©sofia ajram
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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É necessário saber calar,

Destituir discursos vazios,

Procurar pelos vãos.

Abrir a pequena porta para a rua,

Reconhecer os seus dentre múltiplos nãos —

São poucos.

Erguer a cabeça em meio a multidão de acordes,

Rechaçar a resposta fácil que virá: quem és tu?

Olhar-se no espelho e mirar o rosto farto de passado,

Camada ante camada,

Identidade tecida como Moiras que se apegam à memória do tempo.

 

 

 

 

 

 

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Do silêncio que se faz uma guerra:

De que adiantam guirlandas e guilhotinas se terei o último suspiro documentado pelo vazio.

Ontem queríamos mais —

Nesse interstício é que o mundo se move.

Movimentos descarrilados como corações batendo mais forte.

Captamos o cerne da emoção;

Ainda sim contivemos o soluço.

Aprendemos a fingir que não nos importamos

E já era tarde.

 

 

 

 

 

 

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À margem estamos todos.

O clarão no céu anuncia a tempestade,

Gotas de orvalho e chuva áspera,

Milhas distante, um chamado ao telefone

A voz rouca anuncia a mensagem —

Somos espasmo e miragem.

 

 

 

 

 

 

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Nunca estivemos no limite do que se chama humanidade

O reflexo no espelho nos garante isso

Minhas duas mãos tateiam

O reencontro em cada marca:

Algumas pessoas passaram.

A somatória do tempo nos trouxe até aqui.

 

 

 

 

 

 

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Poderia ser Beirute, Paris, Búzios,

Eu poderia encontrar uma pessoa legal em qualquer lugar,

Mas o relativismo constrói muralhas ao redor da China

Enquanto o Ocidente delimita suas fortificações

Para que um alarme terrorista não soe mais alto que o possível.

Estão cavando seus próprios inimigos há tantos séculos.

Canaã foi uma promessa inadequada

Ou interpretamos mal o Antigo Testamento.

 

 

 

 

 

 

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Enquadro seu rosto em moldura de mármore

Mas a dor aperta mesmo assim.

Tem um jeito sério de olhar

Como se estivéssemos dentro um do outro.

A gravidade com que me toca poderia reconstruir

As muralhas de Bizâncio.

 

 

 

 

 

 

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Poderia a existência estar em jogo

No núcleo duro do tempo

Mas a humanidade optou por falar de amor & guerra.

Qualquer garotinho sabe que o herói mata mais

Do que beija a mocinha.

Hoje sonhei com Paris,

Um encontro romântico em uma viagem que amenizasse a dor de existir.

E então veio a notícia dos tiros,

Pessoas mortas como na guerra de Bastille.

Não se compra paz como pasta dental:

Aqueles sorrisos brancos da propaganda lembram o sonho de uma família feliz

Há tanta chama no mundo, baby.

Eu ainda quero me encontrar com você ao redor do Sena.

A tragédia possui a última palavra quando Celan se jogou do alto.

Uma cidade linda cheira o espectro da morte.

Por que os belos são infelizes?

 

 

 

 

 

 

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Macondo existia só no papel

Seus leitores visitavam a região

Acordados.

Amparados pela fantasia ao dobrar mais uma página,

A ilha destinada aos solitários.

Cada palavra esquecida soletrada renasce —

O poeta já disse que o verbo delira.

Reordena-se o mundo;

Um local seco e árido habitado por sonhadores.

 

 

 

 

 

 

*

 

O cheiro de verão pela janela

Anuncia o espasmo de noites brancas.

Estaria o Sonhador preparado para a noite marcada?

Encontro que tece o choro antigo

Sono quente de lençóis bem cuidados

Pés descalços

Um abraço no sumo da madrugada.

Nástienka, sou.

Meu duplo no espelho da memória

Entre miradas —

Chuva que dispersa o hálito de amor no quarto escuro.

 

 

 

 

 

 

*

 

Por ser mulher estraguei tudo:

Não via o sonho passar por mim

A tempestade torrente se alastrou

Minha morada é o medo —

Estar comigo mesma

Aguentar forte a ferida do pensamento que se diz em silêncio.

Somos treva e danação,

Diz um útero que cria o mundo.

Pensar livremente me livra do esquecimento,

Como caos quis ter o que não se mede em parâmetros.

Um corpo é apenas um corpo,

Não há morada para nossa condição.

Um sopro se faz e tudo muda de lugar.

Por ser mulher estraguei tudo e quis abraçar a eternidade

De estarmos ali,

Sós.

 

 

 

 

 

 

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Toda destruição encontra seu processo

Como andar pelas ruas e dobrar a esquina

Enquanto um corpo tateia o asfalto

E arde.

Haveria solução para o desamparo que se alastrou por dentro

Feito fogo?

Um corpo em chamas sobre o abrigo despido de delicadeza

Sussurra a palavra interdita:

Foi o amor que passou ao largo

E não encontrou morada.

Um grito em falsete soou o alarme de muros protegidos

Na cidade fortificada.

A palavra grita mesmo que se cale;

Apenas um louco seria capaz de afirmá-la no desprezo de ouvidos alheios.

 

 

 

 

 

 

*

 

Caímos tantas vezes.

O levantar é árido como vulto

A multiplicar as vestes

Em sonhos líquidos.

 

 

 

dezembro, 2015

 

 

Fernanda Fatureto (Uberaba, 1982) é poeta e jornalista. Autora do livro Intimidade Inconfessável (Patuá, 2014). Prepara seu segundo livro de poesia, cuja prévia pode ser vista em revistas literárias como Mallarmargens, Jornal RelevO, Diversos Afins e aqui: avecbr.wordpress.com.

 

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