Liberdade nos agrega

 

 

antes de nós

todos os nós eram cegos

sem luz sem voz sem medo

nascemos com pássaros na alma

liberdade é que nos agrega:

o resto é invento do vento sem coração leve.

 

 

 

 

 

 

Perdão

 

 

perdão se dentro me desatei de ti

perdão se dentro me defendi de ti

não espero amor

não espero ódio

resignado carrego o insuficiente

de uma dor em excesso.

 

 

 

 

 

 

O invento

 

 

viver de sonhos

melhora as realidades

viver de amores imaginários

melhora as realidades

viver de alegrias disfarçadas

melhora as realidades

viver de puras realidades

mata-nos sem piedade

somos o invento dia após dia de nós.

 

 

 

 

 

 

Segredo do tempo nº. 01

 

 

os ventos nos falam

o segredo do tempo

fechar-se em silêncio

é abrir os olhos do peito

proclamando dizeres inconscientes

ecoados nos sons vazios histéricos

estéreis poros que nunca param de gritar

que o futuro da minha memória lembra:

você mora em mim em todo lugar —

"mesmo não sabendo que era amor,

sentiam que era bom", sussurrou o Amado.

 

 

 

 

 

 

Mundo mudo

 

 

o mundo tem

o tamanho dos meus olhos

meus olhos são grandes

o mundo tem

o tamanho dos meus sonhos

meus sonhos são imensos

o mundo tem

o tamanho da minha alma

minha alma tem dimensão de universo

vou andar,

vou voar,

pra ver o mundo

nem que eu bebesse o mar

encheria o que eu tenho de fundo

perco-me quando descubro

todo um mundo mudo

perdido dentro de mim.

 

 

 

 

Escancare-se

 

 

não olhe, pule

não pule, perdure

não perdure, percorra

não percorra, corra pra dentro

não corra pra dentro, abra as portas

antes abra o peito

antes abra os preceitos

abra aspas: deixa-as se

abra asas: deixe-as ser

escancare-se

sem incômodos nos cômodos intrínsecos

enamore tuas sombras

sob a escuridão escrava

faça amor com tua alma.

 

 

 

 

 

 

De favor

 

 

não eu não

moro de favor em corações

de fato habito

o sentimento

de fato é hábito

o afeto afeta

infla o pulso

inflama a pele

flama o gesto

doura o coração ósseo

a esmo da carne carícia gozo

acerto o alvo alvoreço e salvo

não eu não

morro de favor em corações

não alimento migalhas

não me alimento das mínguas de nada

vivo farta nos abrigos que a mim cabem

ou morro de frio e dignidade nos viadutos da vida.

 

 

 

 

 

 

Aspirando interiores

 

 

entre tantos

entretantos

caos interiores

cacos calos

cortes cálidos

entre tantos

entretantos

becos bocas labirintos

vozes ocas vorazmente mocas

ouvidos cegos

olhos surdos

corpos abertas

eus sozinhos subtraídos

e a liberdade submergida num mar de nadas:

de peito rasgado — livre

 voa o coração do pássaro

partindo-me me deram partida

para outras jornadas

morto vive aspirando interiores.

 

 

 

 

 

 

Doce de você

 

 

Rasgo o passo quando minha vida está rasa. Mergulho com alma e tudo quando meus dias estão profundos. Silencio para beber cada segundo a conta gota. Colho o que me plantam — rego o que de mim nasce. Vivo matando a monotonia para não morrer assassinada. Dentro deste caos naufragado, sobrevive um cais abandonado: partindo-me me deram partida para outras jornadas. Sem sombras nem fantasmas até velhos ratos de mim largaram. Entre cortes e costuras mantenho a língua afiada: mastigando o vidro da ilusão despedaçada. Entre os cacos o caos de seguir em meio ao campo minado: sem nenhum pecado e milhares de espinhos em mim cravos. Cavando feridas que não se fecham. Fátuas não se curvam nem marejam meus olhos. Rasgo o passo quando minha vida está rasa. Mergulho com alma e tudo quando meus dias estão profundos. Silencio para beber todo veneno a conta gota. Vou aproveitando cada segundo — antes que isso aqui vire uma tragédia: Romeu e Julieta e o cálice da morte. Eu morro. Morro dentro sem morrer em essência. Eu morro. Morro dentro do meu próprio veneno. Eu morro. Morro milhões de vezes em centenas de tempos a tempo de viver o hoje sem te ver. Há tempo de beber o hoje sem tomar uma dose de você. Há tempo de obstinar o eu sem tu hoje não sofrendo abstinência de nós e a droga deste amor vicioso.

 

 

 

 

 

 

Memória do fracasso

 

 

Vida dura perdura líquida e quente — atoada de entreatos e atalhos segue: um sopro de vida à toa. Saturado desse corpo de pedra aprendido de peso. Onde tudo é denso. Tangível e tangente. Onde tudo é intenso. Todo e tanto. O nada é lenda de outro corpo salvando meu corpo nos confins inconclusos do absurdo. Nada me nega, tudo me atravessa. Magma alma imã hábito do silêncio grito. Gota a gota mergulha na intenção das vozes dos vultos e vícios de ser amor sem casca. Sem amargos ou salobres. Nua de ausência de espaço ou fragilidade. Infiel à própria memória do fracasso. Indissolúvel ao próprio corpo desossado: belo pela beleza sem data. Magma alma imã hábito de pássaro à revelia. Movido contraditoriamente pela lógica do óbvio. Vivo como quem despede a raiva e penhora a esperança para creditar esperas. Não sou nada e sinto tudo enquanto olho o eterno agora. Procuro sintetizar as demoras, mas não pressinto a precisão do futuro. Tudo é milagre nos olhos compridos da emoção. Nada é acaso nos braços rasos da superfície. Tudo é desígnio no coração lento do destino. Demito a realidade como quem acena para metáfora do sonho. Na pupila dos dias deposito meus olhos cegos. Sem esperar que meus pés encontrem luz. Avanço sem planos ou desejos açucarados. Colho flores e farpas – o fardo deixo esquecido no sótão do ontem. Quando aprendi a musicar minha azia, deixei o alívio encantar meu estômago. Nas floridas ausências de fôlego respirei ventos de mudanças. Deixei de acreditar nos revés como única ventura. Deixei de repousar no caos como único abrigo. Hoje moro no caminho. Hoje minha rotina é a paz. Eu sou o amanhã.

