©silena lambertini

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Balanço do vento

 

 

(carta endereçada a Riobaldo encontrada em meio aos pertences de Reinaldo, jagunço do bando, e entregue ao chefe, lacrada)

 

Tatarana, meu líder e amigo,

Riobaldo, meu amor,

 

Estamos perto do momento de encontrar a corja do Hermógenes, e não sei como isso tudo vai acabar. Como vosmecê, não sei nada, mas também desconfio de muita coisa. E tenho algo pra lhe revelar, mode vosmecê compreender meu comportamento estranho.

Riobaldo, desde que o encontrei às margens do rio, naquele barco, quando nós éramos dois moleques, eu soube que vosmecê fazia parte do meu destino. Mesmo quando segurei sua mão gelada de medo, sabia que seu sangue era quente, e que vosmecê só não conseguia ainda trazer o calor da coragem pra ponta de seus dedos. Ainda não era a hora de vosmecê descobrir tanta coisa, não de uma vez, mas sei que não terei muito tempo e que nossa tropa vai se desfazer logo.

Não concordei com a sua decisão de trazer esse menino e esse cego pra andar com o nosso bando. Criança e inválido não guerreiam, só servem pra atrasar o grupo. Mas quando vi os dois andando emparelhados com vosmecê, um de cada lado, eu entendi. Eles são seus guias, Riobaldo, e estarão ao seu lado mesmo quando eu não estiver mais por aqui.

Eu guardo um segredo, Tatarana. Um segredo que poderia mudar a nossa vida, mas que eu não podia revelar. Até hoje.

Sei que vosmecê pensa que sou filho de Joca Ramiro, o maior chefe que o sertão já conheceu. E lhe afirmo, Riobaldo, que Joca Ramiro nunca foi pai de filho homem. Ele é meu pai, sim, antes que vosmecê me tome por impostor. Mas a menina que Joca Ramiro pegou nos braços no primeiro choro deixou de existir, Riobaldo. Maria Deodorina, ou Diadorim, como vosmecê conhece, calou seu choro e secou nas pedras das veredas. Sou como o cacto do deserto, Riobaldo. A umidade de meu choro está escondida, e só poderia mostrar a vosmecê. Jagunços só podem ver meus espinhos, que escondem e protegem meu segredo mais precioso.

Cego Borromeu descobriu tudo, e tenta lhe contar o tempo todo. Mas vosmecê é homem prático, acostumado à secura do sertão, e não entende a música que ele canta. Ainda bem. É mais seguro assim. Ele fica triste por vosmecê, mas sabe que caminho é que nem cruz, é coisa pra ser trilhada pelo próprio, e que não dá pra fazer pelo outro.

Moleque Guirigó acho que também desconfia. Faz muitas perguntas, sem parar. Às vezes, anda atrás de mim até que Borromeu o chama. Prometa que sempre os trará ao seu lado, Riobaldo. Cegos veem o invisível, e vosmecê precisa treinar os olhos da alma. Leve Guirigó também. Vosmecê vai casar com a senhorinha — ai, como dói dizer isso —, e lá na fazenda sempre terá lugar para o menino. Cultive a sabedoria e o silêncio do velho e a curiosidade espontânea da criança. Caminhe no vão entre a escuridão da cegueira, mas que vê a alma, e os olhos abertos, que denunciam. Com a serenidade do velho e a leveza do menino, não haverá trilha ou vereda que vosmecê não consiga transpor.

Sei que a senhorinha o fará feliz. Depois que eu não estiver mais aqui, sua jornada será ao lado dela. Eu não sou nem a mulher-dama nem a donzela, Riobaldo. Eu sou o Tudo e o Nada, mas não há lugar pra mim na sua vida. Mire e veja. Não carece explicar mais.

Aquele pacto que vosmecê pensa que fez com o tinhoso está só na sua cabeça. Que o demo, quando surge, não marca hora nem lugar. Ele vige o tempo todo, no meio do redemoinho que arranca as coisas de nós. Ele está nos crespos do homem. Não o alimente, que ele deixa de existir.

Um senhor chegará, e pedirá a sua história. Conte a ele. Não deixe que outras pessoas tenham que viver escondidas dentro de si como tivemos que fazer. E aí vosmecê ouvirá minha voz e saberá que estou bem.

Quando o vento soprar na curva do rio e vosmecê se lembrar de mim, será com o alívio das frutas cheias de sumo, não com secura e aridez. Quando o vento soprar na curva do rio, imagine meus cabelos longos, que tive que sacrificar, e mire a liberdade que terei então. Deixe-os balançar ao sabor do vento e, como eles, permita-se ser feliz.

 

Da sua (embora sem vosmecê saber)

Diadorim

 

 

 

 

Mar adentro

 

 

Novamente ela estava ali, de frente para aquele que desde sempre havia sido o seu grande confidente. Desde as inocentes brincadeiras na água, típicas dos verões de sua infância, sua vida sempre estivera, de algum modo, ligada à magia que emanava das águas do mar.

Um pouco mais velha, descobrira ser ele um imenso tapete azul, capaz de transportá-la de forma mágica a lugares de sonho. Mesmo quando viajar era apenas uma ilusão, o mar representava todas as viagens que faria um dia, e o bordado de ondas que desfilavam em harmonia enfeitava seus sonhos de menina.

