Esfoliação e outros escritos

 

 

Esfoliação

 

deito nu

 

como num filme velho-oeste

artificialmente colorizado

deito

 

teu colo

esmiúço o sumiço da

 

entre os papeis velhos de uma pasta

por acaso um músculo acho

desenhando dediquei para:

 

Pesadelo sem culpa

 

Rua carne entre as articulações

 

sob a epiderme injeção de tinta

deixa o mal inteiro à mostra

 

 

acumulo de cor

o teu carinho

 

a língua o saquê

lamber

até perderem o gosto tuas gavetas

 

avolumo

pelos furos

 

deito nu

 

escondido

atrás dos poros

 

 

 

 

 

 

Pôr do sol de Quinta

 

 

sentei agora pra pôr o sol no papel. vi ontem no meio da calçada um isqueiro. não peguei. tive medo que estourasse quando fosse testá-lo. carrego no bolso um rosário de delitos. desde que  joguei a culpa fora, os cães a puxar o carro às vezes não obedecem. rabeiam de um lado pro outro. querem, feito rio cheio, desancar as beiras. agora eu vim escrever no sol. 13º andar. Oscar Freire. a cidade lá em baixo parece um game de mau gosto. o sol está alto. olhando assim parece uma moeda sem coroa. os cães jogam moedas pra cima. onde foram parar as rédeas? decidem assim sem vertigem o caminho conforme cara, conforme coroa. tenho medo que o vento leve o papel em que estou escrevendo pra você. medo mata. medo salva. medo. culpa é péssimo sentir. culpa e ciúme! medo tudo bem. quem não tem culpa tem ao menos medo de vinganças. e a culpa é uma vingança internalizada. eu sei e não é de me contarem: o pêndulo da transgressão precisa de movimento. "o mal é preciso temperar, não rejeitá-lo", escrevi isso uma vez. e outra: "só o furor iconoclasta deixa o coração pleno de uma devoção tranquila". esse pôr-do-sol de quinta era pra ser um conto, eu sei. vamos lá então: imagine que você caminha pela rua, acha um isqueiro no chão e coloca no bolso. segue caminhando. vê adiante uma fogueira acesa e uma grelha. comida nenhuma, a não ser o pequeno peixe sem asas dentro de uma taça ao lado do fogo. o que você faz? não lembro com perfeição. mas acho que pega o peixe de dentro da taça e coloca no bolso. quebra a taça com água em cima do fogo. descobre que o peixe nadava dentro de álcool. senta a contemplar o fogo. puxa um cigarro e o isqueiro achado na rua falha. um dia talvez você vá descobrir uma ferida na altura da coxa em formato de estrela.

 

 

 

 

 

 

Azaleia

 

 

no meu quintal tem uma serpente chamada Azaleia

Azaleia rasteja feito quem ainda lembra como é ter asas

 

a maré alta batia nos frágeis muros da igreja

o mar é uma lesma que deixa um rastro de sal

 

Azaleia sutilmente evapora ao modo das poças salgadas

no meio do quintal e dorme um sono calcário e destinos de uva

 

no meu quintal tem uma serpente chamada Azaleia

ela além dos banhos de sol gosta de ficar à beira das poças

 

ensinando às formigas medievais e aspirantes a marinheiro

os seus nós pegajosos de cobra contorcionista

 

a água salgada esterilizava a terra e afastava Deus

das rasuras inúteis ao mundo em dias de desamor e máquina

 

no meu quintal tem um serpente chamada Azaleia

ela rasteja sem raízes vôos rasantes e sua febre produz vinagre

 

 

 

 

 

 

Para Julia Mendes

 

 

passo mel na ponta dos dedos pra evitar o tétano. a morte não evitamos faz tempo — dedilho um pássaro castanho no seu joelho enquanto você caminha vazia pelo vazio da casa. a luz degenerada imprime castelos de formiga nos cantos como únicas mobílias. o verde acabado dos olhos de algumas meninas. a água metálica do silêncio. os rodapés carunchados. o azul em poça. esqueci de tudo passando própolis nos pergaminhos de assombro. tateio o portão. ele tem a parte de baixo podre como aquela árvore heliocêntrica que a tempestade de ontem decepou. com esse ar tanto tempo seco, deliro um cativeiro na parede para esconder a Nossa Senhora dos Penhascos que você trouxe do norte. se graveto significasse arraia — seria mais fácil colocar os vazios lado a lado.

