livros da escuridão. Mas o prêmio em si não melhora a literatura do autor. Tem muito livro ruim premiado. E tem muito livro bom que não ganha nenhum prêmio. Prêmio e justiça nem sempre combinam. Então, não se deve fazer uma grande festa quando se ganha um prêmio. E também não se deve cometer suicídio em caso de não ganhar nada.

 

 

PM - É sabido que hoje o mundo virtual está intrínseco na sociedade. A Biblioteca Pública do Paraná vem sendo afetada por essa realidade? Em caso positivo, de que forma?

 

RP - Os reflexos do mundo virtual são sentidos o tempo todo. Não só na Biblioteca Pública do Paraná (BPP), mas na vida das pessoas. Hoje, estamos envoltos na ânsia da urgência, conectados o tempo todo. E nos sentimos umas bestas quando deixamos passar uma mísera bobagem que está "bombando" em qualquer rede social do abismo cósmico do fim do mundo digital. Na Biblioteca, houve uma sensível diminuição no público que buscava a biblioteca apenas como suporte para trabalhos ou pesquisas escolares. Esses usuários migraram para a biblioteca universal acima de Deus: o Google. Mesmo assim, existem aqueles usuários cujo DNA é de traça e ainda buscam na Biblioteca livros de papel, jornal de papel, fotocópia de papel, conversas de papel, atenção de papel, etc. É claro que a Biblioteca não pode ficar alheia ao mundo digital. E não está. É preciso investir muito em novos equipamentos, digitalização de acervo, etc. No entanto, falta sensibilidade ao Estado para essa questão. Bibliotecas, infelizmente, não são prioridades. Nem em Curitiba. Nem em Garanhuns.

 

 

PM - Você teria algumas sugestões pontuais para tornar possível a inclusão social de deficientes visuais nas bibliotecas públicas brasileiras? O serviço editorial literário voltado para livros em Braille deixa a desejar ou outras questões estão envolvidas?

 

RP - Em geral, há um trabalho bastante consistente de inclusão de deficientes visuais nas grandes bibliotecas. Na BPP, o trabalho é constante; e temos uma seção voltada somente ao atendimento desse público. Há um bom trabalho editorial de livros em Braille. No entanto, o investimento é sempre expressivo. Aí, voltamos à questão da importância das bibliotecas públicas no Brasil. Qual a importância de uma biblioteca dentro da assombrosa máquina pública? A resposta é uma névoa densa, quase impenetrável. Toda biblioteca pública precisa, o tempo todo, mostrar a sua importância, brigar por um mísero espaço. A questão das bibliotecas públicas no Brasil precisa de uma ampla discussão. Mas quem está disposto a discutir bibliotecas com seriedade no Brasil?

 

 

PM - Como é editar o "Cândido" e o "Rascunho" ao mesmo tempo, dois jornais com propostas diferentes?

 

RP - São trabalhos bem distintos. E eles nunca se misturam. Para tanto, o "Cândido"tem uma equipe própria, comandada com muita competência pelo jornalista Luiz Rebinski. Evito ao máximo interferir nas pautas e edição do "Cândido". Em relação ao "Rascunho", tenho pleno controle de todo o processo. E não abro mão disso. Há 15 longos anos.

 

 

PM - Você pensa em estratégias para ampliar o número de leitores e de assinantes do "Rascunho"? Os patrocinadores dão a segurança e estabilidade necessárias ao jornal?

 

RP - O "Rascunho" é um bêbado atravessando uma pinguela. Todo mês, chega do outro lado. Mas há sempre um susto à espreita. Estamos trabalhando com diversas estratégias para aumentar o número de assinantes do jornal. Os resultados já são bem animadores. O trabalho principal é apostar nas mídias sociais. A exposição do jornal em espaços como Facebook, Twitter e Instagram tem se mostrado muito eficiente. Além disso, temos feito campanhas para conquistar novos assinantes. Temos cerca de 50 mil leitores (versão impressa e online). Por outro lado, busco anunciantes o tempo todo. Mas não é tarefa fácil convencer, por exemplo, os gerentes de marketing das editoras de que um jornal de literatura é importante e pode ser um bom canal de comunicação. Se muitos editores não entendem nada de literatura, a maioria dos gerentes de marketing das editoras considera clássicos os gibis da Mônica comparados à "Odisseia". Cascão é quase um Dom Quixote para essa gente. Então, eles olham para o bêbado atravessando a pinguela e gargalham: "Vai se espatifar". Há 15 anos, o bêbado trança as pernas. Uma hora morre de cirrose. Mas não vai morrer afogado no riacho que corre lá embaixo.

