XLVIII

 

 

Na levedura de uma concha, a suspirar das

pérolas a noite se levanta, numa fábula.

Porque há de se contar dos sonhos os

rubis — arrancados de nossos prantos,

a gritar o crespo dos girassóis quando se

balança

o nada ao nevoar o nada das ondas anti-

horárias.

 

Quando se colide com a minha sombra

num desfecho fatal: Como a chuva norteia o

sol na primavera que simplesmente,

doloridamente, morrerá atado à verdade

crua de qualquer Deus que seja

luz.

 

Porque não nos bastaria nascer — teríamos

que morrer e assim morreremos a cada dia

mais mais mais mais mais mais mais mais mais mais mais...

 

Ouve-se assim os pássaros

a sobrevoar o presente

num presságio

que aduba as nuvens.

 

Porque o porém é a força de toda noite,

humana na obra no murmúrio que se faz

que se cria num favo de cabelos a esvoaçar

sorrindo faíscas

de uma ponta do vazio a

se chamar Eternidade.

 

 

 

 

 

 

XLIX

 

 

Porque eu poderia descrever nesse

momento insano de mim

como os colibris descascam o vento

ao se contar o derrame de avencas

com que se passa o sol dentro das nuvens

e fora do céu, como um fétido

presságio do

fim.

 

Estive eu a pensar a pesar os mapas de

cada canto do mundo e supostamente

deveria eu

deveria e poderia constatar que

nada daquilo que se desenhava

aos açoites da lua

era exatamente aquilo que se via.

Uma obviedade de olhos, uma alucinação

de azuis quando eu contei a

extensão do mar a extensão do mar

ao

soletrar ais:

Ais!

 

Exatamente foi agora quando eu me detive

na caneta que se movia o quanto descrevia

a noite o meu peito a noite

em crateras

e saltei em crateras

exatamente porque eu poderia ser

novamente a menina que te poria

e poderia escalar

descoberta

descascada e

desfeita

na epiderme da manhã que se levanta

tão cedo que quase

nem se levanta.

 

Porque eu poderia descrever

os cacos de uma amizade dilacerada

ao se pensar em Pedro e mesmo assim

já saberia ao repetir Pedro que nada eu

poderia

descrever quando assumisse que a noite

a noite

simplesmente corroeria as ferrugens de um

coração a saltar os dedos  a cantar os

sonhos

de uma canção

qualquer.

 

 

E de repente

uma disparada nordestina de cavalos

amanheceu em minha porta.

Era o sopro do mar que encantava

cantando o esverdeado de espelhos

que voavam enquanto

o mundo diminuía em meu pensamento

pesado

pesado

de flechas apavoradas —

eles relinchavam os meus medos

e brilhavam a matéria dos deuses

e eu me revirava na cama

nua e redonda

nua e leve

de tanto sonhar o sonho.

 

Pouco a pouco, novamente

criança eu beijava

beijava os topetes

de sorvete de

baunilha

que eram dentes a se

estralar na quentura

de uma língua que se

fazia faísca.

 

A descrever o insano de mim a sonhar o

pesadelo que nunca mais se contara, eu

pensei exatamente em pessoas batidas

no liquidificador —  eu imaginei que

de repente morria quando simplesmente

vivia

como se espremesse laranjas para

fazer um molde para vida.

 

Quando de repente eu conhecia

e abraçava o amor

e abraçava-o sentindo

uma palpitação daquelas

de quando a pérola se distrai

na concha, e eu ouvia uma fala:

Rubens — e abraçava o amor

eu sentia no altar o álamo

de anjos quando de repente

ele me beijava os seios

eu simplesmente sentia

e nesse instante saberia

descrever

o fundo de um oceano,

quando fechava-me

os olhos

pelos seus pés.