 

 

 

 

 

 

Contradança

 

 

dançar nu em casas vazias
primeiro sozinho
depois tirar os ossos para dançar
ocupar toda a casa
emular com ombros pelves omoplatas
as primeiras mobílias
os futuros apoios
em que você vem se sentar
e descobre um menino rindo
escondido num canto
depois que você se bunda contra o chão
e faz uma cara similar

 

justamente nesse lapso é possível ver de relance
primeiros os escombros depois as ruínas
a umidade da futura ruína que a casa é
lhe fará suar
você pode usar os intervalos
para lamber o suor em gotículas
que brotarão na maça do rosto e na testa
mesmo sabendo a viga mestra o céu estrelado
gravemente comprometidos
e serão sim os escombros que ao sorrir
vão mostrar os dentes primeiro
e darão longuíssimos abraços de musgo


nesse momento

você — ou eu — talvez se pergunte
se a saída não é deixar o mel evaporar
destelhar a casa
esperar que chova uma poção curativa
para amenizar o coração dos homens
ou escrever insistentes enjoativos poemas com a palavra coração
coração coração coração
até o dia em que nossas línguas falem
um esperanto absurdo
em que todas as palavras digam coração
e não precisemos mais destas

 

 

 

 

 

 

Rua

 

 

ela trabalhava para os latifúndios da noite. descia sem guarda-chuva. escorrendo os pés pela crosta fina e transparente. quase invisível. de meteoros acesos com que tinham pavimentado as ruas. era sempre só de desalento e suor o seu soldo. 

 

mas hoje vai ser diferente. com o espírito eivado de escoriações e escombros. ela veio pra rua e ainda é dia. não é nem penumbra. tentáculos da noite. e seus arames farpados de cerca elétrica e breu. é dia. dia claro. sol alto. dia. obsceno como um rosto.

 

 

 

 

 

 

Tendo a névoa por montaria

 

 

Me apaixonei por ele durante uma alucinação, um porre de remédios e álcool. Em noites que bebíamos e andávamos pela cidade, com os bolsos cheios daquilo que chamo de uma alegria irrevogável. Com tal munição, dançamos, cometas irradiados, a desaforar o pudor de viúvas e covardes, de longe nos censurando em silêncio em ruas, em parques.

Uma vez veio desaprovar nossos beijos um guarda. Você sorriu, insultado, mostrando os dentes. E olhando assim, parecia um cemitério com aquelas construções altas de mármore. Eu pedia pra morrer logo e fosse ali mesmo na sua boca o meu pó despejado. Bizarria essa tua! No começo, estranhou os dizeres. Só que com o tempo, você tomou gosto por esse caminho torto de quem derrama e persegue a água.

Não demorou, a nossa cidade foi ficando pequena. Os seus desatinos mesmo dentro de casa se sentiam desalojados. Voltaram a crescer as velhas mandalas de bolor no seu peito e nas paredes. O sótão já não servia de refúgio. Virou um viveiro. Em especial, répteis e aves. A cama cresceu uma horta. As ramagens das trepadeiras começaram a destelhar a casa. Foi então que eu pedi pra sair. Saímos. Juntos. Mas sem saber ao certo o que nos juntava.