 

 

 

 

 

 

Linhas blefadas

 

 

Poesia poetiza-me. Em cada novo verso me descubro — a palavra me descasca como faca corta fruto maduro. Inteira me desnuda. Me expulsa. Cura-me. Me salva do gris em dia de sol. Da escuridão diante da Luz. Do frio em meio à chuva. Poeta é um adjetivo carregado de significados. Repleto de sinônimos que não me cabem. Adjetivando um dever-se, sendo eu, um eterno não-saber. Fantasiada de sábia – não sabendo sequer se escrevo ou escravizo. Vivo ou morro. Rio ou choro. Quiçá tudo num mesmo balaio ou nada dilatando amargos. Contrariando azedumes. Enganando-me detrás dos olhos outros. Sou verbo sem conjugação. Oração sem preposição. Substantivo sem estado. Particularidade indefinida. Definindo a possibilidade de ser qualquer coisa — exceto poeta.  Sou menina a brincar com as rimas.  Mulher a derrubar escudos. Sou vento. Invento. Verbero. Exploro. Expulso. Recolho-me. Escrevo em fuga fingindo refúgio — verso se faz manto – abrigo onde descanso. Seduzo. Esquivo-me do mundo reverenciando quietude. Nunca me descrevendo em suma. Sempre estarei quando palavras minhas estiverem. Inteiro verso não sou, mas palavras me são quando do outro se vestem. Se acolhem. Aquecem-se. Sabem-se. Sou alimento sem me alimentar. Semente não sabendo meu fruto. Cálice sendo lúcida. Alcance sendo inalcançável. Sou especialista em nada. Rabisco daquilo que seria não sendo rabiscada. No fundo sou ilusão ludibriando querências. Tenho um contrato com o mistério. Berro sentimento, mas sou aberração de mim mesma.  Nas linhas sou blefe sem levantar suspeitas. Embora nas entrelinhas ninguém saiba as curvas e esquinas que cercam minha alma.

 

 

 

 

 

Fulana de mim

 

 

Ora silêncio, ora alarde. Ora plural, ora singularidade. Sempre liberdade, exposta. Eriçando os poros; enfeitando a vida; estampando leveza nos dias. Ora vento, ora tempestade. Ora medo, ora coragem. De repente saudade de si. Saudade do que poderia ser não sendo. Do sonho não sonhado; do desejo não desejado; da busca não buscada. Saudade de qualquer vontade despertada na distração da Alma. Sem pressa de chegada. Sem urgências desnecessárias. Sem sobra nem falta: precisa. Somando os riscos. Celebrando a sabedoria do não saber contínuo. Concebendo-se ser (por) instantes, instintos urgentes. Vividos na vida, trazidos no Espírito. Ora perguntas, ora respostas. E dúvidas muitas, duvidando do que veem os olhos. Ora janelas abertas namorando os fins de tarde, ora portas fechadas a setes chaves. Histórias longas e estórias tantas — sementes esperando virarem frutos. Manhãs doces e noites amargas — sensibilidade aflorada. Floreando o outro. Despetalando a si própria. Serenando Almas muitas. Oscilações diversas. Contrários complexos. Metades completas. Sorrisos largos — frouxos, às vezes, escudo. Fuga. Refúgio do mundo — azedamente mudo. Carecido de um olhar terno. Eternizando afeto dentro. Ela transborda, eu desaguado. Ela constrói, eu desabo. Ela é fortaleza, eu fracasso. Ela é doçura, eu amargo. Ela é caminho, eu atalho. Ela persiste, eu preguiço. Ela agrada, eu agrido. Ela agrega, eu segrego. Ela é mar, eu margem. Ela é mudança, eu imutável. Ela é ânimo, eu cansaço. Ela é intento, eu tempo adentro inércia. Ela vive para somar, eu vivo para sumir. Ela vive para sonhar, eu vivo para sofrer. E me conquistar (a cada segundo) para viver. Ela é amiga rara, eu inimiga da minha própria Alma. Ela pressente, eu sinto apenas — derramo pelas beiras. Ela é anjo sem asas, eu o diabo encarnado. Ela cuida, eu maltrato. Ela esvazia, eu sou vazia. Ela é encontro, eu entrega. Ela é certeza, eu o incerto. Ela é seriedade, eu comédia. Ela é sossego, eu aventura sempre. Ela espera, eu esqueço. Ela é esperança, eu desespero. Ela é encanto, eu vivo num canto.  Ela é ninho, eu passarinho sem dono. Ela é fina, eu trapo. Ela é discreta, eu dispersa a realidade. Ela é mistério, eu mistura de cores e tons. Ela é Amor, eu desafeto. Ela é mulher, eu moleca. Ela é verdade, eu invento. Eu sou reflexo, ela meu espelho.

 

 

 

 

[imagens ©antonello silverini]
 
 
 
Nayara Fernandes (Teresina/PI, 1988). É autora do poema "Asas de Pedra", lançado em novembro de 2015 na coletânea Quebras — uma viagem literária pelo Brasil. Publicou nas revistas Mallarmargens e The São Paulo Times. Mais: nayarafernandes.wordpress.com.