Já adulta, suas viagens eram preferencialmente marítimas, pois acreditava que só assim o passeio tinha início desde a partida, enquanto os demais meios de locomoção pareciam apenas necessários à chegada ao destino, mas desprovidos de qualquer encantamento.

Não poderia mesmo ser em outro lugar. Tendo a urna em suas mãos, respirou fundo e entrou no mar, o suficiente para que as ondas brincassem de lamber seus dedos. Muitas foram as vezes em que a mãe a trouxera àquela mesma praia. Àquele mesmo mar. Ela agora retribuiria o presente.

A urna seguia, mar adentro, como um daqueles barquinhos ofertados no Réveillon. A mãe partia, em sua última viagem, no elemento que mais amara em vida. E a filha sabia que sempre poderia voltar àquela praia, olhar a linha do horizonte e encontrar o belo iate em que a urna simbolicamente se transformara. O mar as uniria, do útero ao infinito, como um passaporte molhado para as terras por visitar.

 

 

 

 

 

Réquiem

 

 

Você nunca entendeu por que eu chorei tanto quando recebi a notícia da morte da mãe daquela amiga, apesar de não a ter conhecido, não é? É que, durante os quatro anos em que estudamos juntas, enfrentávamos o mesmo fantasma: o da iminência da perda. Era um fardo que compartilhávamos, e que, de certa forma, tinha seu peso diminuído. Juntas, lidávamos com uma ameaça que nos unia. Sobrevivemos a ela durante o tempo do nosso convívio. Saber que a mãe dela sucumbira, além de me recordar o quanto aquela ameaça era real, cortava aquele elo tácito e tirava-me a única interlocutora capaz de entender sinceramente o que eu sentia. Como, a partir de agora, eu poderia legitimar os meus temores? A ela, cuja perda era real? Isso não era apenas cruel: era infame. Nossa cumplicidade era decorrente da semelhança de nossas vivências. E, sinceramente, eu não estava preparada para ouvir que a dor real era ainda pior do que a angústia da dor adiada.

Você jamais entenderia meus temores. Você, que se afastara voluntariamente de seus pais e irmãos, mantinha-se na zona de conforto dos que não têm o que perder. Como fazê-lo entender o flanco aberto da perda prévia, do fantasma que ronda a ponto de se tornar tão próximo que nos cumprimenta a cada dia?

Outra coisa que você jamais pôde apreender foi o verdadeiro significado do meu ciúme. Eu, sempre tão equilibrada, descobri-me doente, de um ciúme incontrolável de você. O que eu não percebia, do alto dos meus vinte anos, é que o problema não estava em mim, mas em você: os mais de vinte anos que nos separavam faziam com que você destilasse em mim os detalhes mais íntimos, mais sórdidos, de seus relacionamentos anteriores. E eu, insegura diante de nossa diferença de idade e de minha inexperiência, era bombardeada de forma aviltante pelos relatos de atitudes de mulheres corajosas, lindíssimas, talentosas, a quem eu sentia que jamais seria capaz de me sobrepor.

Eu não percebia que a insegurança era sua. Por temer que eu me encantasse com homens com metade da sua idade e bem-resolvidos, pintava o retrato de um homem irresistível, que passava a vida rodeado de verdadeiras deusas, e que agora fazia a caridade de se interessar por mim.

Quando você sumiu, levando alguns pertences e roupas minhas, pensei que você tivesse finalmente se cansado de mim. Que eu o tivesse saturado de uma forma tão absoluta que nem houvesse espaço para despedidas. Hoje percebo que você não conseguiu lidar com a mulher em que eu me transformava, a quem você já não conseguia manipular como antes.

Sua partida repentina e intencionalmente cruel — sem cartas ou mesmo telefonemas — deixou um vazio que custei a superar. Não era apenas o amor-próprio o que eu tinha a resgatar, se bem que isso significasse matar o que eu sentia por você, pois ambos eram definitivamente inconciliáveis. O grande prejuízo que você me deixou foi a falta de confiança nos outros. Aceitar a verdade significava acreditar que as pessoas podem mudar radicalmente ou que eu tivera um estranho ao meu lado durante cinco anos. E, honestamente, eu não sabia qual dessas opções era mais dolorosa.

O fato é que, mais do que me decepcionar com você, eu me decepcionara com a humanidade. Eu não contava com a perspectiva de um novo amor para me confortar, pois você, junto com as roupas, livros e cds, roubara-me a crença no amor especial. Por sorte, a vida me brindou com um amor verdadeiro, com um homem que traz estrelas nos olhos em vez dos raios que você dardejava ao ser contrariado.

Hoje vejo que sua atitude foi motivada por pura covardia. Analisando suas ações, compreendo que o grand finale já estava previsto desde o primeiro ato de sua encenação, como um fim que já se vislumbrasse desde o começo, mas que eu, na tolice dos apaixonados, fui incapaz de enxergar.

Hoje, ao receber a notícia de sua morte, não posso dizer que a senti. Tampouco fiquei feliz ou vingada. Na verdade, percebo que a morte só chega para quem, algum dia, esteve vivo.

 

 

junho, 2015

 

 

 

 

Tatiana Alves transgride em poemas, comete delitos literários em contos, crônicas e ensaios e viaja em livros infantis. Rabisca na Revista Samizdate no site Escritoras Suicidas, já tendo rascunhado nos sites Anjos de Prata e Cronópios. Possui dezessete livros publicados. É Doutora em Letras e leciona Língua Portuguesa e Literatura no CEFET/RJ.

 

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