Tomei a sua mão e seguramos um cajado. Invisível cajado. Remamos duas quadras. O passo arrastado podia dar a entender que no fundo a gente não prometia ir tão longe. Mas seria um engano. Na segunda esquina, ele disse que ia dormir um pouco. E que eu deveria continuar andando. Só não larga da minha mão, por nada! Ao acordar, você que tinha sonhado um salão vazio e que passava dias a fio dançando sem ficar exausto. Já estávamos quase fora da cidade. Eu fiquei todo tempo contemplando o sono no rosto dele. Nem me dei conta de aonde íamos.

Havia ali ainda algumas casas. A estrada era de terra e nas beiras uns últimos resquícios de cimento, com os vãos crescidos de mato. Continuamos até o entardecer. Seguindo para o leste. Foi o que ele disse quando acordou. Descansamos aquela noite num mangueiro desativado. De manhã, tangerinas e banho de rio. Água turva. Ele ficou ainda mais calado. Ou o seu jeito de dizer era mesmo esse mirando um ponto fixo adiante.

Rio abaixo, fizemos fogo e cebola assada. Comer o fazia rir. O gosto doce da cebola assada. Meio-dia. Com os pés imersos. A língua dele e as cabeças aquecidas, a pele formigando com o sol de inverno, depois da água.

Quem teve a ideia fui eu. Mas foi só agonia de deixar coisa subindo solta na cabeça. Ele é que deu fé de fazer, logo que eu disse. Uma embarcação. Pronto, amarrou umas trouxas e meteu o meu lenço vermelho dentro de uma garrafa. Ficou bonito. Preservado em forma de mensagem ou pra gente se secar quando tudo estivesse alagado. Descemos a correnteza, nus, com as trouxas de roupa nos servindo de asas. A água não estava fria. Mas a velocidade da decida me fazia sentir como que um vento gelado.

Até onde deve levar esse rio?

Querendo ou não, ao mar, não é?...

Então estamos perto!
Ele respondeu com olho nos bambuzais que havia atrás do banco de areia em que paramos.

Mas que graça há em ter tantas curvas e não poder desviar? Eu digo seu nome dentro da nuvem de fumaça e não quero que você siga igual! Se quisesse, atiraria uma pedra!

Não respondi, engolido. Sem esconderijo: vulnerável pelos olhos abertos. Vi numa curva de rio mais a frente: vi um berço enorme na margem. E um cavalo.

Ele viu em seguida. Quase branco. Crinas queimadas de amarelo.

Não aceita montaria nem cabresto!

E o berço? Não está vendo o berço?

Que berço? Aquilo é um barco!

Todo mundo sabe que é preciso passar a arrebentação ou melhor é nem se meter com o mar. Arrebentação é arrebentação. A maré é outra coisa. Finjo ainda hoje ter certeza quando digo. Mas a violação das paredes e o burburinho de crianças brincando em algum quintal aqui perto é pra mim uma espécie de ciência oculta: cada praça tem um mar ao redor e de madrugada fica mais evidente pela alta da maré e pelo mau humor das ventanias.

Quando eu empurrar, você puxa! No três!

Nuvem solta! Foi assim que ele batizou o barco. O berço sem criança, equipado de troncos e bambus, que nos serviria de barco.
Nuvem solta.

Um. Dois.

O meu lenço vermelho se esticou. Vela hasteada. Tão enorme de não saber de onde, multiplicado em tanto, num passe de mágica, ele tirava quantia tamanha de vermelho de dentro do barrilzinho vazio de cachaça.

No três, feito um gato, saltou pra dentro do berço junto comigo. Navegamos. E o céu azul e o lenço vermelho. Ele acendeu um fogo, rápido, amarrou o fogo numa pedra e atirou nas nossas coisas que ficaram queimando na margem, junto com o cavalo morto.

 

 

[Do livro Sossego abutre, no prelo]

 

 

 

[imagens ©gabriel isak]

 

Marcus Groza. Poeta, ficcionista e dramaturgo. Autor do livro de poemas Do buraco à poça (Patuá, 2013). É editor da Revista Abate e doutorando em Artes Cênicas (UNIRIO).