 

 

PM - Qual a sua opinião sobre a postura crítica de Dalton Trevisan, adotada na revista Joaquim? E também contra o poeta Emiliano Perneta? O que é provincianismo para você?

 

RP - Provinciano é ter vergonha de comer pão com mortadela na panificadora chique.

 

 

PM - Dentro de casa, com a família, com os amigos e totalmente fora da literatura: quem é Rogério Pereira?

 

RP - Vivo sozinho, isolado em Campo Largo, onde crio galinhas e porcos, e cultivo alfaces. Tenho só dois amigos. E não existe essa coisa de totalmente fora da literatura. A literatura faz parte do meu dia a dia. Leio todos os dias. Penso em literatura todo dia. Vivo disso. Trabalho com isso. Mas quase nunca falo sobre literatura com ninguém. Acho muito chato. O Pitoco, o meu porco preferido, iria se chamar Borges, mas desisti. Pitoco é um nome mais adequando a um porco. Borges é o nome do vira-lata que  ronda o chiqueiro. Sinceramente, acho que sou um sujeito normal, daltônico, meio recluso, meio tímido, meio sem graça, que acredita que há algo muito errado a sua volta. Frustrado por não saber desenhar. Envergonhado por não jogar tão bem futebol. Desajeitado no trato social. Apenas suporto festas, natal, ano-novo e aniversário. Alguns conhecidos acham que preciso fazer terapia. Coisa estranha. E tenho o plano de desaparecer: simplesmente sumir, sem deixar um rastro sequer. O resto é ficção. Ou tudo é ficção.

 

 

PM - A literatura é capaz de transformar seu mundo?

 

RP - A literatura transformou o meu mundo. Nasci na roça, no meio do mato, de parteira. Não tínhamos livros em casa. Estudei a vida toda em escola pública. Meus pais nunca leram um livro na vida. Meu irmão, também não. Eu já li vários. Ou seja, transformei o meu mundo num amontoado de livros. Meu irmão sobe em telhados para colocar calhas. Eu subo em estantes para apanhar livros. Meu pai dirige um carro para cima e para baixo (sim, é motorista). Eu leio caminhando (quase fui atropelado uma vez). Minha mãe morreu abraçada à Bíblia, cuja leitura se dava com a ponta dos dedos. A literatura transformou o meu mundo: ela me afastou muito de toda a minha família. E criou um outro mundo onde tento me movimentar como se fosse um polvo nadando no piche derretido.

 

 

PM - Li a matéria escrita por Eliane Brum na revista Época: "A Vingança de Rogério Pereira" [http://migre.me/pZ40g] e preciso perguntar-lhe: Rogério, a sua infância dói?

 

RP - A infância é o demônio escondido embaixo da cama. Quando eu durmo, ele salta pelo quarto e me espreita no escuro. Quando acordo, ele está sentado a um canto me chamando: venha aqui, menino magricela e daltônico. Quero te dar colo como aquele homem que tentou te bolinar quando você era uma criança. Um dia, irei. E matarei o demônio a pauladas. Só não sei quando.

 

 

junho, 2015

 

 

Rogério Pereira (Galvão/SC, 1973). É jornalista, editor e escritor. Em 2000, fundou em Curitiba o jornal Rascunho — uma das raras publicações sobre literatura no Brasil. É idealizador do Paiol Literário, projeto que já recebeu cerca de 60 grandes nomes da literatura brasileira para debates literários na capital paranaense. Desde janeiro de 2011, é diretor da Biblioteca Pública do Paraná, onde coordena o Plano Estadual do Livro, Leitura e Literatura; o Sistema de Bibliotecas Públicas Municipais do Paraná e o Núcleo de Edições da Secretaria da Cultura. É editor e escreve crônicas semanais para o site Vida Breve. Tem contos publicados no Brasil, Alemanha e França. É autor do romance Na escuridão, amanhã, pela editora Cosac Naify.

 

 

 

Priscila Merizzio. Curitibana, ventríloqua, nascida no Ano do Búfalo. Publicou Minimoabismo (Patuá, 2014).

 

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