Passatempo

 

 

Sempre perdi no jogo, não importasse qual. E ele adora fazer perguntas chaves pra ver se abre um pouco a fechadura de nossos desencontros. Não o culpo, afinal ele quer me conhecer. Saber o gosto que me agrada, cozinhar sem avental, mas por a mesa, acender o castiçal improvisado em duas garrafas de cerveja irlandesa. Rótulos marcados de parafina:  sinal de tantas vezes  juntos à luz de velas. Ele sempre preferiu aquelas do barco que velejava. E haja vento! Eu não gosto de ficar muito às claras, sempre preferi à meia-luz. Uma pequena lâmpada de abajur, um  farol de bicicleta, o lume de um incenso... Mas ele quer montar cada peça do  puzzle quem-sou-eu, e agora vem me perguntar como vim parar aqui. No seu território. Fico escorregadia e quebradiça.

 

 

 

 

Lugar vago

 

 

Quase perco o trem, mas não o lugar. Hora do rush, mas à minha frente, assento vago. Ocupado depois por um leitor. Ele saca da mochila um interminável Un monde sans fin. Mas ele persiste na leitura que faz em mim. Será que chegará ao fim do seu livro? Ele parece estudar minha pose com a acuidade de um pintor. Contraída com uma sacola de compras à mão, confinada ao desconforto do assento,  imóvel, nem respiro e não o inspiro a nenhuma bailarina de Dégas. Estou mais para uma estátua, enquanto que para ele, espaço não é problema. Parece imaginar o que levo para jantar, estaria sozinha? Ele me dirige a palavra, tão à vontade como quem abre um vinho. Percebo seu sotaque quando ele se queixa do longo inverno . Diz que vai a um concerto, mas ignora aonde vou. Embaraçada, acabei por confundir Stravinski com Kandiski, misturei música, teatro e museu. Estranha arte, a do desencontro. Ele fecha o livro. Fim de percurso. Trop tard! Jamais, talvez? Ele que teria me amado?  Eu que o saberia.

 

 

 

 

Koan

 

 

Eu pintaria flores nessa paisagem opaca, o dia fosse tela. Mas é  primavera,  nórdica, e resiste ainda uma neve sob a chuva fina. No meu atalho de volta para casa, você cai sobre a minha cabeça como a  tarde úmida. Entramos num bistrô, você me oferece um brand para me aquecer e eu prefiro um mojito para refrescar as ideias. E então, nunca mais falamos a mesma lingua. Havia o desejo de se conhecer, mas passar de ida e volta, sul a norte, como pássaros migratórios,  nos obrigou a ficar nessa fronteira. A chuva engrossou e você  confinou seu humor em um pequeno guarda-chuva, sua zona de desconforto! Ah!  Essas chuvas imprevistas que inundam todas as estações e fazem escoar pelos bueiros todos os encontros. Mas uma vez, numa pedra, alguém deixou escrito um koan em português fluente: O que fazer para que uma gota nunca seque? Meditei longamente até desistir da resposta. “Jogue a gota no oceano”, resolvia a pergunta! E um ano depois eu entendo esse ciclo, das chuvas que vão para o mar,  das estações que nunca cessam, dos amores que não fluem com as águas, mas simplesmente passam.

 

 

 

 

 

 

 

Uma casa

 

 

Onde paredes

Carcomidas

Sustentam

Janelas semiabertas

Adobe, barro, cal,

Camadas em cores:

Arqueologia das memórias

Portas, pessoas e janelas fechadas

Olhos de espiar pelas frestas

Fenestrais

Portais e o vento

Batente insiste

Abandono e breu

Sol que resiste

Nas fendas do corpo.

 

 

 

 

 

 

Regarde-moi

 

 

Com teus olhos

onde repouso os meus

olhos de ressaca

Mar que me arrasta

Nessa tarde calada

Guarde-me  cálida

Onde sua presença me toma

como a água que sacia

 

 

 

 

 

 

Exposição

 

 

En passant

Vi teu rosto

Numa tela de Modigliani

Com  alma bem escondida

Abotoada até o pescoço

E os olhos azul pálido

Contraste

Vermelho quente de Matisse

Onde na  minha insuportável leveza

Voei  como na tela de Chagall

E lancei estrelas de Van Gogh

No céu que jamais vês...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[imagem ©francois-henri galland]

 

 

 

 

Luciene Guimarães nasceu em Diamantina e viveu em Belo Horizonte. Graduada em Comunicação e Letras, Mestre em Teoria da Literatura pela UFMG, vive atualmente em Québec, onde ensina português. Vez por outra, escreve narrativas curtas, breves, poemas esporádicos.