 

Exatamente foi assim

que eu sonhei o sonho

indevido

e debilmente me vi

a cantar novamente

manhãs

quando abri os olhos

e ecoei a brancura

de um novo dia —

porque eu poderia

descrever

neste momento insano

de mim

como os colibris

descascaram o vento

ao se conter o derrame

de avencas

com que agora

se contam o sol

fora das nuvens e

dentro do céu

emaranhado céu

que me abotoa os olhos, a

voar-me os pensamentos

com um hangar que me

foi apagado em

brasas de flores

aos corais, os montes

abençoado em mim.

 

 

 

 

 

 

L

 

 

Quando olho os lírios do campo vejo a

uniformidade de um instante ao soltar

de minha cabeça as florestas os

contos dito amantes, ao passo que

me passa as pernas a esvoaçar o

canto do vento  a se esparramar em

breves e cadentes folhas

folhas secas

sob o meu cansado

peito.

 

Dito a lacuna de um grito e

GRITO

ao transparecer-me sombra

GRITO

ao alcançar-me corada, em

bilhas bilhas

GRITO

nos corpos de rapinas

a me espiar nos ouvidos

calados

GRITO

no campo vasto campo

por delírios assombrando

a voz, pelos nervos,

GRITO

quando fecho

os pensamentos

a evocar

o mundo dos pterodáctilos

que me comem

os ombros ardidos

da noite

na noite

sobre noite

sob noite

para noite

ser a

invencível noite.

 

E convencendo-me

do pecado que me pulsa

os dedos ENFIO-ME

um pouco mais

de ventre & peito

sobre o luar

dos deuses

que são os capins

de onde piso

contente.

O meu sorriso

a cantar

 

a cantar

as esferas

as colunas

as colinas

peregrinas

figuras de outras almas

a viver em mim

sei que elas

existem em

meu gosto

salino de

mulher

que comparece

aos dias

como

se aguardasse

a morte —

e aguardo,

 

fatidicamente.

 

 

 

 

 

 

LI

 

 

Sorveduras que sustentam os retratos d'água a se

esmaecer nos ares, tão azulados que se tornaram

nuvens. Sorveduras em nuvens, às nuvens de mim.

 

Sorver-se é uma maneira de pintar o fundo dos mares

com o feixe de luz de um rinoceronte a pisotear caquis.

 

No bruto do mundo, sorveduras. Para que se lembrem

do finito que é o infinito, mesmo que o sorriso chore

todas as cidades épicas, eriçadas e cruas, em pudicas

manhãs.

 

Sorver-se na ponta de uma epigrama.

Para cantar-se os grãos do futuro

num sentimento perdido.

A banhar-se os pesados cachos

de uva, que renascem constantes

e indeléveis. A sorver-se, em mares

nas rodas-vivas do tempo

que se plumam em mim.

 

 

 

 

 

 

LII

 

Medianeras sopravam. Sopravam às

costas de nós, a diluir a força do tempo

a firmar-se num gato arranhando o

fulgor de uma dureza

invisível

dureza às faíscas madrigais.

 

Caminhando a cada nova janela que

se abre em flor, inexplicavelmente —

nos braços de lírios pardos, nos

dorsos de leves e brancos pardais:

Medianeras.

 

Como quando se resgata os olhos

em seu andar patético a mover-se

rapidamente tão rápido e maior do

que os pés de uma livre senda-luz.

 

A se conter os pés

em beiradas.

A se conter em paradas de frases nunca ditas,

por receios.

Doía-me os nós.

Doíam aqueles de quatro mãos —

a se absorver

a se observar

nas dobraduras, nas cascas

de roídas pirâmides

paredes.

 

VAGO

 

Eu sei: Não me perdoo pelos erros.

Eu sei: Nunca me perdoo em cada

membro que me tece o sangue.

Não.

Por cada dor que causei, por

todo amor quase amado que

desesperadamente

perdi ao pedir ao vento

— leve-me

em liberdade.

 

E as medianeras não

me deixaram esquecer

o amargo de um precipício

que se cava

em cada esquina de

que nunca mais passarei –

quando se mostram os

pontos dos cristais a se

esfarelarem nos poros

da areia, quando

eu,

quanto eu...

Quanto.

 

 

 

 

 

 

LIII

 

 

Cresceram-me os cabelos.

