©joel-peter witkin

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Proteção

 

 

A cada dia, o mundo o ameaçava mais. Na parede branca do quarto pintou uma gaiola. Devagar, abriu a porta e entrou. Assim que fechou a tranca, destruiu o pincel e cantou!

 

 

 

 

Na corda bamba

 

 

Gostava de suspense e temia que, pelo tédio do casamento, a mulher o traísse. Então, para assediá-la, transformava-se em personagens diversos. Ora era assaltante de estrada, invasor de sua própria casa, em seguida era o policial, o bombeiro, o vizinho voyeur, surpreendia a esposa com vestuários femininos e outros ainda mais bizarros. Ela, desejosa de  rotina e segurança, se apaixonou pelo porteiro do prédio.

 

 

 

 

Noite de Natal

 

 

Andava pra lá de confusa e esquecida, mas era feliz e se preparava, mesmo agora, em seus quase cem anos, para esperar Papai Noel. Com cuidado aprontara a árvore, seus chinelinhos, o bolo de natal e estava atenta ao relógio. À meia-noite ele chegou, pegou-a pela mão e agradeceu pela festa. De presente, levou-a consigo sem nem dar tempo dela perceber que, na folhinha, ainda era novembro!

 

 

 

 

Objeto inexistente

 

 

Há anos, ele mal olhava para ela. Saindo juntos, estivesse bem ou mal vestida, elogio ou censura alguma acontecia. Era como o zero à esquerda! Aborrecida com o descaso, arrumou-se como se sentia. Sem peças íntimas, tecido diáfano e transparente, quase nua. Assim foi ao jantar. Os olhares das pessoas o deixavam feliz, risonho e envaidecido, como se fosse sua, a plateia.

 

 

 

 

Crimes domésticos

 

 

A mãe sempre trabalhou para sustentá-lo. Tímido e solitário, na infância brincava com o gato. Na adolescência começou a ler e passou a viver através dos personagens, a identidade de cada um tomava conta de seu corpo. O coração acelerava com as emoções deles; quando comiam tinha fome e seus atos corriqueiros eram copiados à risca. A tragédia que lia no momento começou a amedrontá-lo. Já tinha tentado largar o livro e, aflito, o escondia de si mesmo. Afinal, não resistiu e voltou à leitura. Primeiro matou o gato. Hoje, a mãe.

 

 

 

 

Natureza morta

 

 

Deitado no quarto, ele a espera. Enquanto lava seu corpo, ela se sente como frutas e peixes de um quadro antigo.

 

 

 

 

Afinidades

 

 

Ela falava alemão, ele nem alfabetizado era. Ela era cega, ele mudo. Amavam-se e se entendiam pelos cheiros e pelo gosto. Suas línguas estavam afinadas com a pele e a geografia de seus corpos.

 

 

 

 

Um jantar para Lívia

 

 

Cuidei para que a refeição fosse tão delicada e gentil quanto a jovem me parecia. Suaves iguarias, renda, porcelana e prata, finos cristais e o cardápio mais requintado e leve que pude imaginar. Lívia rejeitou todos os pratos. Com dedos longos e pálidos puxou para a sua frente o arranjo colorido que ornava o centro da mesa e, uma a uma, deliciou-se com todas as flores.

 

 

 

 

Lívia e o meu jantar

 

 

Depois que comeu as flores do centro de mesa, Lívia passou mal até morrer. Desconhecendo sua preferência alimentar, não escolhi as espécies. O arranjo de ervilhas de cheiro entremeado com cicuta foi uma homenagem singela, tanto à delicadeza feminina como à sua paixão pela filosofia. Paralisada e gélida ela me parecia ainda mais bela. Pude então me deslumbrar com seu corpo virginal e ali mesmo consumar meu desejo, até então rejeitado.

 

 

 

 

Janelas

 

 

Amanhecia. Antes de terminar sua carta de despedida a caneta falhou, sem tinta. Em vão, buscou outra e enquanto vagava pela casa um barulho surdo na janela o levou a abri-la, dispersando o gás. No parapeito, um pássaro ferido ocupou seu interesse. Esqueceu de si. Em outro ponto da cidade, a senhora acordou e levou a mão ao bolso onde mantinha o rosário. Ao rezar por seu filho, sentiu algo pegajoso no camisolão. Sob a luz tênue da janela pode perceber a estranha tinta azul que manchava sua mão, as contas do rosário e o tecido.

 

 

 

 

A fantástica loja de chapéus

 

 

À primeira vista era como outra qualquer. Ao colocar um chapéu e se olhar no espelho, viu-se outro homem. Assim foi com os demais, trocavam seu rosto e sua mente. Escolheu um modelo feminino e passou a pensar como sua mulher. Satisfeito, pagou e foi para casa.

 

 

 

 

Os bons ouvintes

 

 

Doente, sem trabalho e muito só, passou a visitar o cemitério todos os dias. Sentada nas frias lápides,  conversava com os falecidos. Chamando-os pelo nome, contava suas histórias e mágoas. Quando melhorou, passou a enfeitar e fazer melhorias no túmulo. Era como se pagasse ao analista.

 

 

 

 

Sem bússola

 

 

Sua vida parecia ser feita de fios desencapados, nós frouxos e pontas super coloridas, soltas, que ela unia ao acaso, ao sabor dos ventos ou apenas ao sabor. Os que viviam à volta ficavam às tontas, perdidos, presos, enrolados e encantados, pois era assim que sua criatividade se fazia única e plena, gargalhante, primaveril, espalhadora de beleza e confusão, tão encantadoramente caótica que já ninguém sabia viver sem seu desrumo.

 

 

 

março, 2015 

 

 

 

 

Angela Schnoor é carioca. Psicóloga, publicou os primeiros minitextos em 2001, nos 300 toques do fanzine Falaê. Colabora com Minguante (já extinta) e Veredas, revistas eletrônicas dedicadas à minificção e edita o blogue Microargumentos [microargumentos.blogspot.com.br], onde publica seus minicontos, que são também editados na Espanha, Argentina e Itália. Participou das coletâneas Contos de Algibeira, da editora Casa Verde/RS, e Entrelinhas, organizada pela Editora Andross/SP. Tem contos publicados na Letrário Editora. Publicou os e-books Na Barca de Caronte, pela Minguante, revista portuguesa de micronarrativas, e Anima, pelo site Calameo. Em 2008, pelo Espaço SESC, promoveu e organizou o primeiro evento na sua cidade natal, Rio de Janeiro, sobre Minicontos: "Minicontos e muito menos". Em outubro de 2010 lançou o livro O Olho da Fechadura, pelo selo 3x4 da Editora Multifoco.

 

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