NAGUAL

 

 

A cruz no crepúsculo

assinala a fome dos vermes

e a fresta entre os mundos.

 

 

 

 

 

 

TRANSMUDAÇÃO

 

 

                   "O azar é um dançarino: teme os seus alfanjes.

                   Amanhã serei morto, mas agora sou rei".

                   Haroldo de Campos

 

 

Másculo nardo

afro músculo

a saltar séculos

cavalo báltico

barreira poeira cósmica

ginete

hipogrifo

bartender lunático

fronteiriço

ao mundo estóico

e o epicurista

dervixe dionisíaco

apolíneo

possesso

todas essas dicotomias

nascem e morrem

no poeta.

 

 

 

 

 

 

POEMA

 

 

Temi o pai

os olhos

o cão

a escola

o escuro

o vento

a chuva

e o não.

Eu era criança.

 

Temi a vida

o mundo

as pessoas

as mulheres

as mudanças.

Eu era moço.

 

Temi pelo filho

entre a febre

o choro e a fome.

Eu era o pai.

 

Temi que acabasse

o amor ao dizeres

meu nome.

E foi no fim de uma tarde

a tarde do fim

a última vez

que chorei por amor

dizendo teu nome.

Eu era alguém.

 

Temi o destino

a realidade

e o sonho.

Temi o homem.

E eu era homem.

 

Temi o segundo

em que tremi

confuso e pobre

diante do mundo

sem esperança da sorte.

 

Temi o corpo

a doença

a loucura.

Temi a memória.

Temi o tempo.

Temi a deus.

Eu era velho.

 

Depois, não houve temor de nada

da morte

do fim da estrada.

Eu havia vivido

e um velho poema me consolava.

 

 

 

 

 

 

TEU DESEJO EM MIM....

 

 

beija-flor na axila

sol negro de públis revolto

seios amados nas auroras do sonho

e quanto éramos febre

na usura de amar

olhos abertos na cama

ficando cinzas ficando

às vezes albatroz

outras, revoadas de colibris

teu desejo em mim

úmida flor de enseada

e dorso sabendo

à pêra e trigo

dorso que só a sombro do meu tronco

soube cobrir de sol

 

 

 

 

 

 

QUIXOTE

cavalos náufragos

nua noite dentro de nós

num tropel de barcos


um marujo em meus olhos

um copo cheio de Cervantes

 

 

 

 

 

 

NOS DESCAMINHOS DA PALAVRA

 

 

Nos descaminhos da palavra

Estava escrito que céu é êxtase mirrado de sono azul.

Céu às vezes rubricado por raio de luar

E da estrela da manhã,

De brusquidão e lusco-fusco de navegação tenebrosa.

Nos descaminhos da palavra

Um reinventar o agonizante desfecho da tarde

E os solos de música derreada das charnecas.

Nos descaminhos da palavra,

Desaprender a cada dia o nome das coisas.

Nos descaminhos da palavra a palavra poesia dá sinônimo

À pedra...

Travesseiro onde descansar a cabeça mirrada da górgona...

Envio o meu coração embalsamado na urna memorial que voa.

Mando-te em veludo

A conta das dores dos dias em que te conheci.

Dias em que o descaminho da palavra amor

Nunca tanto significou

Colapso

 

 

 

 

 

 

VEGA

 

 

Você pode querer escalar o céu

Em busca da estrela

mas céu não existe

além da palavra céu.

Para quê um transito celeste

se céu é um não-lugar?

 

Então quando o poema quer palavras

é ainda poesia em natureza,

desconforto, inquietude.

Ele quer palavras para fixar o insólito,

Apreender significados e ressignificá-los,

E  problematizar coisas tão opostas,

como as orelhas desconexas de um lobo

diante do homem, afinal,

a convicção não é um atributo lunar.

 

Essas coisas excêntricas do poema

Talvez soem como o estranhamento hipotético de ETs veganos

diante de açougues

e assassinatos de animais em massa

hipoteticamente perguntando-se: "Então esse é o homem?").

O homem é o animal mais feroz,

quem nos livrará de nós?

 

 

 

 

 

 

TEMPLO

 

 

Sob os azares do tempo

os teares dos ventos

arrastam areias

semoventes paredes

soterraram nossas sedes.

Aonde agora te procuro?

 

Qual senha direi

aos teus ouvidos sussurrada

para penetrar detrás

dos ruinosos muros de tuas costas?

 

 

 

 

 

 

CHAMADO

 

 

Um velho acode ao chamado da lua.

Um cão ladra sem sono.

Um menino quieto brinca de madrugada.

A górgona dorme o seu sono profético.

O velho toca a azorrague as suas musas.

O velho toca à flauta as bestas para o céu.

Por causa da lua. Por causa das musas.

Um velho que me escapa pelas palavras.

 

 

 

 

 

 

CITERÉA

 

 

Noiva do jardim de Abidos

sob o pórtico e a coluna egípcia

jaz na escadaria do templo de Osíris.

Agouráveis fogos-fátuos avistados na infância.

 

E a rosa deserta balouça tristemente

com um bafejo que sussurra

no correr de areias ao vento:

— Contem ao pó!

 

Quando nos pântanos da voz eu afundar

vindo a  soluçar das gargantas

põe aquele teu vestido branco

em teu jardim quero enterrar o meu pranto.

 

 

 

 

 

 

MADRUGADA

 

 

Cansou-se a hora do pêndulo.

Saltou fora do tempo dos homens

como serpente de molas

em caixa de espantos.

 

Cansou-se a linguagem morna

do amor do sonho esquecido.

 

Nas paredes toscas da invisível penumbra

levita apenas um breve poema com sinos.

 

 

 

 

 

 

VIRADA

 

 

Estou reaprendendo a sentir.

Um antigo sentimento foi regenerado por outro.

Estou reaprendendo a amar.

Um sentimento que regenera o outro.

Estou lembrando mais de mim.

 

Eu, que tinha histórias veladas e segredos nunca contados...

Resolvo tudo agora. Caio. Levanto. Choro. Sangro. Limpo-me nas páginas.

Viro a mesa, cuspo no quadro escolar, derrubo o muro

e, acima do mundo, de saída, bato para sempre a porta de mim mesmo.

 

 

 

 

[imagens ©michael dunn]

 

 
 

Márcio Davie Claudino(Curitiba/PR,1970) é autor de O sátiro se retirou para um canto escuro e chorou (Imprensa Oficial/PR, 2007) e vencedor de alguns prêmios literários. Formou-se em Letras pela UFPR, onde frequentou o mestrado, desenvolvendo estudo sobre a poesia contemporânea curitibana. Após abandonar a carreira acadêmica em 2009, traduziu idiomas canoros e fabricou seus primeiros escritos aprendidos com animais soberbos, tristes, plácidos e alegres: pássaros (claro!), rãs, grilos, anfíbios, répteis, cães, gatos e insetos ruins. Exilado em lugares de decadência moral, de desolo social, em casas de saúde, à beira de rios e charcos, entre bichos de chão e coisas invisíveis (à guisa de estar perto de coisas vitais e devaneantes), tornou à vida após longa estadia nos baixios do espírito. Raptou musas e medusas. Então reiniciou-se na literatura. Tem paixão por livros e ruínas, onde gosta de habitar. Verdadeira obsessão por um certo tipo de mulheres desorientadas, de olhos oblíquos e febris, alheios e potencialmente suicidas. No dia em que for poeta falado, planeja atirar-se num vulcão ouvindo Wagner. Agora, nel mezzo del cammin, tenta a segunda metade entre algumas musas e muitas medusas.