Grossos, longos, duráveis

no brio diurno

a se esticar

no fundo da noite.

 

Cresceram-me enquanto eu

chorava os pesares de um

mundo que não era meu

e assim me pertencia

como os crustáceos a

saltar o fogo pelo sol.

 

Veja: Cresceram-me porque

eu nascia novamente,

no denso de um azul

no frio de um verão.

 

E o meu rosto pulava os séculos, a

sentir os fios de cobre, a me coroar

e

corroer febre terçã:

No tudo e no nada.

A morder os devaneios

de qualquer tarde a se

preencher as cores

dos corpos a transitar

nos vermes: É o tempo.

 

Samambaias.

Eram os meus cabelos.

(Sempre pensei).

Sempre olhei como eles

Pesariam inocentes

na leveza de um

novo dia.

 

E pensei pensei ter um milhão

de cabelos a mais quando

me olhei mais

devagar,

e me olhando no

espelho havia

nele um buraco

que diminuía o

meu pescoço.

Minhas íris

pulavam

palácios,

pulavam

murmúrios

de antigos povos,

na esmeraldina

perda de minha

culpa infantil.

 

Eu tinha 26 anos,

nenhum filho

e todos eles

nenhum emprego

e todos eles

nenhum poema

e todos eles.

Quando apertava forte

a força do tempo,

a crescer-me pelos

cabelos.

 

 

 

 

 

 

LIV

 

 

O lugar é uma coisa feroz

que me causa aflição.

O lugar é uma noite ardente

a embalar sonetos incansáveis.

O lugar é uma mulher a crescer

entre os dentes.

O lugar são cidades inabitáveis,

rasas, e ainda assim cidades.

O lugar são estrelas a cair-se

ao nascer deste nosso poente.

 

Quando sento os meus pensamentos e recosto os

meus anseios, o lugar é o indizível que me consome

auras se possuo a calma de nascer sonho nas rutilas

unhas de mãos proféticas que tocam as superfícies

intocáveis

de meus ossos.

 

O lugar é o profundo invisível em que tu me vês

pura, abrasada, ao dormir feito uma criança.

 

Todos são inocentes quando dormem.

 

Dormir é a pureza.

Acordar é a vala.

A vala do teu lugar.

O lugar impreciso que te

jogam na vida e te

caçoam os cacos —

porque vivemos

desfalecendo-nos

junto aos mármores,

no desejo de uma

quentura

impenetrável.

 

 

 

 

 

 

LV

 

 

Ao ousares diminuir o tempo, o tempo

aumenta a tua ousadia.

Ao falares grande a palavra inaudita,

a palavra pequena se alastra em tua boca.

Ao cantares os membros de teu corpo,

o corpo silencia os teus medos.

 

Colocando uma colher fria na boca,

sabes ser-te menos osso e mais verdade.

Pois o contraste é o modo de te criares

tantas vezes quente e tornar-te

uma lâmina que abençoa o

pó dos meses.

 

A pertencer aos anos os espíritos

em luzeiros tremulam a matéria

inexata, saltando da cortina ao

papel, no silenciar de deuses.

 

Pois para ser-te o teu próprio eu,

és preciso seres também

outros seres.

 

 

 

 

 

 

LVI

 

 

Eu queria saber como pausar o instante

 

em que penso

 

em que imagino

 

em que falo

 

em que crio

 

o meu coração.

 

 

A viver o desejo e recriá-lo em verdade.

Esta crua verdade que enlouquece o desejo,

desviando a razão, causando o espanto

de meus olhos obtusos e cansados.

 

Para fazer-me presente nos passos, nos

diálogos de uma semente, eu queria...

E renascer. Para saber como ser Deus.

Somente desta vez que me cai uma lágrima

nunca antes chorada, a beijar-me a pele

com um gosto duro de hortelã. Arde.

 

Arde.

 

O inverno é a minha permanência — e

eu desconfio do poder transformador das

estações, eu desconfio saber como Deus

toca o clímax dos nossos corpos.

 

Como vai o verão a ser primavera?

 

Dialeticamente, eu quero renascer!

Repito, constantemente.

 

Porque é preciso saltar os escombros

porque o piso do mundo é uma dimensão

atemporal

porque no fundo dos olhos somos cegos

e mesmo assim vemos, vemos

acordados aflitos

estupefatos

na visão das almas

sobem

as estrelas QUE

 

do escuro do mundo

ao topo

 

dos céus.

.

 

 

 

 

 

 

LVII

 

 

Transmudar o mundo.

Transformá-lo num feto, plantar

em seus pontos de nascimento

novas canções.

 

Aquele canto que nunca se alcança se

não te imaginas angelical o suficiente,

angelical como uma cachoeira a molhar

as pedras que se moldam ao nosso chão,

que são moles

de tão duras.

 

Transportar-nos no mundo como

os pingos de vento que secam

as lágrimas de nossos medos,

medonhos alados medos

como punhais de amebas

a pintar

o esboço de um outono

qualquer.

 

Crescer os pedaços dos sonhos

a trançar as escadas de auroras,

montar os jogos

das contas de vidro,

que são as próprias vestes do sol.

 

Transmudá-lo.

Para que se possa compreender

o intocável a penetrar as bocas

da natureza selvagem a evocar

os abismos do puro silêncio.

 

Àquele canto, suponho, somos

nós somos nós o próprio canto,

a sermos de tão caldeados

um tudo

um tudo

que se expande

no furor da face fruta feita

de uma arte inextricável —

o apelo de Deus à perfeição

que jamais existirá.

 

Apenas a possibilidade de criar-nos canção.

 

 

 

 

 

 

LVIII

 

 

O éter a arder o som tubular que se

desprende em ombros poliédricos.

Era o que me fazia no meio da frase

esperar a imagem fulgurar nos pelos

de novas palavras

molduradas

em meu brilho

de língua

fervente.

 

Magnificência.

Ouve-se dos fios partidos o meu

pulsar pulsando aos contos a

fenda da beleza, dos poderes,

do sangue de grandes silveiras

rompendo as veias em mim.

 

Foi assim que me descobri

a escrevente dos ais, a

escrevente dos ventres.

Em ondas, pelo eco de um

sonho,

em meu pedaço de umidade

particular.

 

Para sobreviver ao escuro da noite.

Para respirar o brio da manhã.

 

Era o que me crescia o tempo,

era uma força que me

VOAVA o pensamento:

Água em minha

boca sedenta.

 

 

 

 

 

 

LIX

 

 

De uma luz incomensurável

de uma batida silenciosa

de um adeus revelado

sei que

EXISTO.

 

Para que se construam

as rasuras de novos

olhares

a se clamarem

nuances azuladas

num

desbocado de

rios:

Eu

sei,

EXISTO.

 

De uma partida pirâmide

de sonhos arbóreos

um plasma apoteótico a

sufocar os braços de junhos —

sou uma seara de instantes

caducos,

inertes pelo vazio

em tudo

 

em

 

mim.

 

Nua no avesso

como o instante

que

nunca

se convence

o coração

e se perde

o enredo

 

que

EXISTO

 

para ser.

 

PARA.

 

Mais

do que ontem

e menos do que

amanhã

 

agora.

 

 

 

 

 

 

 

 

[imagens ©cristina otero] 

 

Mariana Basílio é paulista, pedagoga, mestre em Educação e poeta. Autora do livro-poção Nepente (Giostri Editora, 2015), finaliza atualmente a segunda obra, sombras & luzes. Premiada em antologias poéticas como a IX CLIPP e V Prêmio Literário de Poesia Grupo Scortecci, tem entrevistas e poemas publicados em programas de TV e jornais como JC Cultura (Jornal da Cidade de Bauru), TV Câmara (Programa Entrevista) e revistas, jornais literários e fanzines do Brasil e de Portugal como Efémera, Inefável, Conexão Literatura, Limbo, Subversa, Raimundo, Garupa, Mallarmargens, O Equador das Coisas, O Garibaldi, e Anexo 6.